Winston Leonard Spencer Churchill (Blenheim, Woodstock, Oxfordshire, Inglaterra, 1874 – Londres, Inglaterra, 1965) foi um estadista britânico. Isto, dez dentre os nove ou dez leitores assíduos deste blogue:: sabem; também sabem os assíduos que esse inglês, amante de charutos, vinho do porto e do sol mediterrânico, pintor amador e um dos maiores escritores modernos em língua inglesa, é um dos musos de causa:: Não sem razão.
Dizia o grande inglês que “a democracia é o pior sistema de governo, à exclusão de todos os demais.” É uma frase interessante, repetida ad nauseam por todos os conservadores, direitistas e liberticidas. O próprio Churchill era um conservador direitista, embora talvez seja injusto chamá-lo de liberticida – afinal, se nos livramos do fascismo, foi em parte graças à teimosia dele.
Mas, como toda frase, as de Churchill com freqüência precisam ser examinadas contra um contexto mais amplo, para que façam sentido – ou mais sentido. Essa a que se refere o redator:: faz parte de um discurso dirigido à Câmara dos Comuns, em 11 de novembro de 1947. Churchill, então líder dos conservadores, manifestava oposição a que nova limitação aos poderes da Câmara Alta do Parlamento Britânico – a “Câmara dos Lordes” – fosse estabelecida. Esse corpo de representantes, não-eleito, hereditário, representava a si mesmo, e essa representação se expressava na capacidade de interferer fortemente com os assuntos do governo, capacidade estabelecida no século 14 e que desde então vinha se mantendo, contra diversas tentativas de limitá-la. A última tentativa era aquela: o governo trabalhista de Clement Atlee pretendia emendar o Ato do Parlamento, de 1911, de modo a limitar a capacidade daquela câmara em interferir com iniciativas do governo. O contexto, então, era o das reformas radicais que estavam sendo introduzidas na organização econômica britânica, na qual amplos setores da indústria seriam nacionalizados. Temia o governo trabalhista que a Câmara Alta tentasse alterar o processo em que a Inglaterra pós-2ª GM finalmente se reinventava, buscando acomodar, em termos mais justos, os milhões de soldados e operários que, estoicamente, tinham derramado o sangue, suor e lágrimas que pavimentaram o caminho até a vitória. Já para as “classes superiores”, aquelas que desfrutaram, ao longo de dois séculos, os benefícios da transformação econômica, a proposta punha mais amarras a um poder que minguava. Sobre isso, disse o temível polemista e brilhante orador Churchill: “… é o sentimento mais disseminado em nosso país, e que a opinião pública expressa através de todos os meios constitucionais, que o povo deve governar, governar continuamente, e deverá formar, guiar e controlar as ações dos ministros que são seus servos, e não seus senhores.” Ou seja, no entendimento de Churchill – e, podemos subentender, da maioria de seus liderados conservadores –, não seria preciso limitar os poderes das classes superiores, amplamente representados na Câmara Alta do Parlamento Britânico – esses poderes estavam limitados pelos poderes conferidos, por tradição, à opinião pública.
Descrevendo o sistema eleitoral de representação majoritária britânico, o historiador setecentista François Guizot aponta sua origem nas necessidades da sociedade inglesa, nos séculos 13 e 14. O sistema eleitoral decorrente, no século 15, não obedecia nem a regras originárias nas Ciências Políticas, nem aos interesses deste ou daquele grupo. Era um sistema formado observando-se os costumes cotidianos aceitos pela sociedade. Os princípios que regulavam o processo eleitoral eram, assim, absoluta novidade. Daí sua absoluta originalidade.
Dentre as novidades, aquela que parece provocar a advertência de Churchill: no entendimento dele, a sociedade já dispunha de meios para expresser sua opinião e impor sua vontade, meios consolidados em séculos de tradição. Esse longo processo teria tornado a democracia “o menos pior dos sistemas”: a tradição também teria incorporado os defeitos: uma hierarquia reconhecida por lei que cabia ao povo respeitar, pois os mecanismos embutidos no processo contrabalançavam, naturalmente, o desequilíbrio inerente ao mesmo.
Examinar a coisa hoje faz suspeitar que Churchill tivesse razão: esse processo vem sendo crescentemente contestado e, depois de séculos, o sistema é visto com certa desconfiança pelo eleitorado britânico. Sinal dos tempos: o sistema, dito bipartidário, não parece mais suficiente para expressar a opinião do corpo de eleitores, e mostra, através de freqüentes pesquisas de opinião, tendências ao desdobramento. Os mecanismos “tradicionais” de correção, então, funcionam – inclusive para indicar o clamor pela mudança.
Assim funciona a democracia representativa. Contra os defeitos, os mecanismos de autorregulação. E entre nós? Um dos possíveis defeitos da democracia brasileira seria, na visão de setores bastante amplos da sociedade, sua essência: o amplo direito de votar e ser votado. Não são poucos os cidadãos que reclamam do fato de que “todo mundo vota”, e não é nem preciso ter muito trabalho para encontrar exemplos disso. O redator:: não lembra qual dos ministros de Costa e Silva disse, na época do AI-5, que era absurdo valer o voto dele tanto quanto o de uma empregada doméstica… ou teria sido lavadeira?.. (diria que foi o da Aeronáutica… Algum dos assiduos lembra?..); o general João Figueiredo abriu seu consulado (1979-1985) com a taxativa afirmação: “Um povo que não sabe nem escovar os dentes não está preparado para votar.” E o negro Edson Arantes dos Nascimento, embranquecido pelo contato purificador das elites? É preciso lembrar a opinião dele?
Em tempos mais recentes, um colunista brindou-nos a todos com esta: “O Brasil é dominado por uma massa de pobres ignorantes. Eles estão decidindo por nós. E estão decidindo muito mal. Isso se não confundirem os algarismos e apertarem os botões errados.”
Afirmativas como essas levam o redator:: a pensar quais são os meios de defesa que a democracia brasileira tem contra seus próprios defeitos. Imediatamente surge a figura daquele que, em algum momento futuro, talvez venha a ser lembrado como a figura-símbolo desta eleição: o cidadão Francisco Everaldo Oliveira da Silva. Certamente não conhecemos Francisco Everaldo – mas conhecemos seu alter-ego, o palhaço Tiririca. Sobre Tiririca, diz um blogueiro: “como impedir que uma extravagância como Tiririca (ops, Francisco Everaldo Oliveira Silva) vire deputado federal? Só tem um jeito: não votar nele. Nenhum outro.”
Churchill também dizia – e foi essa frase que fez o redator:: elege-lo muso do blogue:: que quem não sabe história, não sabe nada. A perspicácia de Churchill, expressa no monumental “Uma história dos povos de lingual inglesa”, faz o redator:: lembrar de nossa própria história e de seus bons constadores. Por exemplo, o sociólogo Roberto Schwartz. Em ensaio no mínimo tão monumental quanto o de Churchill, Schwartz sugere que, em nosso país, as idéias estão fora do lugar. Em termos muito simplificados (causa:: não pretende ser espaço de resenha das idéias do coração do redator::): baseado em premissas marxianas, Schwarcz, por meio da análise da dinâmica interna de algumas grandes obras literárias do século 19, busca a contradição básica da formação social brasileira. Na opinião dele, é em Machado de Assis que a tal contradição aparece de forma mais perfeita. No Brasil, a estrutura é atrasada e colonial enquanto a superestrutura seria adiantada e liberal. Essa contradição residiria na persistência do regime de produção escravista convivendo com um sistema político de estilo inglês. Schwarz denomina esse método machadiano de “comédia ideológica”, que teria seu momento maior em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro”: Bentinho e Brás Cubas estariam sendo porta-vozes de uma denúncia de classe. Schwarz postula que Capitu é vítima dessa elite que vence, mas não leva, visto que a contradição, perpetuada pela elite como meio de dominação, resulta em uma “sociedade pela metade” – tese que é expressa de forma genial no título do livro – “Ao vencedor, as batatas”. (análises mais aprofundada, aqui e aqui). O século 19 é, pois, tão esclarecedor, para nós, quanto o século 14 seria para a Grá-Bretanha – só precisamos conhece-lo melhor.
Voltemos a nossa época e a nosso drama: buscamos a democracia, sistema louvado por dez entre dez liberticidas, mas uma em que um cidadão habilitado pela norma constitucional ao se apresentar para ser votado, possa, por “extravagância”, ser inabilitado por outros cidadãos habilitados. Curiosa democracia, de cujo exame resulta o seguinte: o cidadão Francisco Everaldo deveria não ter direito de ser votado. Centenas de outros cidadãos que se manifestam através da Grande Rede parecem pensar exatamente assim. Deveríamos criar mecanismos que impedissem Tiririca de participar do processo eleitoral – qual seja: aperfeiçoar a democracia é limitá-la, plenamente, à uma parte do corpo de cidadãos.
Uma tal providência imunizaria a democracia brasileira contra “piadas” como a candidatura do palhaço Tiririca. Motivo: vivemos numa sociedade imperfeita, sofrendo as dores do crescimento. O sistema partidário não exprime, à perfeição, a realidade do país, e os partidos são meros “balcões de negócios”. Cabe reduzi-los. Na Inglaterra são apeenas dois, os que realmente contam, consolidados pela tradição -e pela “educação política”; nos EUA, idem.
Mas, pensando bem… O palhaço Tiririca teria qualquer possibilidade de obter legenda num PT das elites sindicais ou num PSDB da inteligentzia paulista? Ou num PMDB dos grotões? Não é, entretanto, o caso de impedir o cidadão Francisco Everaldo de votar – por sinal, ele e outras extravagâncias têm de votar, para aprender. Algum dia, chegamos lá. Por ora, devemos impedir não que Francisco Everaldo eleja, mas se eleja. A maioria do corpo de cidadãos vota mal, e deve ser defendido de si mesmo. Estaríamos ouvindo aí (ou seria apenas impressão do redator:: admitidamente delirante?..) ecos do sistema de voto censitário, o tal “voto da mandioca“?
Pois se a democracia é imperfeita, aperfeiçoa-la não seria aprofundar a imperfeição, buscando meios de retornar ao século 19. Alguns cidadãos parecem vislumbrar o problema. No momento em que louvou a candidatura de outra “extravagância”, a “Mulher-Pera”, o senador Eduardo Suplicy talvez estivesse tentando, machadianamente, meter o dedo no âmago da contradição – e sabia no que se metia. Sua declaração de apoio à curvilínea candidata atraiu o deboche, desde a elite do jornalismo áulico até blogueiros moderninhos. Puro método machadiano: os democratas manifestam-se contra a democracia…
Talvez Suplicy aceite uma ajudinha – menos machadiana – do redator::: se a democracia brasileira sobreviver será por arte de seus defeitos, e o principal deles é por outro lado, sua capacidade de se autorregular – a possibilidade de que o direito de assumir mandatos escape da elite “educada” e chegue até as “extravagâncias”. É nesse momento que o drama da sociedade brasileira fica mais evidente, e a teatralização do processo eleitoral apontará uma hierarquização atroz, tida pelas elites – e por seus clientes pequeno-burgueses –, mais do que “natural”, necessária. Pelo menos até o dia que aprendamos.
Esse post não deve, pois, causar estranheza nos nove ou dez leitores. Falamos de estratégia, na versão atualmente conhecida como “grande estratégia”, aquela que mobiliza todos os recursos nacionais. E uma nação partida – como atualmente é dito – em “andar de cima” e “andar de baixo” não se torna potência. Portanto, tirem as patas do direito do proletariado a candidatar-se seja lá ao que for – e se eleger. É estratégico que as extravagâncias obtenham mandatos, pois elas apontam direto para a contradição que nos governa. Ao contrário do que diz Tiririca, pode ficar pior, sim: no dia em que nossas elites e seus clientes derem um jeito de garantir que o grosso da população – os feios, os mal-vestidos, os que vivem na espiral alucinante do trabalho na fábrica – não possam mais se eleger. Nesse dia, a democracia deixará de ser o “menos pior” dos sistemas de governo, para tornar-se apenas mais um entre os piores::