Vou deixar o Rafale, o Mirage 2000-9 um pouco pra lá. Isto porque descobri, meio por acaso, algumas pesquisas que fiz anos atrás. Algumas não valem nada, outras podem render alguma coisa. Entre estas últimas, está o texto que resolvi submeter ao rigoroso escrutínio dos assíduos de causa:: Trata-se de um ensaio sobre as origens da arma blindada, tema que sempre me atraiu. De certa maneira, o tema guarda certa semelhança com o que tem sido discutido aqui, ultimamente: a estupidez em torno de questões militares não é apanágio dos políticos brasileiros – pode grassar até mesmo entre os militares::
O fim da Grande Guerra apontou, para todos os envolvidos, no Velho Continente, um tempo de dificuldades. Os quase cinco anos de guerra exauriram as economias dos principais envolvidos, além da enorme perda de vidas humanas. A guerra provocou um total de mais de 30 milhões de baixas, dentre as quais uns treze milhões de mortos, entre militares e civis. Um problema adicional foi os milhões de incapacitados permanentes que, no auge de suas vidas produtivas, passaram a ter de ser sustentados pelo Estado. Num cômputo geral, as economias européias recuaram aos níveis de 1913, embora Estados Unidos e outras regiões do mundo, como a Austrália, Canadá e Argentina, tivessem sido grandemente favorecidas pelas demandas criadas pela guerra.
A produção de armamentos, não é preciso dizer, cresceu exponencialmente, no período. A adaptação das indústrias e novos métodos de organização industrial – estes já vinham sendo experimentados desde o século anterior – mostraram-se muito bem sucedidos, e o resultado é que todas as nações acabaram a guerra com quantidades de armas muito além de suas necessidades para um futuro imediato. É natural, então, que a combinação entre dificuldade econômica e excesso de oferta de armas tenha restringido o aparecimento de novos tipos e, principalmente, de pedidos novos pelos governos. Isso só iria voltar a acontecer lá pelos meados da década dos 20, e, mesmo assim, de forma muito tímida. A partir do momento em que cessaram as hostilidades, as potências vencedoras trataram de desmobilizar seus gigantescos exércitos. Isso tinha de ser feito com alguma presteza visto que os governos vencedores, com exceção dos EUA, encontravam-se profundamente endividados. Assim, não é de surpreender que os projetos novos, na Grã-Bretanha, França e até dos EUA, tenham estagnado.
A Grã-Bretanha, que tinha acabado a guerra com 25 batalhões de tanques formados, rapidamente desmantelou a maioria dessas unidades, de modo que, pelo início de 1921, restavam cinco batalhões, além de algumas unidades de “carros blindados”, usadas principalmente no além-mar. É interessante observar que o supremo comandante militar britânico, Sua Majestade Jorge V, manifestou certa simpatia pela arma blindada, ao atribuir, em 1923, o título de “Real” ao Corpo de Tanques. O que não significou mais do que uma honraria simbólica, pois, aquela altura, o Gabinete Militar não parecia nada simpático aos blindados.
Por outro lado, os blindados tornaram-se uma verdadeira moda, entre militares do mundo inteiro, tanto em países que estiveram envolvidos no conflito, quanto naqueles que o tivessem apenas observado. Os “apóstolos da arma blindada” também surgiram em grande quantidade. Entretanto eram, em geral, oficiais de escalão intermediário, que pouca ou nenhuma capacidade de influência tinham sobre as instituições militares de seus países. Foi exatamente o caso do coronel (depois general) Sir John Fuller. Envolvido com o planejamento e treinamento dos oficiais de Estado-maior da Força Expedicionária Britânica, Fuller esteve sempre muito interessado nos meios mecânicos na guerra moderna. Embora visse os tanques, inicialmente, com certa desconfiança, ele acabou percebendo, por volta de 1916, que o problema não estava na arma, mas no emprego que era feito dela. Passou a afirmar que seu uso deveria ser feito apenas onde o terreno e as condições táticas se mostrassem perfeitamente apropriados. Fuller idealizou, por volta de meados de 1918, um complicado e multifacetado projeto para uma ofensiva blindada de grandes proporções, que deveria resultar em diversos pontos de penetração nas defesas alemãs. Atuando em velocidade, as pontas-de-lança blindadas produziriam o colapso nas linhas de comunicação e suprimentos que atravessavam a retaguarda inimiga, provocando a desagregação da estrutura de comando alemã. A idéia – bastante original – era atacar os alemães rápida e decisivamente, desarticulando sua infraestrutura militar – quartéis-generais, organização de apoio e logística – antes que pudessem se reorganizar e seguir combatendo. Mas, por outro lado, o projeto de Fuller envolvia diversos problemas, inclusive o fato de ter sido engendrado prevendo a utilização de modelos de tanque que, naquele momento, ainda estavam em fase de projeto, os “Médio C”, um modelo bastante convencional, e “Médio D”, que poderia ter sido um veículo revolucionário. Projetado por um oficial do Real Corpo de Engenheiros, pesava cerca de 19 toneladas, tinha uma capacidade de cruzar trincheiras maior do que a dos tanques pesados, era extremamente manobrável graças à uma motorização até então não proposta para carros daquele tamanho e chegava a atingir, em terreno plano ou estrada, 33 km/h. Embora o armamento proposto fossem três metralhadoras Hotchkiss, uma versão “macho”, com um canhão de seis libras de cano encurtado chegou a ser ventilada. Mas o “D” apresentou problemas durante o projeto, devido a inovações mecânicas mal dimensionadas (como o sistema de esteiras e a suspensão), que acabaram por atrasar o surgimento de um protótipo. Fuller ficou muito impressionado com a concepção do veículo, e ainda tentou influenciar para que a etapa de produção fosse acelerada, mas aquela altura, o comando do exército resolveu bater o martelo pelo “Médio C”, que tinha mais chances de estar disponível na primavera de 1919. O fim da guerra e as dificuldades financeiras exterminaram com ambos.
Já o plano de Fuller, foi exterminado bem antes: desenvolvido e apresentado, em meados de 1918, ao comandante-em-chefe britânico sir Douglas Haig e ao comandante das tropas aliadas, o marechal francês Foch, com o nome de “Plano 1919”, o projeto resultou imediatamente em forte controvérsia. Haig chegou a caracteriza-lo como “lixo teórico”, no que foi seguido, com maior ou menor veemência, por diversos comandantes britânicos. Poucos foram favoráveis, e, ainda assim, com reservas. Curiosamente, os franceses encararam o “Plano 1919” com simpatia. De qualquer forma, a guerra acabou antes que se pudesse ter chegado a alguma conclusão, mas Fuller ficou profundamente decepcionado com o pouco interesse suscitado por seu projeto. Após a guerra, o então coronel – depois general – continuou envolvido com o pensamento doutrinário das nascentes forças blindadas britânicas, o que acabou por torna-lo profundamente desanimado com a atitude reinante no exército britânico em torno do uso dos blindados.
Os franceses também tinham seus entusiastas de tanques, mas numa direção diferente. O grande pensador francês dos blindados, durante a guerra, foi o tenente-coronel Jean Baptiste Eugene Estienne, originalmente um artilheiro com formação em engenharia. Este oficial fortemente intelectualizado (publicou artigos sobre matemática na Academia Francesa das Ciências e ministrou aulas na escola de estado maior, onde teorizou sobre o emprego de fogos indiretos) no início da guerra estava interessado em prover proteção para a artilharia, e acabou se envolvendo com o projeto do pequeno Renault FT17.
Embora Estienne tivesse sido um dos apoiadores da opção francesa por tanques leves, não foi responsável por ela. Essa foi determinada, em grande medida, pela escassez de materiais, que já começava a ser sentida em 1916. Daí o sucesso do FT (Faible Tonnage, algo como “pouco peso”), produto barato cuja produção era simples, mas que também apresentava problemas quanto ao emprego: não era propriamente um “rompedor”, capaz de abrir brechas na linha adversária – paepl que acabava mesmo reservado às formações de infantaria. Ainda assim, a superioridade do FT diante dos outros modelos disponíveis para os francese consolidou a opção doutrinária pela dispersão dos carros em meio às formações de infantaria. Essa opção iria provocar intensos debates após a guerra.
A idéia do tanque leve lançada pelos franceses acabou fazendo da França o maior produtor de blindados da guerra. Este dado é fundamental, pois, terminado o conflito, tendo um estoque de mais de 2500 unidades, a França tornou-se o principal fornecedor de tanques do mundo, e a maioria dos países menores adquiriu seus primeiros blindados direto dos estoques franceses. Por sinal, os primeiros blindados em serviço no Exército Brasileiro foram doze FT17, entregues em 1921. O FT17 se difundiu de tal maneira que, por incrível que pareça, no final dos anos 80 ainda podiam ser encontrados “na ativa”. Basta dizer que haviam pelo menos cem deles distribuídos às tropas alemãs na Normandia, em 6 de junho de 1944.
Quanto aos norte-americanos, a quarta das grandes potências industriais envolvidas na guerra, sua intervenção no conflito e atitude diante da nova arma merece alguns comentários mais atentos. A decisão dos EUA em intervir diretamente na guerra, com o envio de tropas ao teatro europeu, coincidiu com o impasse estratégico aberto pela retirada da Rússia, em 1917. Mas suas forças eram, no início do ano de 1918, bastante pequenas, e isso não mudaria até o mês de agosto seguinte, quando, finalmente, o fluxo de tropas americanas alcançou um nível que passou a faze-las pesar na balança estratégica. Ainda assim, os soldados dos Estados Unidos estavam equipados com uma miscelânea de armamento europeu – francês e britânico – cedido ou fabricado sob licença: canhões 75 mm TR franceses, tanques Modelo IV e V, britânicos, tanques leves Renault, aviões franceses e ingleses. De fato, a enorme potência industrial americana já fabricava, em 1916, enormes quantidades de armamento leve, munições e outros bens necessários ao esforço de guerra europeu, mas levaria tempo até que esse potencial econômico se traduzisse em eficiência militar. Quanto à organização e as doutrinas, os americanos seguiam ingleses e franceses, e as escolas de treinamento da Força Expedicionária Americana não diferiam e nem faziam nada diferente das que tinham sido tomadas como modelo. Assim, ao fim da guerra, os EUA tinham uma espécie de emulação do Real Corpo de Tanques britânico, e regimentos de carros de combate copiados do modelo francês que, inclusive, serviu de base para a implantação, na França, da primeira escola de tanques do Exército dos EUA. Depois da guerra, os norte-americanos também seguiram os europeus: a rápida desmobilização do milhão e meio de homens enviados às frentes de combate deixou sem uso enorme quantidade de itens militares. O estudo das doutrinas inglesa e francesa, sobre o uso de veículos à motor entrou numa espécie de “banho-maria”, desde que, em 1920, foi determinado que o uso de blindados fosse colocado a reboque das táticas de infantaria. Alguns dos modelos projetados desde então eram curiosamente semelhantes ao FT francês, com grande ênfase colocada na velocidade e na manobrabilidade.
A idéia, entretanto, continuou avançando, pelo menos no que diz respeito à teoria. Além de Fuller, um dos mais entusiasmados defensores do uso de tanques era o capitão Basil Liddell-Hart, cujas teorias envolviam o uso de ataques coordenados de grandes grupos de tanques, como forma de paralisar o inimigo. Liddell-Hart foi talvez o mais prolífico analista e escritor militar britânico do século 20. Suas principais formulações teóricas, sobre estratégia, tática e doutrina militar surgiram entre 1925 e 1939, período em que se dedicou ao jornalismo e à atividades de pesquisa acadêmica. Por volta de 1940, fez publicar um volume em que, baseado num monumental estudo de história, defendia a “abordagem indireta da estratégia”, uma forma de, através da ação periférica, desgastar o adversário nas áreas em que fosse mais vulnerável, de forma a poupar os próprios recursos, principalmente os militares.
Os escritos de Liddell-Hart eram conceituais, baseados em amplo e erudito conhecimento da teoria e história militar, e tiveram forte influência sobre a oficialidade combatente. Embora tenha dado baixa do exército em 1924, por invalidez, continuou a ser um influente pensador militar e defensor entusiasmado das forças blindadas. Falava na aplicação, por forças mecanizadas sob comando unificado, de golpes decisivos, em série, contra um mesmo ponto, de preferência o mais próximo possível das posições centrais do inimigo. Essas forças deveriam ser compostas por blindados, infantaria motorizada, de preferência transportada em veículos protegidos, e aviões. Liddell-Hart chegava mesmo a afirmar que os tanques poderiam restaurar, no século 20, a idéia mongol de mobilidade extrema – a cavalaria mongol fora o principal instrumento de conquista desse povo asiático. Sobretudo, pensava que a mobilidade poderia evitar a repetição futura dos massacres da guerra de trincheiras.
No Alto Comando, a coisa foi diferente – o descaso e mesmo a zombaria em torno de Liddell-Hart e suas idéias eram constantes. Segundo alguns de seus colegas, seriam idéias típicas de um oficial sem “aptidões esportivas” (a carreira militar dele tinha praticamente acabado, em 1918, devido a ferimentos provocados por gás). Ainda assim, quando testadas em campo, se mostravam bastante eficientes. Entre os generais, a tendência era achar que o tanque não teria como enfrentar canhões anti-tanque de grosso calibre, bem posicionados e operados. Essa era, com efeito, a idéia do Mestre-Artilheiro da Real Artilharia, general Hugh Elles, entusiasticamente esposada pelos principais oficiais-generais britânicos. Seguindo sua experiência de campanha, Elles estava seguro de que um canhão anti-tanque bem posicionado poderia pôr fora de combate qualquer tipo de tanque, e, com base nisso, era contra aumentar a blindagem dos veículos. Essa idéia teria consequências de longo prazo, pois os britânicos, pressionados por dificuldades econômicas, investiram em veículos leves, em torno de armamentos de calibre relativamente baixo.
A forte propaganda de Liddell-Hart em favor da mobilidade e do “princípio mongol” continuou, entretanto, com energia crescente. Mesmo fora do exército, o ex-capitão já era visto como o principal pensador militar da Grã-Bretanha. A pressão dos entusiastas dos blindados teve algum resultado em 1927, quando o Alto-Comando determinou a formação da “Força Mecanizada Experimental”. Tratava-se essa de uma pequena tropa, dotada de 120 veículos, dos quais apenas meia centena eram tanques médios Vickers, o “Médio Modelo II”. Desenhado a partir de um requerimento feito pelo exército no início dos anos 1920, foi a primeira máquina desenhada após a guerra, e guardava certa continuidade com os “tanques de cavalaria” projetados durante a guerra, os Whippet. Pesando cerca de 12 toneladas, chegava a alcançar 25 km/h, protegido por uma blindagem máxima de 12 mm. Era armado com um canhão de 3 libras (47 mm) e três metralhadoras .303, sendo que uma delas era coaxial e as outras estavam instaladas nas laterais do casco. A tripulação era composta por cinco homens. Apesar de suas limitações, quando lançada em manobras, a FME se demonstrava muito superior as unidades organizadas de forma clássica. Ainda assim, essa unidade revolucionária teve vida curta, sendo dissolvida depois de uma bem-sucedida manobra realizada em 1928, na planície de Salisbury. É notável que tenha atraído mais a atenção de observadores estrangeiros que dos próprios britânicos: norte-americanos e alemães ficaram bastante impressionados com os resultados da FME. Os primeiros constituíram uma força similar e os últimos traduziram e divulgaram amplamente algumas publicações que descreviam a unidade inglesa.
Entretanto, ainda que os exercícios indicassem o contrário, os tanques não eram vistos como uma arma capaz de, sozinha, abrir brechas nas linhas inimigas, infringindo-lhes danos de proporções consideráveis. A hierarquia militar britânica decididamente preferia usar, em tal função, unidades de cavalaria ou “infantaria de Guardas”, no velho estilo. Muitos dos que não viam a nova arma como digna de atenção, ainda em 1928 argumentavam que, apesar dos sucessos de 1918, elementos fortemente dependentes de máquinas não eram suficientemente confiáveis em situação de combate. Muitos dos que debateram e escreveram sobre o tema, no período entreguerras, também levantavam o argumento do custo dos tanques: os cavalos eram mais baratos e confiáveis – além de muito mais atraentes em paradas::