Minha comemoração particular do fim da Segunda Guerra Mundial::Drops para o fim de semana::


Um dos livros que maior curiosidade despertou no redator:: até hoje, dentre tudo o que já leu sobre a 2ª GM, foi “Eichmann em Jerusalém”, da filósofa alemã Hannah Arendt. Arendt é *figura muito conhecida no universo da Filosofia e da Ciência Política, com uma obra notável e uma militância destacada – que quase a colocou, em 1933, num campo de concentração. Em 1961 foi enviada a Israel pela revista norte-americana New Yorker, para cobrir o julgamento do tenente-coronel SS Karl Adolf Eichmann, arquicriminoso de guerra nazista. Da reportagem, publicada em cinco partes (se você lê inglês, uma resenha excelente aqui, das próprias páginas da revista mais bem-pensante e pedante dos EUA…), resultou o livro (o pós escrito, de autoria da própria Arendt deve ser lido aqui). Nesse texto, Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal”, hoje bastante difundida entre diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais. Esse conceito expressa a tese que propõe enxergar sob outra perspectiva as pessoas que cometem crimes indiscritíveis, daqueles que em muito superam as possibilidades de qualquer relés Al Capone ou Fernandinho Beira-Mar. É o caso dos planejadores e administradores da máquina industrial de genocídio dos nazistas, entre 1941 e 1945. Essas pessoas não podem ser consideradas simplesmente fanáticos ensandecidos: na maioria dos casos, são gente comum. Essa gente simplesmente aceitou a premissa de que o Estado, entidade impessoal e onipresente, “sabe o que faz”, e a partir daí se dispôs a participar e empenhar o melhor de suas competências em realizar a tarefa – sem chegar a perguntar, em momento algum, sobre o que estava fazendo. Burocratas, em todos os sentidos, nem piores nem melhores do que os outros burocratas. O trabalho de Arendt insere-se numa crítica à modernidade iluminista que deu co´os burros n´água em duas guerras mundiais, muitas ditaduras assassinas e “lutas pela liberdade” , que no conjunto mataram sabe-se lá quantas dezenas de milhões de pessoas. Arendt, atenta para essa ordem de questão, refletia sobre a responsabilidade coletiva, ou seja, a responsabilidade, que, para bem ou para mal, que a dinâmica histórica aponta. Dizendo de outra maneira – não existe quem esteja isento. Mas, por outro lado, responsabilidades não podem ser consideradas inteiramente individuais. 

Quando Napoleão, ao tomar o poder na França depois da Revolução, disse ‘Assumo a responsabilidade por tudo o que a França já fez, de são Luís ao Comitê de Segurança Pública’, ele estava apenas formulando um tanto enfaticamente um dos fatos básicos de toda a vida política. Em termos gerais, significa pouco mais que afirmar que toda geração, em virtude de ter nascido num continuum histórico, recebe a carga dos pecados dos pais assim como é abençoada com os feitos dos ancestrais. Mas esse tipo de responsabilidade não é o que estamos discutindo aqui; não é pessoal, e só num sentido metafórico alguém pode dizer que sente culpa por aquilo que não ele, mas seu pai ou seu povo fizeram. (Moralmente falando, não é menos errado sentir culpa sem ter feito alguma coisa específica do que sentir-se livre de culpa tendo feito efetivamente alguma coisa.) É bastante concebível que certas responsabilidades políticas entre nações possam algum dia ser julgadas em uma corte internacional; o que é inconcebível é que tal corte venha a ser um tribunal criminal que declare a culpa ou a inocência de indivíduos” (aqui, o redator:: fará o que nunca fez até agora, neste blogue: insistir para a leitura do texto indicado acima, do qual essa citação foi retirada).

O redator vê essa problemático sob dois ângulos, complementares. E não vamos falar apenas dos nazistas. Aqueles doze anos foram o reinado do mal absoluto, um curto-circuito moral que apagou consciências no mundo inteiro – para dizer o mínimo, não foram poucos os países e indivíduos que se deixaram fascinar pelo formigueiro de ordem e trabalho em que a Alemanha pareceu se transformar. É certo que, ao fim e ao cabo, a luta contra o fascismo acabou por mobilizar as melhores energias de parte considerável da humanidade, considerada por indivíduos e instituições. 

Por outro lado, o nazismo tem servido como uma espécie de justificativa moral para boa parte dos absurdos cometidos ao longo dos cinquenta anos seguintes. Afinal, fala-se muito em “liberdade”, “justiça”, “democracia”, “prosperidade”, justificativas para ações injustificáveis como o Vietnam, o Afeganistão, o Iraque. E, em nome desses “princípios”, os estados sentem-se autorizados a tudo.

Fala-se na “pátria”; no “país”; no “sistema”. Figuras abstratas que metaforicamente expressam os interesses e aspirações do que seria “o povo”, a coletividade do país. “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país.” Essa pela construção de retórica esconde uma construção lógica nem tão bela assim. Cada indivíduo pode ser mobilizado por razões que, no fim, ele talvez desconheça. “Eu recebia ordens, não me cabia discuti-las”, disse Eichmann. Militares, cientistas, burocratas, envolvidos  com questões eufemisticamente chamadas “de defesa”, atrás de escrivaninhas, painéis de controle ou computadores, em uniformes ou trajes civis, recebem ordens. Por trás da competência e da impessoalidade, são seres humanos comuns, com sentimentos comuns. Esperam a hora de ir para casa; preocupam-se com filhos, parentes e amigos; têm passatempos que pouco praticam. O excesso de trabalho e de responsabilidades são a tônica de suas tarefas profissionais e carreiras. E mais: usam, constantemente, a expressão “apenas faço meu trabalho”, independente de qual seja esse. Tudo muito natural. Tudo parte da vida.

Assim, essas pessoas, pilotos de jato lançando bombas de fragmentação ou napalm sobre cidades indefesas, cientistas civis planejando mísseis, burocratas coordenando informações militares, não são, de forma alguma, criaturas odientas ou odiosas. São apenas “parte da máquina”, “fazem seu melhor”, “não inventaram o sistema”. Pois bem: em meio a essa vida esmagadoramente comum – banal, enfim – se infiltra o mal.

Em 1984,  gente comum assim ajudou a fazer o “Relógio do Juízo Final” chegar a dois minutos da meia-noite. 

“Fazer coisas terríveis de forma organizada e sistemática baseia-se na ‘naturalização’. Esse é um processo no qual atos feios, degradantes, criminosos e indizíveis tornam-se rotina, e são aceitos como ‘a maneira que as coisas são feitas’. Existe uma forma de dividir e racionalizar o impensável, com a brutalização e morte cometidas por um grupo de indivíduos, outros administrando a máquina (manutenção, suprimentos), e outros mais produzindo equipamentos de matança, ou trabalhando na melhoria da tecnologia (melhores crematórios, napalm aperfeiçoado, bombas de fragmentação cujos fragmentos sejam mais difíceis de localizar dentro do corpo…). É função dos intelectuais militares e outros especialistas, bem como da grande imprensa, naturalizar o impensável para o público em geral. No final de sua vida, Herman Kahn gastou muito tempo tentando tornar palatável a guerra nuclear (On Thermonuclear War: Thinking About the Unthinkable), e este Doutor Strangelove fajuto teve boa aceitação na imprensa. Num excelente artigo intitulado “Normalizing the unthinkable”, publicado no ‘Boletim dos cientistas atomicos’ (Bulletin of Atomic Scientists) de março de 1984, Lisa Peattie descreveu como nos campos de morte nazistas  o trabalho era ‘naturalizado’ para aquelas pessoas aprisionadas a longo tempo, bem como para o pessoal administrativo: ‘Os encanadores da prisão mantinham em bom estado a bomba d´água no crematório e os eletricistas trabalhavam nas cercas eletrificadas. Os gerentes do campo mantinham padrões e processos bem ordenados. Os faxineiros que limpavam o pátio do crematório em Auschwitz tinham de deixá-lo perfeitamente esfregado.’ Peattie foca-se no paralelo entre rotinização nos campos de morte e na preparations para a guerra nuclear, na qual o ‘impensável’ é organizado e preparado, numa divisão de trabalho na qual participam pessoas em muitos níveis. A distância da execução ajuda a obscurecer a resposabilidade. ‘Adolph Eichmann era um funcionário com responsabilidades, deacordo com seu entendimento de responsabilidade. Para ele, estava claro que os líderes do Estado tinham estabelecido as políticas. Sua função era implementá-las, e, afortunadamente, matar qualquer um nunca foi parte de seu trabalho’.” (Se o leitor se safa em inglês, pode ler a íntegra, em inglês,  num desses preciosos blogues perdidos na rede. A palavra “naturalizar” foi usada, aos invés de “normalizar”, que é a do original, visto que essa última tem, em nossa língua, um significado um tanto diverso do que parece ter sido pretendido pelo autor.)

O texto não está focado propriamente na matança industrial executada pelos nazistas, com o beneplácito da população alemã, mas nas diversas matanças, industriais ou não, que tiveram lugar no século 20. Essas, embora sem alcançar o azimute daquela perpetrada pelos nazistas, cabem na linha da reflexão de Arendt: como distribuir a culpa por crimes impensáveis? Até que ponto o estado deve ser chamado a dividir com seus burocratas, a culpa pelo impensável?

Napoleão assumiu a responsabilidade pelas culpas e benefícios da França. Era uma metáfora, claro, e se “a França” foi responsabilizada moralmente pela Argélia, o general Jacques Massu, o carrasco de Argel, agente do estado francês, morreu altamente condecorado e tranquilamente reformado. O estado nazista pôde ser criminalizado por ter sido eliminado em uma guerra. Assim, seus servidores foram co-responsabilizados (e continuam sendo) pelo papel que cumpriam no contexto mais amplo: são considerados cúmplices conscientes, mesmo os que não apertaram nenhum gatilho. Sem a ocorrência de guerras convencionais ou revoluções, essa atribuição-distribuição de responsabilidades fica bem mais difícil. Somente em situações nas quais tal rompimento ocorre, é possível a responsabilização de que fala Arendt, “… [é] bastante concebível que certas responsabilidades políticas entre nações possam algum dia ser julgadas em uma corte internacional; o que é inconcebível é que tal corte venha a ser um tribunal criminal que declare a culpa ou a inocência de indivíduos…”

Se tal criminalização só é possível com Estados derrotados por condições externas ou internas (e mesmo assim, nem sempre), como chamá-los à responsabilidade?  Ninguém jamais tomará a iniciativa de pedir a criminalização do regime stalinista, ainda que a União Soviética tenha desaparecido; o estado sérvio pós-Tito jamais chegou a ser diretamente acusado pelo genocídio acontecido durante as guerras de agressão que promoveu contra a Croávia, Bósnia e Kosovo. De fato, houve responsabilização, por parte do Tribunal Penal Internacional, de gente como Slobodan Milošević, Radovan Karadzic e Ratko Mladic (dentre outros), responsabilizados como indivíduos (alguns chefes militares croatas também foram levados a julgamento). O mesmo aconteceu com o premiê de Ruanda e de alguns outros indivíduos, acusados de crimes contra a humanidade e genocídio, e cujas penas foi consideradas geralmente insuficientes. O governo ruandês instalado após a queda do regime responsável pelo massacre tratou de executar mais de duzentas pessoas consideradas culpadas, após julgamentos sumários. Uma boa pergunta é o que mais poderia ser feito, visto que o TPI não tem os poderes que, de fato, seriam necessários para que as nações de que fala Arendt, fossem responsabilizadas. Por outro lado, um personagem ruandês, Paul Rusesabagina, responsável por salvar as vidas de 1.268 pessoas, em Kigali (capital de Ruanda) e que se tornou uma espécie de consciência nacional, exilado na Bélgica, fez duras declarações tanto contra o regime no poder quanto contra as instituições internacionais.

Nações latino-americanas que passaram por ditaduras homicidas tomaram caminhos diversos. Na Argentina, leis que beneficiavam militares de patente inferior com a impunibilidade por crimes no exercício de função foram revogadas por determinação judicial em 2004, durante o governo de Néstor Kirchner; no Uruguai foi tomada a mesma decisão, em 2008, pelo do governo do presidente Tabaré Vázquez. O conceito de “obediência devida”, invocado para justificar as ações de militares, foi revogado, e em ambos os países, um grande debate ainda tem lugar em torno do tema. “Se o comando superior decide dissolver o Parlamento, uma ordem inconstitucional e ilegal, não deveria ser cumprida pelas Forças Armadas”, declarou o ministro da defesa do Uruguai, José Bayardi. Por outro lado, Brasil e Chile optaram por iniciativas mais brandas.

Temos que admitir que cada caso é um caso. Na Argentina, o Estado de excessão dissolveu-se após uma série de trapalhadas que culminaram com a humilhação nacional do país, a derrota nas Malvinas; no Uruguai, erros sucessivos de administração do governo militar e a oposição popular que daí decorreu levaram à uma transição em que os militares abandonaram o governo sem nenhuma condição prévia; no Brasil e no Chile, saídas negociadas com os regimes implicaram em acordos até hoje contestados. Cada caso é um caso, mas caracterizou esses regimes de excessão s a enorme quantidade de crimes de estado cometidos por seus agentes. Nunca houve nenhum movimento para internacional para responsabilizar esses governos, ou mesmo suas lideranças individuais. Pode-se alegar que foram lutas de facções políticas no contexto da Guerra Fria, e que os EUA e a URSS também deveriam ser responsabilizados por coisas como o Vietnam e o Afeganistão, onde muito mais gente morreu. A idéia da “banalidade do mal” aplica-se à todas as situações descritas acima, e nem todos os servidores dessas ditaduras eram um Sérgio Paranhos Fleury (que dispensa apresentações), um Alfredo Astiz ou um Manuel Contreras. Agentes como esses podem perfeitamente ser comparados aos nazistas, mas outros achavam, sinceramente, estar “apenas cumprindo ordens”. Para os nazistas, essa desculpa não valeu. Mas e para os outros? 

Voltaremos ao assunto, quando os oito ou nove leitores tiverem tido tempo para digerir essas questões::

3 pensamentos sobre “Minha comemoração particular do fim da Segunda Guerra Mundial::Drops para o fim de semana::

  1. Confesso que ainda estou digerindo o texto.

    O fato de a Alemanha ser responsabilizada, e por “beneplácito” sua população – mesmo sabendo que todos os campos de extermínio ficavam fora do território alemão, portanto, inacessíveis aos cidadãos comuns – deve-se exclusivamente a sua derrota.

    Sei que essa não é a questão central do post, mas a tal “guerra justa” só pôde ser propagandeada depois do conflito. Não acredito que os líderes Aliados entraram na guerra por motivos, que não sejam os mesmos dos alemães: manter, aumentar, recuperar e/ou impor sua influência, sua geopolítica e seu poder no mundo em transformação.

    Com o bônus – lamentável, é claro, por ter acontecido – de conseguirem um motivo que justificasse todas suas ações passadas, presentes e,como vc mesmo disse, Bitt,futuras.

  2. Bitt,

    O seu excelente, como sempre, texto, me lembra do ataque de Israel à flotilha humanitária , condenado em peso pela comunidade internacional, sempre argumentando o Holocausto. Ôuquêi, é legítimo, mas até quando Israel pode barbarizar em nome do Holocausto? Qual o prazo de validade? E leva à reflexão de que os israelenses se vêem como perseguidos, assumindo a visão do uso da força, ainda que desta vez, a coisa tenha saído da medida – e muito – parecem dar apoio interno à barbaridade, que viola leis internacionais. Como exemplo, cito um texto da Eliane Cantanhede, na FSP, em que conta como foi recebida com altas doses de suspeita em Israel , numa viagem que esticou de Nova York até lá. Bagagem no chão, tudo discriminado, como se uma mulher sul-americana fosse uma terrorista em potencial. Aparentemente, serão necessárias algumas gerações para que os israelenses deixem de se considerar um povo acuado. Se não impuserem mais sofrimento aos palestinos no processo. Hummmpff!

    Ao mesmo tempo, seu texto lembra as nossas ditaduras e o tratamento dado por cada governo aos torturadores. O que lembra o voto 7 X 2, do STF, em favor da anistia aos torturadores. E passou incólume, o que não teria acontecido na vizinha Argentina.

    Triste..

    Abraço

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