causa::também tem saudades::Flakpanzer Gepard::Uma boa idéia?::

Em 2012 começaram a circular rumores de que se desenhava outra “compra de oportunidade” pelo EB. Desta vez, o objetivo seria parte das ações previstas no PEE DAAe (Projeto Estratégico do Exército Defesa Antiaérea), um dos projetos estratégicos de longo prazo do EB. O projeto foi apresentado recentemente como tendo concluída sua “primeira fase”, cujo objetivo geral é atualizar o Sistema de Defesa Antiaérea da Força Terrestre (SDAAe/FT). Os trabalhos começaram há mais de doze meses e foram produzidas cerca de quatro mil especificações  detalhando os sistemas que irão compor a Defesa Antiaérea, como, por exemplo, o de armamentos, equipamentos de comunicações e de logística . A proposta está no âmbito da Estratégia Nacional de Defesa, e tem orçamento previsto de R$ 2,3 bilhões (o que, sabemos muito bem nós, cristãos, poderia ser 23 ou 230 bilhões, pois isso não significa que o dinheiro vá, de fato, ser disponibilizado…). Caso sejam de fato incluídos no orçamento da República, os recursos servirão para financiar o planejamento e aquisição dos meios adequados a proteger estruturas consideradas estratégicas para o país: usinas hidrelétricas e nucleares, aeroportos, portos e instalações de comunicações.

Os rumores, ressoados histericamente na Internet, na ocasião foram amplificados pela necessidade criada em função da proximidade dos eventos internacionais de grande porte que o país tinha se comprometido a receber – os torneios de futebol de 2013 e 2014 e as Olimpíadas de 2016. A segurança desses eventos implica em criar uma espéciede “domo” sobre os locais de realização, e o fato é que nenhuma das “forças singulares” tem tal capacidade. No apagar das luzes do ano (mais exatamente em novembro) o EB anunciou ter fechado a aquisição de um lote de blindados Krauss-Maffei-Wegmann “Flakpanzer Gepard”, equipamento alemão baseado no chassi do Leopard 1 e com mais de trinta anos de serviço ativo no exército da República Federal da Alemanha.

Trata-se de um veículo bastante interessante, destinado a fornecer defesa aproximada para colunas blindadas e motorizadas em movimento, concentrações de tropas e pontos de interesse, dentro do conceito conhecido como SPAAG (acrônimo de Self Propelled Anti Air Gun, “canhão anti-aéreo autopropulsado”). Basicamente, é um canhão de pequeno calibre, automático, montado sobre uma plataforma móvel, capaz de disparar em movimento contra alvos aéreos voando a baixa altitude num raio relativamente pequeno com relação ao ponto de emprego. O conceito não é novo, ao contrario do que se pode pensar: já na 1ª GM, ingleses, franceses e alemães experimentaram montar canhões de pequeno e médio calibres na carroceria de caminhões. Na 2ª GM, SPAAGs montados sobre chassis de tanques dos quais a torreta havia sido retirada já eram conhecidos e também já era claro que plataformas montadas sobre esteiras eram mais efetivas do que os caminhões, em função do problema da estabilidade da plataforma no momento do tiro; outro motivo era a maior habilidade dos veículos sobre esteiras em negociar com terrenos acidentados. Ao longo da guerra, a tendência foi que os SPAAGS fossem concebidos em torno  de armas automáticas nos calibres 11,7 mm, 20 mm, 30 mm, 37 mm e 40 mm. Após a 2ª GM, se consolidaram os SPAAGs instalados em veículos sobre esteiras, assim como o uso de canhões automáticos bitubo ou quadritubo. O salto foi, de fato, nos sistemas de pontaria: os sistemas óticos de busca de alvos foram paulatinamente substituídos por sistemas baseados em radar. O Flakpanzer Gepard é tributário desse conjunto de desenvolvimentos, e também da consolidação da Alemanha Federal como parceiro político e militar do Ocidente no período da Gerra Fria contra a União Soviética.  

Após a reconstituição política da República Federal da Alemanha (RFA), em 1955, o recém formado Bundeswehr (“Forças Armadas da Federação”, em tradução livre: Bundesheer – “Exército da Federação”, Kriegsmarine – “Marinha de Guerra” e Bundesluftwaffe –“Arma Aérea da Federação” ) começou a ser equipado com material de procedência norte-americana, que se mostrou pouco adequado para o papel reservado a Alemanha na defesa da Europa Ocidental. Em 1956, os requisitos de um tanque pesado (em inglês Main Battle Tank – MBT) foram apresentados pelo Bundesheer. Em 1957 RFA e França assinaram um acordo para desenvolverem em conjunto um novo tanque pesado. Divergências entre os dois países fizeram com que o acordo tivesse o destino que tiveram vários outros: foi desfeito e cada pais seguiu o próprio projeto. A França desenvolveu o AMX-30; a Alemanha, o Leopard.  O projeto foi um marco para a  RFA: pela primeira vez desde a guerra uma iniciativa de grande porte, envolvendo diversas empresas era conduzida de forma totalmente independente. O novo veículo começou a ser distribuído em 1965.

Com o Leopard ainda em desenvolvimento, em 1963, a OTAN apresentou a requisição de um sistema de defesa anti-aérea de ponto de alta mobilidade para as forças armadas de seus países membros. Essa requisição deveu-se à constatação do crescimento do poderio aéreo soviético. As aeronaves e táticas vinham se mostrando capazes de realizar penetrações bem sucedidas em baixo nível. Logo ficou decidido que o sistema deveria ser desenhado em torno do canhão Oerlikon 35 mm/90 calibres KDA, concebido na segunda metade dos anos 1950 para combater incursões de perfil lo-lo-lo (de low-low-low, “baixo-baixo-baixo” – um tipo de perfil de missão em que a aeronave busca manter-se abaixo da cobertura do radar inimigo e só é percebida quando está quase sobre o alvo). Os alemães consideraram imediatamente a possibilidade de usar o chassi do Leopard. Embora o novo blindado tenha se saído muito bem nos testes ao longo do ano de 1964, o desenvolvimento da plataforma anti-aérea mostrou-se lento em função de problemas com o sistema diretor de tiro. O radar móvel suíço Superfledermaus foi posto em serviço em 1963 pela empresa Contraves, mas levou muito mais tempo que o esperado integra-lo ao veículo alemão. O resultado é que as primeiras unidades de linha só entraram em serviço na primeira metade dos anos setenta. Em 1976 e 1977, Bélgica e Holanda adquiriram o sistema. O belga era idêntico ao alemão; já o holandês foi equipado com sistemas locais de direção de tiro instalados em uma torre totalmente redesenhada.

Quando foi posto em operação, a principal função do Gepard tinha se tornado o enfrentamento contra helicópteros “canhoneiros” (gunships). Estes tinham se tornado “moda” depois da Guerra do Vietnam e, naquela época (entre 1973 e 1975) as forças armadas soviéticas estavam cheias deles, principalmente o “tanque voador” MI24 Hind, distribuído em sucessivas versões a partir de 1972. O campo de batalha, naquele momento estava ocupado por mísseis superficie-ar que passaram a ser a principal oposição contra aeronaves.

O Gepard, que em última análise pode ser considerado conceito resultante da soma do chassi do Leopard-1 A1 com o canhão Oerlikon KDA e o Diretor de Tiro Superfledermaus, foi considerado durante muitos anos o mais eficiente sistema de canhões antiaéreos móveis disponível no Ocidente. No final dos anos 1970, os norte-americanos tentaram reproduzir o conceito no sistema DIVAD (acrônimo de Division Air Defense) juntando o chassi de um tanque M-48 Patton, descontinuado pelo Exército, uma versão local do canhão Bofors de 40mm L/70 e um Diretor de Tiro extremamente complexo, baseado no radar aéreo Westinghouse AN/APG-66, além de um sistema de telêmetro optrônico. O projeto acabou cancelado por dificuldades de desenvolvimento e pelos custos astronômicos. Outro projeto semelhante, porém mais bem sucedido foi o sistema soviético anti-aéreo 9K22, cujo desenvolvimento se deu ao longo dos anos 1970. Montado sobre lagartas, o sistema combina um canhão automático bitubo 30 mm com mísseis superfície-ar, apontados ambos por radar e tendo as informações processadas por computador analógico. Conhecido pelo codinome Tunguska, o sistema teve sua formatação baseada na experiência recolhida pelos egípcios durante a Guerra do Yom Kippur, em 1973, e ainda se encontra em serviço, em versões aperfeiçoadas. O sistema Pantsir S-1, recentemente adquirido pelo Brasil, pode ser considerado uma versão muito aperfeiçoada do 9K22.

O armamento usado no Gepard é composto por um sistema bitubo de fogo rápido KDA (esta sigla significa que a arma é alimentada com munição montada em correias de elos de metal), de 35 mm/90 calibres. Utiliza um projétil de 35X228 mm, cuja velocidade de boca é algo em torno de 1400 m/s. Cada tubo corresponde a um canhão completo, operado por recuperação de gás – o bloco de culatra é rearmado aproveitando parte da energia do disparo, recuperada sob a forma de parte do gás gerado pela explosão do propelente, como qualquer arma automática). A cadência de tiro é de 550 salvas por minuto. Como os dois canhões são articulados eletricamente, a cadência do sistema é, teoricamente, de pelo menos 1100 tiros por minuto. O alcance máximo é de uns 5500 m, e o efetivo, contra alvos aéreos, utilizando em geral munição de fragmentação acionada por espoleta de proximidade, de 4000 m. Os tubos elevam-se até 92 graus com relação ao eixo do carro, e são acionados eletricamente por servomotores de alto desempenho.

O processo de modernização do Gepard, iniciado no final dos anos 1990 implicou numa mudança de conceito. Segundo estudos norte americanos realizados nos anos 1980, canhões bitubo ou quadritubo, embora continuassem a ser eficazes contra helicópteros, tinham se tornado perigosamente ineficazes contra aeronaves. Não seria suficiente, então, aperfeiçoar o radar Superfledermaus – aquela altura, já muito ultrapassado, visto que constituía-se num sistema analógico. O conjunto de sensores usados no Gepard foi atualizados. Foi introduzido um novo radar de busca operando na banda S, capaz de cobrir um cone invertido com 15 km de raio e até 7 km de altura. Determinada a altitude e direção do alvo, entra em funcionamento o radar de acompanhamento, montado a vante da torreta, entre os dois tubos. Operando na banda K, determina a velocidade do alvo. A operação dos sistemas é coordenada por um computador, que analisa em tempo real as informações obtidas através do princípio pulso Doppler. Com um alcance de 15 km, esse sistema recebeu o acrônimo (tipicamente alemão, por não formar nenhuma palavra pronunciável nem ter graça alguma) HFlaAFüSys, ou seja, Heeres FlugabwehrAufklarungsFührungSystem, algo como “Sistema de Direção e Reconhecimento Anti-aéreo do Exército”. A renovação incluiu capacidades de contramedidas eletrônicas, decodificador IFF (Identification of Friend oor Foe – “identificação de amigo ou inimigo”, uma emissão de rádio que, decodificado pelo atacante, caso reconhecido como “amigo”, alerta o piloto e trava temporariamente o armamento) e visor termal junto aos optrônicos.

O armamento teria de ser muito melhorado, ao ponto de ser realizada uma verdadeira mudança de conceito, baseada no exame do desempenho do sistema russo Tunguska.  O Tunguska utilizava (como hoje em dia utiliza o Pantsir S-1) uma configuração de canhões de fogo rápido e mísseis superfície-ar, que foi adotada pelos usuários do Gepard.  O armamento foi acrescido do sistema de mísseis Raytheon FIM-92D Stinger,montados em lançadores duplos junto dos canhões. O Stinger utilizado é uma versão aperfeiçoada, derivada do MANPADS que adquiriu fama contra helicópteros e aeronaves soviéticas no Afeganistão. Com alcance de uns 8 km, o modelo utilizado,  também conhecido como Stinger RMP (Reprogrammable Microprocessor) foi desenvolvido no final dos anos 1980 para corrigir falhas observadas nas versões anteriores. Introduzia a  capacidade de ser rapidamente reprogramado, conforme a missão designada (o que podia ser feito, dependendo do software empregado, em 10 minutos). Posteriormente, uma versão mais aperfeiçoada, a 92E POST (Passive Optical Seeker Technique – “técnica de buscador ótico passivo”) foi introduzida. Nesta, o míssil passou a ser apontado por um visor totalmente passivo, anulando medidas contra IR, o que diminuia a possibilidade de detecção do lançador. Estes mísseis possuem um alcance de 8 km.

O programa revelou-se complicado em função mais do contexto político pós-Guerra Fria, do que por dificuldades técnicas, e foi concluído em 2004-2005. Os cortes de orçamento que alcançaram todas as forças armadas européias fizeram com que apenas 110 Gepards, de um total de cerca de 300, fossem modernizados. As 45 unidades belgas tiveram completado apenas parte do projeto, e acabaram descontinuadas antes de estarem totalmente operacionais. Nesta época, os usuários já estavam cogitando se não seria mais barato substituí-lo de uma vez. Em 2009 a Bundeswehr resolveu desativar os três regimentos equipados com o Gepard, que será substituído por um sistema mais leve, mais moderno e mais barato. Pouco mais de cem unidades do Gepard “quase zero-bala” ficaram disponíveis.

O equipamento de um regimento completo – 36 carros revisados e modernizados – foi disponibilizado ao EB em 2011. O pacote oferecido incluiu peças sobressalentes, suporte técnico e treinamento de pessoal militar. O governo alemão liberou a KWM para dar suporte ao veículo durante pelo menos dez anos, bem como a  transferência de tecnologia visando a nacionalização de alguns itens, através da sede da empresa, localizada no Rio Grande do Sul. Um exemplar foi enviado ao Brasil em outubro de 2011, para ser testado durante exercício anual da artilharia AAe, no campo de instrução de Formosa, nas proximidades de Brasília. Segundo foi dito, os militares brasileiros ficaram impressionados com a capacidade do veículo.

Tem sido dito que a aquisição do sistema alemão trará grandes vantagens para a Força Terrestre brasileira, a começar por constituir um sistema ainda atualizado e de alta capacidade operacional. Alguns especialistas dizem que a unidade EDT desses veículos é capaz de “conversar” com as FILA operadas pelo EB. Alguns dos desenvolvimentos introduzidos anos atrás no produto brasileiro estão presentes no HflaAFüSys alemão, e este que poderia, eventualmente, servir como base para a modernização das unidades nacionais, bastante defasadas tecnologicamente. A virtude pode, por outro lado, ser um problema, visto que não se sabe como será o acordo de off set (transferência de tecnologia) assinado com os alemães, e estes não costumam a ser lá muito colaborativos, nesta direção. Evidentemente que muitos itens deverão passar a ser produzidos pela indústria nacional, sob pena de inviabilizar, a médio prazo, a operação dos veículos no Brasil: peças mecânicas, alguns dos itens relativos ao armamento e, quase certamente, a munição (segundo tem sido dito, apesar do armamento ser basicamente o mesmo que os GDF001 operados pelo EB, a comunalidade entre as munições utilizadas não é total).

Como vantagens, tem sido apresentados o alto índice de comunalidade com o Leopard 1 A5 e a relação já estabelecida com o fabricante alemão, a empresa KMW. Mecanicamente, o Gepard constitui com o “Leo” uma “familia de veículos” (FoV): utilizam o mesmo chassi, motor (da empresa Motoren und Turbinen Union –MTU – MB 838 de 10 cilindros, gerando 830 hp de potência), transmissão e sistema de tração. Também são comuns a blindagem. Este aspecto certamente facilitará a logística, visto que serão utilizadas as plantas de manutenção já existentes e os procesos, quanto à parte mecánica, são os mesmos.

Tudo isso posto, o que se pode dizer é que a aquisição do Gepard, apesar das vantagens que pode representar, em termos, inclusive, de melhoria da capacidade anti-aérea do EB, de forma alguma pode ser considerada isoladamente. É, no máximo, um passo. Outras providências têm de ser tomadas, como a aquisição de mísseis de médio alcance (o que foi feito, recentemente) e a melhoria do controle do espaço aéreo, no foco tático e estratégico (o que teria de incluir a aviação civil). O futuro próximo dirá se estamos diante de um salto ou de um mico. Eventualmente, voltaremos ao assunto::  

Sobre avanços notáveis e recuos explicáveis::Leopard 1, EE T1 Osório e o destino da indústria de blindados no Brasil::

Vamos continuar no assunto.  No último post, falamos alguma coisa sobre o M8 Greyhound, que viria a se tornar um dos grandes sucessos de um dos grandes sucessos do regime militar brasileiro: a Indústria Nacional de Defesa (que chamaremos, a partir de agora, pelo carinhoso aplido de “INF”). Pois é  – por incrível que pareça, aconteceram, durante o período em que vigorou a “Redentora”, avanços notáveis. Sei que muita gente talvez discorde, um desses “avanços notáveis” foi a IND. Nos anos 1980, chegou a ser criada no país certa capacidade de projetar e fornecer equipamentos dos quais as FFAA brasileiras. Os governos civis posteriores à redemocratização deixaram o setor de defesa definhar até quase acabar, em função de políticas equivocadas, particularmente nos dois períodos FHC. Não vamos propriamente falar da indústria de defesa e de seu quase desaparecimento, nos anos 1990, mas sobre uma das mais interessantes experiências do período, que alcançou a capacidade de produzir um blindado capaz de competir com os fornecedores tradicionais. Esse artigo resultou de uma pesquisa que, embora tendo resultado em dados muito interessantes, ficou muito longa. Pois bem: para aumentar a diversão dos dez ou doze assíduos, publicaremos em três partes::

Com a aquisição de 250 Carros de Combate Leopard 1A5 pelo Exército Brasileiro fica consolidada a opção por este veículo como espinha dorsal de sua Arma Blindada. Atualmente, existe um número que alcança pouco mais de 350 unidades. Esses veículos substituíram totalmente os carros de combate leves M41C que durante mais de quarenta anos foram a espinha dorsal as unidades de blindados do EB. A opção por estes modelos, iniciada em meados dos anos 1990, tem uma história complicada, que se articula ao esforço desenvolvido a partir dos anos 1950, em desenvolver uma indústria de armamentos nacional.

Mas não é do Leopard 1 (ou “Leo”, como tem sido chamado no EB) que iremos falar. O tema, aqui é o EE T1 “Osório”, ponto máximo do conjunto de processos que, dentre outras consequências, tornou o Brasil um dos maiores produtores de blindados do Ocidente. O “Osório” foi a cristalização da tentativa de criar um carro de combate pesado brasileiro, capaz de disputar com os modelos mais avançados então existentes. O projeto foi desenvolvido pela empresa Engesa S.A. (acrônimo de “Engenheiros Especializados”), empresa paulista de mecânica fundada no início dos anos 1960. A No auge do regime militar, a empresa chegou a ser uma das cinco maiores fabricantes de material bélico do mundo com exportações para mais de 50 países.

O projeto do “Osório” foi desenvolvido nos anos 1980, e, embora concebido por engenheiros civis, acompanhava as idéias sugeridas pelos especialistas militares, que pretendiam reorganizar a arma blindada do EB. A intenção de produzir um blindado sobre esteiras no próprio país surgiu, por um lado, do sucesso da indústria nacional com os blindados sobre rodas, e, por outro, da recusa dos EUA, desde os anos 1950, em fornecer armamento atualizado para os países latino americanos. O fornecimento, financiado pelos programas de assistência militar implementado pelos EUA no âmbito dos tratados de defesa hemisférica, era realizado conforme a visão dos EUA da posição estratégica secundária ocupada pela América Latina, no contexto da Guerra Fria. No início dos anos 1960, diante da necessidade de modernização das FFAA brasileiras, alguns lotes de tanques leves M41A3, um tanque leve, foram cedidos atraves do Programa de Assistência Militar. O EB chegou a cogitar a aquisição de tanques pesados, mas a recusa dos EUA em fornece-los e a falta de recursos para adquirir modelos europeus fez o projeto ser engavetado.

A partir dos meados dos anos 1960, a renitente insistência dos EUA em recusar ao Brasil acesso a armamento atualizado fez com que as autoridades brasileiras procurassem os governos europeus. Esta iniciativa daria alguns resultados, mas também mostraria limites. Os europeus se mostravam renitentes em vender a um país que vivia com problemas de recursos. Nesta época, a situação parecia ter mudado: em função do “milagre brasileiro”, os recursos pareciam não ser problema. Assim, os europeus pareceram ver com bons olhos a oportunidade de vender ao Brasil – Inglaterra, França e Alemanha fecharam grandes contratos com o Brasil, entre os  final dos anos 1960 e a primeira metade dos anos 1970. Neste ponto, a interferência dos EUA mostrou-se um obstáculo – os acordos de restrição davam aos diplomatas e militares norte americanos a prerrogativa de resolver quais equipamentos europeus poderiam ser vendidos ao Brasil. Aqueles que incorporassem tecnologia de ponta ou peças de origem norte-americana poderiam ter a venda embargada.

No entanto, este era apenas um dos problemas. Mesmo que fossem encontrados fornecedores mais amigáveis, grandes compras não resolveriam todos os problemas do cotidiano. Os equipamentos das FFAA encontravam-se, nesta época, perigosamente obsolescentes, quando não fora de operação. Em princípio, seria preciso trocar quase tudo, e diante das prioridades de planejamento estratégico, o EB acabava ficando em último lugar. Restava à Força Terrestre tentar se virar com o que estava disponível – no caso, enormes quantidades de materiais fabricados nos EUA durante a 2ª GM ou nos anos posteriores. Nessa época, começaram a ser concebidos alguns projetos de repontencialização dos blindados de origem norte-americana disponíveis em números consideráveis nas FFAA brasileiras. O uso extensivo de material de segunda mão pelas Forças de Defesa de Israel e pela África do Sul, com momentos de grande sucesso, como a Guerra dos Seis Dias, era acompanhado com grande interesse por setores técnicos do EB. O ponto forte dessa opção é que, desde os anos 1950, havia no país uma dinâmica indústria mecânica voltada para a produção de veículos automotores, implementos agrícolas e máquinas em geral. Essa indústria mostrou-se capaz de sustentar projetos do tipo, visto que a tecnologia de motores usadas em tratores e caminhões era muito semelhante à utilizada em veículos militares. E durante a guerra,  as indústrias metal mecânica, automobilística e de transportes tinham tornado os EUA o “arsenal da democracia”.

Os projetos eram desenvolvidos pelos Parques Regionais de Motomecanização do Exército, enormes oficinas industriais equipadas para a manutenção do equipamento militar. Essas oficinas tinham sido criadas nos anos 1940, quando o afluxo de equipamento de origem norte americana, observado após o fim da 2ª GM tornou necessário montar a infra estrutura de suporte que permitiria ao próprio EB manter seus novos equipamentos funcionando. Com o tempo, diante da necessidade de manter operacionais equipamentos já obsoletos, os engenheiros do Exército começaram a projetar modificações nesses equipamentos, conforme eram estabelecidas demandas pelas forças blindadas e motorizadas. Eram realizadas experiências para a adaptação dos veículos à tecnologias mais modernas, ou pelo menos não tão desatualizadas quanto aquelas aplicadas ao equipamento. Outra questão encarada pelos engenheiros militares era o fato de que os equipamentos tinham características bem pouco econômicas, como o uso de motores a gasolina e de peças de reposição que tinham de ser encontradas no mercado externo, a preços proibitivos. Este talvez fosse o principal problema.

Alguns veículos eram modificados e serviam para avaliar as mudanças propostas. O principal objetivo buscado era sempre conseguir fazer modificações que tornassem a operaçao menos complexa e mais econômica. Uma vez considerados prontos, eram escolhidas indústrias que fossem capacitadas para desenvolver os projetos. Entre 1965 e 1980, toda uma série de veículos blindados norte-americanos foi modernizada e, em alguns casos, reconcebida – como foi o caso do carro de combate X1A2, “Carcará” desenvolvido a partir de uma proposta do Exército a partir do M3A1 “Stuart”, que existia em grande quantidade no país a 2ª GM. A conjuntura vivida pelo país nesta época – o “milagre brasileiro” – favorecia a parceria do EB com certos ramos da indústria, que viam nas necessidades da corporação um nicho de mercado a ser explorado.

Mas os motivos são mais amplos, alguns de ordem econômica e outros de ordem não econômica que levaram à implementação da IND no país. Dentre os da ordem não econômica, talvez o mais importante seja estratégico: o país procurava garantir-se contra a interferência político diplomática, em particular dos EUA, sobre a aquisição de equipamento militar; dos motivos de ordem econômica, a produção de armamento poderia estar no âmbito das políticas de substituição de importações, que eram buscadas no país desde os anos 1950. É lógico que as duas ordens de motivos se combinam, e não se pode falar apenas em uns ou outros, mas o fato  é que os motivos políticos parecem anteceder os econômicos, e tiveram peso maior no início do processo.

O interesante é que a prática de repotencializar equipamento obsolescente criou na indústria certa capacidade de fazer projetos. Isso vinha desde os anos 1950, quando o Centro Tecnológico do Exército (CTEx), criado a partir de um departamento de normalização para armamentos e munições, começou a desenhar projetos de armas. Alguns desses projetos foram repassados para empresas privadas selecionadas em função da capacidade de desenvolve-los.

A história é longa. Continuará com outra parte ainda esta semana e a última, dentro de uns dez dias::

M-8 Greyhound::O avô do Cascavel::

Passados os “temas polêmicos”, vamos a um menos polêmico… Ou talvez nem tanto. Tanto quanto a Força Aérea e a Marinha – sobre cujas agruras falamos, ao longo dos últimos anos, um pouco mais, o EB costuma a ser tratado pelos governos, sejam militares  ou civis, a pão e água. Sem dispor de fundos para adquirir equipamentos atualizados, o EB costuma a se virar de três maneiras: adquire equipamento de segunda categoria, nos EUA e, muito menos, na Europa; moderniza equipamento obsolescente, de modo a possibilitar seu uso durante mais algum tempo; investe recursos pesquisando formas de produzir equipamento. Ao longo doos últimos 60 anos, algumas instituições como o CTEx (Centro de Tecnologia do Exército) e o IME (Instituto Militar de Engenharia), que se tornaram centros de excelência em pesquisa aplicada. Essas instituições desenvolvem pesquisas que são repassadas, quando da operacionalização, à empresas privadas, que colocam os projetos em produção. Ultimamente, foi exatamente o que aconteceu em relação ao novo veículo blindado que deverá começar a ser distribuído às unidades de infantaria e cavalaria blidada do EB – o “Guarani“. O CTEx desenvolveu o projeto e a empresa IVECO, filial da FIAT, o colocará em produção. O “Guarani”, um VBTB de seis rodas tracionadas, deverá substituir o “Urutu”, também desenvolvido pelo Exército, mais de quarenta anos atrás. Naquela ápoca, os problemas eram semelhantes – o EB estava às voltas com a obsolescência de seu equipamento, que, em boa parte, remontava à segunda Guerra Mundial. Vamos apresentar uma dessas peças. Venerável. E que acabou originando um dos primeiros grandes sucessos da indústria de defesa nacional::

No início da 2ª GM, muitos exércitos faziam uso extensivo de carros blindados sobre rodas. A Blitzkrieg, nova modalidade de doutrina militar desenvolvida nos anos 1930 pela Alemanha, fazia amplo uso de operações motorizadas e tinha introduzido, desde seus primórdios, a utilização de carros blindados sobre rodas como elementos de unidades de reconhecimento. Em 1939 as Divisões Blindadas (Panzer), Divisões Ligeiras (Leichtdivisionen – divisões blindadas com um complemento menor de tanques) e Divisões de Infantaria Blindada (Panzergrenadierendividisonen) estavam amplamente dotadas de carros blindados, chamados Panzerspahwagen  – Leichte (leve) e Schwere (pesado), de até 8 rodas, equipados com metralhadoras e canhões automáticos que variavam entre 2 cm e 3 cm. O desempenho dessas máquinas era considerado excelente para as funções que deviam cumprir – reconhecimento e exploração avançada – dada a alta velocidade e mobilidade, embora a capacidade “fora de estrada” fosse limitada. Os britânicos também faziam extenso uso de carros blindados sobre rodas, particularmente no Norte da África e Oriente Médio, onde a configuração do terreno favorecia, em particular, esses veículos.

Os norte-americanos, que já naquela época, sediavam a mais avançada indústria de veículos automotivos do mundo, paradoxalmente eram o país industrializado que menor uso fazia de carros blindados. O problema era a doutrina. Durante os anos 1920, a doutrina norte-americana de combate motorizado baseava-se no conceito de “cavalaria mecanizada”, que punha demasiada atenção no deslocamento de veículos motorizados por estradas, para enfatizar a velocidade, tida como fator de choque – chegaram a ser distribuídos tanques que, em estrada, se deslocavam sobre rodas, sem as esteiras. Os americanos acreditavam que a velocidade seria uma vantagem, visto que poderia prover proteção adicional a veículos relativamente leves. Como desdobramento dessa doutrina, surgiu, no final dos anos 1920, a idéia de scout car (algo como “carro escoteiro”, “carro que vai na frente”).

A idéia começou a ser desenvolvida pelo Departamento de Munições do Exército dos EUA (US Army Ordnance Department), no início dos anos 1930. Tratava-se de um veículo de reconhecimento, rápido e manobrável, cujas tarefas seriam a exploração da frente e identificação das unidades inimigas, e, eventualmente, apoiar ataques pelos flancos do adversário. Esses veículos de reconhecimento começaram a ser distribuídos em meados dos anos 1930. Referenciados pelo Exército como M1, M2, M3 e M3A1 (o último modelo distribuído, já durante a guerra) , eram, essencialmente, caminhões dotados de blindagem leve e armamento muito fraco (normalmente uma metralhadora Browning cal. .50 não protegida). Tinham 4 rodas tracionadas, mas o sistema, pensado para incorporar o máximo de peças oriundas de veiculos civis, revelou-se bastante ineficaz. Como resultado esse tipo de veículo praticamente só tinha bom desempenho em estrada ou terreno plano. A doutrina de “cavalaria mecanizada” implicava que pudessem conduzir um esquadrão de “infantaria mecanizada”, que seria colocado junto da frente de combate. Essas unidades teriam o apoio de “tanques de cavalaria”, rápidos e levemente armados.

A avaliação da Guerra Civil Espanhola mudou esse quadro, pois os veículos sobre rodas, naquele conflito, foram amplamente superados pelos tracionados a esteiras, em função da rede de estradas deficiente da Espanha. Também ficou claro que os tanques armados com canhões de tiro rápido superavam os tanques “de infantaria”, armados com metralhadoras. Em consequência, a doutrina norte-americana foi modificada, e passou a enfatizar unidades maiores, dotadas de tanques e veículos assemelhados, mais pesados, melhor protegidos e armados. A velocidade passou a ser articulada ao rompimento, ou seja, a capacidade das unidades em superarem o adversário e se manterem em campo até a chegada da infantaria convencional, transportada em caminhões. Com o início da guerra na Europa e o avassalador sucesso das unidades blindadas alemãs, o novo conceito se consolidou, e jogou a  “cavalaria mecanizada” para segundo plano, embora sem chegar a extingui-la.

Scout cars e “carros blindados” eram, essencialmente, veículos de “cavalaria mecanizada”, e os últimos começaram a ser projetados quando aquela arma já estava em decadência. O que os distinguia dos scout cars era o fato de serem totalmente fechados e disporem do armamento instalado em uma torre girante. Nas novas “divisões blindadas”, que começaram a ser organizadas a partir de 1939, o reconhecimento era cumprido por tanques leves, muito rápidos e armados com o canhão M6 de 37mm. Entretanto, diversas iniciativas para conceber um modelo viável de CB começaram a ser tomadas, pois o Exército sentia que ainda precisava desses veículos, principalmente como caçadores de tanques. Seriam, basicamente, plataformas concebidas em torno de uma variação anticarro do canhão M6. Imediatamente antes da entrada dos EUA na guerra foram examinadas propostas, referenciadas como T17 e T17E (o T significa, no caso ,”Test”, sendo que a letra M, de “Model” é adotada apenas depois do produto ser aprovado e adquirido pelo Exército dos EUA), da empresa Chevrolet. Foram rejeitadas pelo Exército como muito grandes e relativamente frágeis (posteriormente, já durante a guerra, cerca de 2000 foram entregues à Grã Bretanha nos termos dos acordos Lend-Lease), mas não chegaram a ver ação no norte da África. Um punhado de T17E veio parar no Brasil.

Quase ao mesmo tempo que o  T17 era testado, o Exército dos EUA recebeu para exame, três outros desenhos, denominados T21, T22 e T23. Os três concorrentes eram parecidos, e o T22 foi adotado em função da capacidade da empresa Ford de entregar uma grande quantidade ainda em 1942, visto que os veículos foram considerados adequados para emprego na campanha da África do Norte. Alguns testes mostraram claramente que a função original pretendida pelo Exército, de caça-tanques, não poderia ser cumprida pois o projétil perfurante de 37 mm não perfurava a blindagem frontal nem mesmo do então obsolescente Panzer III. Como o carro era relativamente veloz, manobrável e guardava certa semelhança com o caminhão médio de 2 ½ toneladas, o que o tornava muito fácil de manter, acabou sendo adotado como carro de reconhecimento, nas unidades de “cavalaria mecanizada”. Na nova doutrina norte-americana, essas unidades, dotadas de veículos mais leves e velozes, deviam deslocar-se nos flancos das unidades blindadas, buscando explorar as linhas inimigas. Isto implicou em dotar o modelo de um rádio de longo alcance e mais um tripulante, sentado do lado direito do motorista. Na torreta ficavam o comandante (geralmente um terceiro-sargento ou cabo), que também cumpria funções de operador da metralhadora.

O novo blindado, referenciado pelo Exército como M8, começou a ser distribuído na primeira metade de 1943. Os ingleses, que desde a 1ª GM denominavam os veículos de cavalaria blindada com nomes de cães, passaram a chama-los de Greyhound (“galgo”, um tipo de cão de caça à raposa muito veloz). O Exército dos EUA os adotou meio de afogadilho, e tinha motivos para tanto. No norte da África, praticamente sem estradas, os scout cars revelaram-se pífios: eram mecanicamente frágeis, gastavam muito combustível, eram mal protegidos e pior armados. Algumas unidades chegaram a experimentá-los como transportadores de tropas, mas a tendência do veículo em atolar na areia acabou por torna-los muito impopulares.

Distribuídos os M8 em quantidades razoáveis, às vésperas da invasão da Sicília, as unidades de combate começaram a descobrir as limitações do veículo. A principal era sua limitada capacidade fora-de-estrada. Em situações que envolvessem terreno mole ou muita lama, o veículo atolava com certa facilidade. O pessoal de tropa atribuía o problema ao motor. Adaptado a partir de um modelo civil, de seis cilindros, com cerca de 110 hps, era considerado fraco para distribuir potência pelos seis rodízios, cujos pneus eram consideravelmente pesados. A distribuição das rodas foi considerada muito boa para rodar em estrada, onde o carro alcançava facilmente os 90 km/h, em quarta marcha, sem perder a estabilidade. Entretanto, esse desenho comprometia o desempenho fora-de-estrada pois, em terreno acidentado, a distância entre as rodas também acabava por se transformar num problema. O resultado é que, em certas condições, o M8 se saía ainda pior que os scout cars que devia substituir.

Outro problema era a proteção. A blindagem era inoperante contra qualquer coisa maior do que o projetil 7.92X57mm (o IS, padrão da Wehrmacht); o projétil alemão de 3 cm perfurante, disparado por uma arma anti aérea introduzida em grandes números a partir de 1944, frequentemente usada em alça zero (com o tubo na horizontal),  atravessava qualquer ponto do casco do veículo. A grande vantagem do M8 era sua torreta girante, acionada por um sistema hidraulico de operação manual, que permitia ao carro atirar com seu canhão em todas as direções, embora o veículo tivesse de parar de rodar para que o disparo fosse realizado. O restante do armamento consistia em uma metralhadora coaxial Browning .30 (cal 7.62X63 mm – a onipresente M1919A4) e outra, pesada de .50 modelo M2,  montada num reparo móvel, junto à escotilha da torreta. Esta que podia cumprir funções anti aéreas e era soberba contra veículos não protegidos e tropas desmontadas. Mas, como se tratava sobreturo  de um veículo de reconhecimento, cuja ênfase estava na velocidade, o armamento acabava sendo secundário.

De qualquer maneira, o M8 era uma plataforma mais versátil, manobrável, melhor protegida e armada que os scout cars White (quase todos eram projetos da fábrica White Motor Co.) e, em 1944 quase não havia mais destes veículos em unidades de primeira linha, estando relegados a funções não-combatentes. Nas unidades de combate mecanizadas e em algumas grandes unidades de infantaria, o CBR M8 foi colocado em tarefas de reconhecimento e patrulha. Na cavalaria mecanizada, o reconhecimento buscava fazer contato com unidades inimigas de modo a estabelecer com segurança sua localização e movimentos e avaliar a composição e potência. O poder de fogo, nesse caso, não precisaria ser muito pesado, pois a unidade, geralmente com força de batalhão ou companhia reforçada, não devia enfrentar o adversário, mas apenas mantê-lo sob contato e observação: o importante era manobrar bem e, se necessário, sair rápido da alça do adversário para avisar os “grandões” da presença e posição deles. Nessas condições, o canhão de 37 mm, de carregamento manual, combinado com as metralhadoras, era considerado suficiente. Assim, embora fosse difícil ver os  M8 atuando em combinação com tanques, seu uso em combate urbano foi bastante frequente, visto que ao contrário dos blindados, manobrava bem nos espaços fechados das pequenas cidades italianas, francesas e alemãs. Nessas condições a infantaria de assalto chegava a preferir contar com os CBR do que com bombardeios prévios de artilharia, pois as cidades arrasadas eram ótimos bastiões para defensores decididos dotados de armas leves. O pequeno canhão do M8 não chegava a derrubar uma casa mas acabava com um bastião, quando usado contra portas e janelas, e a massa do carro provia proteção razoável contra armas de infantaria.

O final da 2ª GM não foi, de modo algum, o final da carreira do M8. Produzido em números bastante grandes (mais de dez mil foram distribuídos), ele podia ser visto em todas as frentes. O interesante é que, se na Europa os CBRs fugiam diante do menor sinal da presença de canhões ou armas AC portáteis (os indefectíveis Panzerfaust e Faustpatronne distribuídos a três por dois na fase final da guerra), no teatro do Pacífico chegaram a cumprir a função original de caça-tanques em divisões de infantaria, em função da inexistência de oponentes razoáveis do lado japonês.

Finda a guerra mundial, o Exército dos EUA começou a descomissionar os seus, mas a Guerra da Coréia, iniciada menos de cinco anos depois de finda a outra, reverteu a tendência. Não que tivessem voltado à ativa, na pátria de origem: depois da 2ª GM, os norte-americanos desistiram de usar CBRs em suas unidades blindadas e mecanizadas, e planejavam distribuir, a partir do início dos anos 1950, uma versão implementada do excelente tanque leve M24 Chafee. Este era o próprio tanque de cavalaria, dentro da noção norte-americana. Começou a ser distribuído em meados de 1944, para substituir o muito obsoleto M5 Stuart. Seu desenho, baseado na experiência de combate e no exame de exemplares alemães capturados, foi considerado excelente: era leve, muito manobrável, tinha baixa silhueta e era o primeiro carro de combate norte-americano que incorporava, desde a prancheta, o conceito de “blindagem escorrida” (sloped armor), blindagem composta por chapas usinadas de tal forma que diminuiam o peso do veículo sem comprometer-lhe a proteção. Entretanto, o canhão de M6 75 mm/39 calibres “aligeirado” (com o tubo feito para ser mais leve), projetado para ser usado em aviões de ataque a navios, foi considerado de baixo desempenho, embora muito mais efetivo do que o velho M3 de 37 mm.  Era uma peça excelente, mas o novo tanque deveria ser um pouco mais:  mais pesado, dotado de um canhão mais eficiente; e também pensado dentro da nova doutrina de aeromobilidade – devia ser leve o suficiente para entrar em avião de transporte. O que surgiu desse esforço foi M41 Walker Bulldog, que entrou em serviço em 1953. Construído aos milhares, durante mais de dez anos, passou a ser considerado o “carma” das forças blindadas brasileiras, que operaram quase 400 deles durante mais de trinta anos: barulhento, mal-cheiroso e viciado em gasolina de avião. Quando foi modificado, por obra dos mágicos do CTEx, continuou barulhento e mal-cheiroso, mas pelo menos passou a consumir óleo diesel.

Mas isso é outra história. Se por um lado a nova doutrina aposentou de vez os M8 nos EUA, o país viu-se, de uma hora para outra, com uma quantidade razoável de unidades em estado de novas para serem distribuídas entre os aliados. Assim, durante o conflito coreano e depois, na Indochina francesa, o “carrinho” continuou a ser visto em grandes números. Os maiores exércitos (a França recebeu mais de 400 deles) somente os descomissionaram no final dos anos 1950 e, ainda assim, foram repassados para países como Vietnam (então começando a mergulhar na guerra contra as guerrilhas revolucionárias), e as repúblicas centro- e sul-americanas.

O EB adquiriu intimidade com os M8 a partir da FEB. Estruturada como uma divisão de infantaria norte-americana de primeira linha, a 1ª DIE (Divisão de Infantaria Expedicionária), o elemento combatente da FEB, tinha mais de 15.000 efetivos em sua ordem de batalha e estava dotada de uma unidade de reconhecimento e escolta organizada à maneira da cavalaria mecanizada norte-americana. Sua origem era uma das unidades do EB cujos elementos tinham recebido equipamento de origem norte-americana: o 2º Regimento Motomecanizado, unidade experimental de infantaria motorizada aquartelado no Rio de Janeiro. O 3º Esquadrão de Reconhecimento e Descoberta foi incorporado à 1ª DIE em fevereiro de 1944, e teve mudada a designação para 1º Esquadrão de Reconhecimento. A pequena unidade embarcou para a Itália em junho de 1944, sem equipamento, e chegada ao teatro em 16 julho de 1944, foi instalada nas cercanias de Nápoles. Pouco depois, recebeu parte do equipamento e treinamento para usá-lo. Em 15 de setembro parte para a primeira missão: fazer o reconhecimento de uma área adjacente à frente para onde tinha sido destacada a FEB. Tinha então a força de pelotão e oito viaturas. Em novembro de 1944 atingiu sua dotação definitiva: em torno de 200 efetivos (inclusive oito oficiais), com 15 M8 no elemento principal, 5 transponrtes meia-lagarta (tipo White M3) e um punhado de outros veículos motorizados, incluídos aí 24 jipes (chamados, no jargão militar, de “viatura de 1/2 ton 4X4”). Sua atuação mais importante foi durante a batalha pela tomada de Montese, única vez em que atuou de modo integrado com toda a grande unidade brasileira. Nessa época, o comandante era o capitão Plínio Pitaluga, cavalariano considerado pelos mentores norte-americanos um dos mais competentes oficiais integrados à FEB, e dos poucos que, no EB daquela época, entendia plenamente o caráter da guerra moderna. Na ofensiva final, entrou em combate várias vezes e conseguiu levar seus CBRs, no final de abril, até as fraldas dos Alpes, onde fez a ligação com as forças francesas.

Não deve ter sido por este motivo que os oficiais brasileiros passaram a adorar o M8. No Brasil já haviam, desde 1942, um punhado de T17, um veículo de três eixos tracionados, projetado em 1940 para atender aos ingleses, que usavam esse tipo de equipamento em grande quantidade, na África do Norte. Convocados pelo governo, os engenheiros da Ford e da GM os projetaram sem fazer idéia de onde e como seriam usados. O resultado foi uma espécie de “caminhão de mudanças” subpotenciado, em função de um motor originalmente projetado para acionar geradores e máquinas estacionárias – o mesmo depois usado no M8, o Hercules JXD. Imaginando melhorar a estabilidade, os engenheiros da Ford projetaram um tipo de seis rodízios tracionados, impulsionado cada grupo de três por um motor, cada motor com a própria caixa de mudanças e sistema de transmissão. Parece piada, mas, segundo consta, os engenheiros imaginaram que essa solução facilitaria a operação do veículo no deserto – que achavam ser o que aparecia nos filmes de Hollywood: uma enorme praia de areia fofa, só que sem água à vista. Não concebiam que em tal paisagem existisse terreno consistente e, muito menos, estradas de terra socada. O resultado foi um pesadelo mecânico, que os ingleses detestaram, mas como não estavam em condições de reclamar, aceitaram assim mesmo. Mas não chegaram a usá-los no deserto, pois a guerra lá acabou antes. Mandados para a Itália, os Staghound (um tipo de cão de caçar veados), muito largos (os engenheiros da Ford não imaginavam como seriam as estradas e aldeias européias) saíram-se pessimamente nas estreitas ruelas italianas. Boa parte ficou nos EUA, que acabaram os usando para treinamento de elementos da Guarda Nacional e em tarefas de segurança interna. Nem notação militar a geringonça recebeu.

Quando o Brasil entrou na guerra, os americanos começaram a enviar equipamento mais atualizado para cá, inclusive blindados, que os militares locais queriam muito, mesmo sem saber o que fazer com eles. Muitos oficiais foram mandados para o estado da Louisiania, fazer cursos de guerra mecanizada – Pitaluga foi um, o então capitão Ernesto Geisel, outro. Durante a guerra, o EB chegou a reivindicar a formação de uma divisão blindada de modelo norte-americano, mas a escassez de equipamento – em 1944, a indústria norte-americana funcionava no limite – fez o projeto ser engavetado. No entanto, algumas quantidades de material moderno ou razoavelmente atualizado foi providenciada. Foram recebidos tanques M3 Grant, um tipo baseado nos desenhos franceses do entreguerras, já obsolescente, Sherman M4 de várias versões, em número suficiente para formar uma unidade denominada Companhia-Escola de Carros de Combate Médios. Nos anos subsequentes à guerra, o EB recebeu carros de segunda mão, revisados, diretamente dos estoques do Exército dos EUA. Também foram recebidos, entre o final dos anos 1940 e início da década seguinte, centenas Shermans, Greyhounds, meias-lagartas White, de tanques leves M3 e vários tipos de viaturas não protegidas e tratores. Esse equipamento foi reunido, principalmente no Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, para formar unidades blindadas e mecanizadas, no estilo norte-americano. No entanto, embora a partir de 1947 os norte-americanos tenham passado a instruir o Exército Brasileiro regularmente, a quantidade de equipamento enviada para cá, nos termos dos acordos de defesa mútua e assistência militar, nunca chegou a ser suficiente para formar grandes unidades com o efetivo das norte-americanas. E nem o país, tinha, naquela época, recursos técnicos, indústria ou infra-estrutura para apoiar o funcionamento de grandes formações mecanizadas. A doutrina foi relativamente bem absorvida por aqui – os oficiais brasileiros, oriundos da classe média urbana, eram considerados preparados, no sentido intelectual, e o EB tratou de criar escolas de formação e unidades-escolas, que difundiam os ensinamentos repassados pelos EUA e os adaptavam aos padrões brasileiros. Por exemplo, nos anos 1950, com base nos ensinamentos adquiridos na 2ª GM, os EUA desenvolveram uma doutrina de deslocamento aeromóvel impossível de ser reproduzida em condições brasileiras. Ainda assim, foram enviados para treinamento nos EUA alguns oficiais e graduados, e uma escola de formação foi criada, denominada “Núcleo da Divisão Aeroterrestre“. Com base nessa unidade, cujo efetivo inicial era pouco maior do que uma companhia, foi formada uma unidade paraquedista com força de batalhão reforçado (o Regimento de Infantaria Paraquedista) e uma de infantaria transportada em aviões, dotada de complemento de artilharia e viaturas. A mesma coisa se deu com o uso de mísseis: pequenas quantidades de equipamento eram adquiridas onde estivessem disponíveis e reunidas em unidades-miniatura, destinadas a testar doutrinas de emprego, adaptá-las as condições nacionais e examinar os equipamentos.   

Essa forma de ação revelou-se visionária: durante os anos 1950, em função das tribulações políticas locais, os EUA passaram a limitar o acesso do país a equipamento moderno. O resultado é que em meados dos anos 1960 o EB estava equipado com um inventário de material obsoleto originado nos meados dos anos 1940. Por outro lado, para manter em condições mínimas de aprestamento a ordem de batalha disponível (aproximadamente um corpo blindado e dois de infantaria, num total de mais ou menos 140.000 efetivos), um grande esforço foi feito, a partir dos anos 1950, para dotar o EB de infra estrutura de apoio técnico e logístico. Como o equipamento norte-americano era considerado muito confiável e fácil de manter, em termos mecânicos, os militares brasileiros passaram a fazer uma série de modificações no equipamento disponível, a medida em que este chegava ao limite de sua vida útil. No início dos anos 1960, era o que acontecia com o material rodante, e os norte-americanos faziam ouvidos de mercador à insistência dos militares brasileiros por equipamento atualizado. Quando resolviam despachar equipamento novo, este era considerado leve demais – é o caso dos blindados: o EB queria tanques M60, tiveram de se contentar com os M41A: queria mísseis terra-ar e radares de busca, tiveram de se lambuzar com algumas baterias de canhões semi automáticos Bofors apontados por telemetros visuais. 

Foi então que resolveram tomar providências, no final da década de 1960. Mas onde entra o cascavel EE9, o mais bem sucedido produto da indústria nacional?.. Bem, fiquem com esta pergunta e divirtam-se bastante enquanto aguardam o próximo capítulo desta novela::                

Algumas reflexões sobre o Exército Brasileiro::Sobre equipamentos e modernizações::

Notei, revendo os posts publicados no causa:: ao longo dos últimos anos, que, quando o assunto é Brasil, a maioria deles diz respeito à Força Aérea e à Marinha. O Exército Brasileiro, força singular criada em 1822, e que teve significativa presença ao longo de nossa história, ficou relegado a um pouco honroso terceiro posto. Quando o assunto é rearmamento, então, quase nada diz respeito à corporação verde-oliva. Tentarei corrigir essa injustiça para com nossos milicos. causa:: irá publicar, neste post e no próximo, dois artigos que dizem respeito à questões ligadas à doutrina e ao equipamento da Força Terrestre brasileira. Divirtam-se!::

Parte1Outro dia, li uma notícia bastante elogiosa em torno de um batalhão de engenharia de construção envolvido nas obras do complexo de transposição das águas do Rio São Francisco. Ao que parece as pessoas comuns entendem que se trata de uma “aplicação construtiva” dos meios militares nacionais, da mesma forma que também é entendida como “aplicação construtiva” a utilização das tropas regulares em tarefas de policiamento urbano. De outra forma, as pessoas parecem entender, os militares estariam parados nos quartéis, sem nada a fazer, porque somos uma nação pacífica. É umavisão algo tosca do que significa a tarefa de prontidão para a defesa da soberania nacional.

Nessa direção, talvez o EB seja, dentre as forças singulares, a mais problemática. Em primeiro lugar, por seu volume: dos quase 300.000 efetivos das FFAA brasileiras, mais da metade (em torno de 190.000) estão integrados ao Exército. As atribuições constitucionais das corporações, são basicamente as mesmas: garantir a integridade do território nacional contra inimigos externos, como também apoiar, em caso de necessidade, as forças de segurança, para a garantia da ordem interna – vide as atuações do EB e da Marinha na pacificação do Complexo do Alemão (Rio de Janeiro) e no policiamento da cidade de Salvador, recentemente. O problema é que uma boa parte dos formadores de opinião parece pensar que, no Brasil, seria esta última a principal função das Forças Armadas. Não repetirei que é um equívoco, que nenhum país tem Forças Armadas apenas em função da hipótese de guerra, etc., etc. O fato é que, desde os anos 1950, as FFAA têm sido colocadas como última prioridade nacional. A manutenção da operacionalidade é um problema cotidiano para cada uma das Forças Singulares. No EB não é diferente – apenas aparece menos. O que não significa que a Força esteja parada: temos observado, ultimamente, a aquisição, depois de mais de quarenta anos, de um novo modelo de armamento de infantaria; um novo veículo blindado sobre rodas deverá, a partir de 2014, substituir os venerandos Urutus e Cascavéis. Para essas compras, os recursos já estariam previstos no orçamento da Força – se bem que… Sabe como é… Recursos sempre podem ser contingenciados. Também existem estudos em andamento para a aquisição de peças de artilharia e de sistemas de mísseis antiaéreos atualizados, mas, como de hábito, não existem recursos previstos para efetivar as aquisições. Vale apontar que a situação da artilharia antiaérea e das mais criticas – seria mais correto dizer que o país não possui defesa antiaérea alguma. Um punhado de canhões antiaéreos de 35 e 40 mm, sem sistemas de detecção antecipada nem equipamentos automatizados de pontaria (quem quiser ficar deprimido pode ler sobre o assunto aqui). Apesar de todas as premências constatadas, e de sua urgência, uma decisão vem sendo cozinhadas em banho-maria desde 2009. De fato, como no caso da Marinha e da FAB, o EB tem se virado com modernizações de equipamentos obsolescentes e compras de oportunidade.

No primeiro caso, encontra-se a decisão de assinar um contrato para a modernização do VBTP-L (“Viatura Blindada d e Transporte de Pessoal – Lagartas”) FMC M113, de origem norte-americana. Esse veículo existe em números consideráveis no inventário da Força Terrestre, na qual começou a ser introduzido em meados dos anos 1960, em função da modernização das tropas de infantaria blindada. Atualmente, as tropas de Infantaria Blindada do EB, intregradas às Brigadas de Cavalaria e Infantaria Blindadas, utilizam mais de 500 unidades dessa veterana peça de armamento (Cada BtlInfBld reúne algo em torno de 70 VBTP-L – se você estiver interessado em saber alguma coisa sobre o M113, leia aqui mesmo, no causa::).

A modernização deixará os M113 brasileiros em estado de novos, mas nada além disto – basicamente, o equipamento continuará o mesmo. A empresa anglo-norte-americana BAE Systems Land and Ordnance (que atualmente controla as empresas norte-americanas responsáveis pela fabricação e manutenção do M113) deverá executar, em conjunto com o Exército e em território brasileiro, a modernização de um lote inicial de 150 unidades do blindado, embora seja prevista a extensão do processo para até 400 deles.

A decisão de modernizar os M113 do EB é polêmica, mas tem sido considerada razoável, visto que essa viatura ainda é utilizada em grandes números, por diversos exércitos, e a BAE Systems fornece um “kit” de modernização bastante procurado, que é basicamente o objeto do contrato assinado entre o governo brasileiro e o governo norte-americano, através do programa FMS (Foreign Military Sales). As críticas à adoção da solução pelo Brasil partem do pressuposto de que o M113 é um sistema obsolescente, o que não é totalmente verdadeiro. Mas ainda que fosse, as funções cumpridas por esse equipamento, no âmbito da doutrina de combate blindado do EB não o poderiam ser pelos VBTP-MR (“Viatura Blindada de Transporte de Pessoal – Média sobre Rodas”) existentes, tais como o Engesa EE11 “Urutu” e o futuro Iveco “Guarani”. A questão é que, segundo alguns especialistas, o EB deveria levantar a possibilidade de incorporar um verdadeiro “Veículo de Combate de Infantaria” (em inglês, IFV, Infantry Fighting Vehicle, “Veículo de Combate de Infantaria”) equipamento que nunca fez parte do inventário nacional. Trata-se de um veículo capaz de transportar uma esquadra de infantaria, mas equipado com armas capazes de apoiar a tropa no momento do desembarque, ou de suportar a tropa lutando a partir de seu interior. Por sinal, é bom que se diga logo que o termo de comparação para esses veículos não é o M113, cuja categoria é a dos APC (sigla de Armored Personnel Carrier, “Transportador Blindado de Pessoal”). A estrutura deste não permite a montagem dos sistemas de armas necessários, geralmente instalados em torres com capacidade de conteira de 360 graus e auto estabilização – algo do tipo do BMP3 (Sigla de Boyevaya Mashina Pyekhota – “Viatura de Combate de Infantaria”) de origem russa e do lado norte-americano, a série M2 Bradley IFV. São ambos VTBP-L que podem conduzir até oito infantes, além dos dois ou três tripulantes. O BMP3 pode receber uma gama de armamento cujo padrão é um canhão automático 2A72 de 30 mm, com 550 cargas de munição e uma cadência de tiro de 350 salvas por minuto, e uma metralhadora PKT (utiliza o cartucho 7,62X54 mm), mas pode incorporar um canhão multifunção 2A70 de 100 mm, capaz de utilizar munição convencional ou um míssil anticarro 9M117 (Stabber, no jargão da OTAN). Já o Bradley é equipado com o canhão automático M242 de 25 mm, de cano simples, com cadência de fogo de até 800 salvas por minuto; transporta também uma metralhadora M240C (utiliza o cartucho 7,62X51 mm), e também pode receber uma gama de mísseis anticarro e lançadores múltiplos de foguetes não guiados.

Esse tipo de veículo corresponde a uma doutrina que não é totalmente desconhecida pelo EB, na qual os infantes atuam em conjunto com forças blindadas apoiadas por fortes elementos aéreos, constituídos por helicópteros e caças táticos capazes de apoio aproximado de precisão (como o A10 Warthog e o SU25 Frogfoot). Já a Cavalaria Mecanizada tem por função explorar os flancos do adversário, região que, numa ação de combate, torna-se mais vulnerável, visto que o adversário é obrigado a concentrar suas forças para dar consistência à defesa.

Os veículos sobre rodas, os tais VBTP-MR, são ideais para tal tipo de atividade, em função da velocidade e manobrabilidade. Por outro lado, não são muito adequados como plataformas para armamento mais pesado, em função da estabilidade do tiro: o recuo provocado pelo disparo da peça é descarregado para a estrutura do carro, e então para o solo. Decorre daí que um sistema sobre esteiras provém maior superfície de contato, apoiada em uma suspensão mais estável. Um sistema giroestabilizado elétrico permite que o disparo seja feito com o carro em movimento, já que o balanço da plataforma é compensado, mantendo a torre estável. Em veículos sobre rodas, é possível instalar esses equipamentos, embora o processo seja mais complicado.

Ainda nos annos 1980, o EB chegou a experimentar uma versão do EE11 que se adequaria à função. Isto foi feito por meio da incorporação de uma torre Engesa MK 3, montando a versão nacional do canhão belga Cockerill de 90 mm. A adaptação não funcionou muito bem, visto que a torre não era estabilizada, o veículo não oferecia uma plataforma estável para o tiro e tudo isso o impedia de disparar em movimento. A coisa não poderia ter dado certo, pois o sistema de armas tinha sido simplesmente transposto do VBR (“Veículo Blindado de Reconhecimento”) EE9 “Cascavel”, cuja função era (e ainda é) compor elementos de reconhecimento das unidades de cavalaria mecanizada. A função primordial desse equipamento, concebido pelo Exército no início dos anos 1970 e aperfeiçoado pela extinta Engesa S.A., não seria o combate, e seu armamento destina-se basicamente a prover defesa eventual para os elementos de reconhecimento mecanizado, bem como explorar brechas encontradas nas linhas inimigas, até a chegada de forças blindadas. Desde então, o EB não incorporou novas viaturas dessa catagoria.

Resumo da ópera: mesmo com a entrada em serviço, no ano que vem, do Iveco “Guarani”, este não será substituto para os M113, que continuarão como equipamento básico dos Batalhões de Infantaria Blindada. Estes, junto com os Regimentos de Carros de Combate e os Grupos de Artilharia Autopropulsada, formam a estrutura das duas unidades blindadas do EB: a 5ª Brigada de Cavalaria Blindada e 6ª Brigada de Infantaria Blindada, grandes unidades de alto poder de choque, sediadas, respectivamente, no Paraná e Rio Grande do Sul. Por outro lado, tem sido dito que o “Guarani” poderá, no futuro, apresentar uma versão de oito rodas, montando um canhão de 105 mm. Mas, até agora, é só especulação. Quem viver, talvez veja::

Diário de viagem das férias de causa::Sobre democracia, crises e bombeiros::

Pois é… Ninguém ainda reclamou que causa:: está de férias já vão mais de dois meses. O que não significa que, neste período, eu não tenha visitado o blogue com frequência: alguns de meus próprios recursos de pesquisa estão plantados nele. Um de meus objetivos sempre foi esse: compor, para meu próprio benefício, uma pequena enciclopédia, facilmente acessível, de assuntos aleatórios em torno de temas militares, estratégia, e seus desdobramentos. E, nessas visitas, não tive como não ficar que feliz e algo pimpão ao verificar que o número de visitas diárias manteve-se constante. Com satisfação, noto que o benefício migrou para outras pessoas, que continuam a ver interesse no conjunto de postagens e, possivelmente, nas indicações de recursos de pesquisa. Tive, recentemente, duas demonstrações desse palpite – um tanto egocêntrico, reconheço: artigos do blogue foram citados por um catálogo de museu e durante um simpósio acadêmico.

Assim, sinto-me animado a continuar, apesar de uma curiosa falta de assunto que me assola – e o interessante é que assuntos não faltam. As revoltas populares no Oriente Médio, os dilemas da OTAN, que parece cada vez mais sem função; a special op meio bufa, que resultou na morte de Osama bin Laden; o estado de guerra entre Líbia e as potências (atualmente nem tão potências assim…) européias; a postura cada vez mais “assertiva” da China, cujas forças armadas crescem de maneira notável – e dentre esse crescimento, o mais notável é o da Marinha (os gastos chineses em defesa mais do que dobraram), coisa que pode indicar pretensões de projeção estratégica de poder. Também poderíamos dizer que a crise econômica européia, com a recente bancarrota da Irlanda, Grécia e Portugal, que logo podem ser seguidas por Espanha e Itália, é assunto de interesse estratégico e militar, pois já está provocando contração nos gastos militares locais. Essa contração – por sinal, observada em todo o mundo – poderá significar que logo teremos generosos oferecimentos das indústrias militares européias, de sistemas de armas modernos em condições de pai para filho. O que isso poderá significar, para nosso país? Sabe-se lá. As principais pendências das forças armadas brasileiras continuam em suspenso: não se fala mais nos caças, nem nos navios de superfície. De positivo, a aquisição, pelo Exército, de uma nova linha de VBTPs (“Viatura Blindada de Transporte de Pessoal”) – o “Guarani”, a ser fabricada pela IVECO, em Minas Gerais. Fala-se da incorporação, nos próximos 15 anos,  de algo em torno de dois e meio milhares de unidades; também anda sendo discutida a substituição do FAL como arma padrão da força terrestre.  Também poderia ser um bom assunto a aquisição, pela MB, de oito aeronaves C1Trader, dos estoques na Marinha dos EUA. Trata-se de um modelo adequado às funções de COD (Cargo Onboard Delivery, ou seja, “Abastecimento direto a bordo”) e REVO (“Reabastecimento em vôo”). São aeronaves obsoletas, mas passarão por programas de modernização, nos EUA. O que isto pode significar? Que, a médio prazo, a MB tem planos de adquirir um outro navio-aeródromo, de maior porte, e talvez ampliar a aviação naval. Ao que parece, estamos às vésperas de uma significativa reestruturação da Marinha, que se seguirá à que vem sendo feita, desde os anos 1980, nas outras forças singulares. As principais unidades da Força Terrestre tem sido retiradas das grandes cidades e transferidas para as fronteiras; a FAB começa a reposicionar seus principais meios. No caso do EB, a tendência é que nos grandes centros fiquem as organizações de ensino e treinamento, administrativas e de referência; a FAB pretende voltar parte de sua atenção para o “vazio amazônico” e para as “fronteiras verdes” onde o EB já se encontra, com seus “Pelotões de Fronteiras”, suas excelentes unidades de infantaria de selva e parte das unidades aeromóveis. A integração terá de ser considerada visto que a FAB deverá oferecer ao EB e às polícias capacidade de vigilância aérea avançada (Early Air Warning) e apoio aéreo. É claro que, em termos de Brasil, nunca se sabe, visto que os políticos daqui, independente da coloração e de serem governo ou oposição, parecem achar que o país não precisa de forças armadas (temos de admitir que a excessão foi o governo Lula, e isto os próprios militares reconhecem).

Mas o assunto militar que me pareceu mais interessante não diz respeito propriamente às forças armadas, mas à uma das “forças auxiliares” – como são chamadas, eufemisticamente, algumas das corporações policiais brasileiras: a greve do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro.

Por que? Alguns dos assíduos devem lembrar que causa::andou mexendo no assunto. Emboran ninguém pareça lembrar que os bombeiros fazem parte das corporações militares estaduais, os “soldados do fogo”, militarizados desde o final do século 19, são parte  das pequenas forças militares com que, no início do século passado, foram dotados os governos estaduais. Essas forças tinham por função manter a ordem interna (que dizer: o poder nas mãos certas), tornando mais difícil a intervenção do governo federal nos assuntos locais. De toda forma, PMs e bombeiros são corporações militares, reguladas por regras diversas daquelas que regem as categorias civis da sociedade.

E é esse o “xis” da questão: até onde eu saiba, militares não podem fazer greve. Esta é uma característica estritas dessas corporações, em todo o mundo, em função de terem sua base plantada sobre os princípios da disciplina e da hierarquia.

As corporações militares não são democracias. Isto é o mesmo que dizer que, num estado de direito, estão subordinadas aos poderes civis, e são diretamente comandadas pelo chefe do estado, visto que as FAs fazem parte da estrutura permanente do estado. Por outro lado, as regras que regem e dirimem conflitos em outras categorias da sociedade civil não têm efeito no cotidiano militar.  Vale dizer: num estado de direito, a sociedade civil é caracterizada pelo respeito à lei, pluralidade de idéias e pelo conflito mediado. Nas FAs, em última análise, o conflito não existe e as ordens e determinações de comandantes designados independente de consulta pública devem ser obedecidas sem questionamento – e ponto final. Existem mecanismos que possibilitam a um subordinado reclamar de uma ordem injusta ou de um comportamento considerado inaceitável, por parte de um comandante, mas esses mecanismos são constituídos por canais estritos, e não se assemelham aqueles vigentes na sociedade civil. Se a tropa tem reivindicações, estas devem estar de acordo com o regulamento (por exemplo: não é possível reivindicar a mudança do modelo de uniforme ou da saudação militar) e devem subir seguindo a cadeia de comando, até onde se encontre um agente autorizado a examiná-las – sempre dentro do regulamento. Pressupõe-se, entretanto, que certas questões, por serem de juízo superior, não podem ser discutidas e muito menos postas em dúvida. Questões salariais são uma dessas.

Um soldado, ou grupo deles, que se recuse a cumprir o regulamento estará comentendo uma violação gravíssima: rompendo a cadeia de comando. Em qualquer país do mundo, democrático ou não, isto tem um nome: insubordinação. Assim, “greve” numa corporação militar não passa de motim; passeata de militares, abandono não autorizado de posto. Motim não é justificável: o militar amotinado é excluído e penalizado. O abandono de posto até pode ser eventualmente justificado, mas depois de ser o transgressor preso e submetido a procedimento disciplinar. 

Assim, em primeiro lugar, a “greve” do CBMRJ é gravíssimo caso de indisciplina militar, e como tal deve ser tratado. Mas é também um angu de caroço político, dados os fatores que o cozinharam e o temperam, a começar pelo fato de que os bombeiros são muito mal pagos, e a população civil é amplamente simpática à corporação e a seus membros. Os bombeiros estão dentre as poucas categorias profissionais amadas pela sociedade (de forma mais-ou-menos semelhante, só consigo lembrar dos professores primários e de ensino médio, que os governos também vem maltratando, sistematicamente, há mais de trinta anos…). É interessante observar que até mesmo a imprensa, que não passa dia sem falar no “excesso de gastos com o serviço público” (e frequentemente acusa grevistas: causam problemas e atrapalham tudo, do trânsito à vida dos homens bons) tem colocado como “justas” as reivindicações dos soldados do fogo. A invasão do Quartel Central, no Rio tornou a situação ainda mais complicada, visto que a atitude do governador – que, em princípio, não poderia ter sido outra – de ordenar o uso da força para retomada das instalações daquela organização militar e a prisão de 429 efetivos envolvidos, catalisou a simpatia da população da cidade. Talvez facilite um pouco imaginar os soldados do BOPE entrando em greve e invadindo  o quartel da Rua Campo Belo, e logo depois, os “caveiras” promovendo uma passeata na Avenida Atlântica. É muito pouco provável que os moradores das redondezas estendessem panos negros nas janelas, como fizeram no dia do evento.

Toda essa situação foi precipitada pelo estado de penúria em que vivem  esses profissionais e, por extensão, suas famílias. Afinal, a profunda cisão que existe na sociedade brasileira, com elites gozando de todos os privilégios e a grande massa popular vivendo com dificuldades, repete-se nas forças armadas. O uso que vinha sendo feito pelo governo do estado do Funesbom, formado pela arrecadação da “taxa de incêndio”, é prova acabada do modo perverso como tais vicissitudes batem continência nas corporações militares. Tal situação tornou-se mais perceptível na medida em que, nos últimos anos, o desenvolvimento econômico do país, que possibilitou maiores chances de progresso pessoal e social a profisionais com qualificação técnica, também colocou em evidência a má situação social e econômica das categorias militares. O “oba-oba” do governo com relação ao sucesso econômico (culminando com a conversa do “pibão”, no início do ano) teve como efeito colateral evidenciar o fato de que esse mesmo governo (considerando todas os níveis), tem deixado seus servidores como última prioridade. As autoridades pedem “sacrifícios” e “paciência” a categorias que não fazem outra coisa – e no caso das categorias militares, sem instrumento algum de negociação.

A panela de pressão apitou, como se dizia em meu tempo de estudante. O apito, em minha opinião, avisa que a “questão militar” tem de ser tratada pelas autoridades com maior seriedade, e não com a tática de empurrar com a barriga e tentar jogar a opinião pública contra elas – tática por sinal usada com todo o serviço público. O governador do Rio de Janeiro, pelo modo como enfrentou a crise, parecia não dispor de informações completas sobre o problema. Quando teve de se manifestar sobre o evento do Quartel Central, o fez de meneira totalmente inepta. Pouco tempo atrás, Cabral tomou a atitude inédita – podemos dizer, histórica – de restabelecer a autoridade civil e a ordem sobre um enclave controlado por marginais armados. Naquele episódio, agiu com ponderação notável; já neste… Deveria ter chamado a atenção do público para a questão da hierarquia e da disciplina, e colocadado a questão salarial de forma honesta e direta. Preferiu invocar histórias chorosas e não comprovadas sobre “criancinhas postas em risco por baderneiros e inocentes úteis” e tentar uma saída pela tangente: oferecer gratificações que não resolveriam nada.

A mesma coisa, certamente, não acontecerá com a outra força militar estadual: a PMERJ – esta muito mais perigosa do que os simpáticos bombeiros. E é altamente improvável que aconteça nas forças armadas regulares, onde a disciplina estrita mantém tais situações sob controle. Claro que sempre pode aparecer um maluco do tipo do capitão paraquedista Jair Bolsonaro, que, em 1987, mostrou-se disposto a usar seus conhecimentos técnicos como forma de protesto contra os baixos salários que tornavam os oficiais militares reféns de administradoras de imóveis e agiotas. É muito mais provável que oficiais da FAB cada vez mais peçam dispensa muito antes do tempo para usar o excelente treinamento como pilotos de asa fixa e asa rotativa – pago com meu-seu-nosso dinheirinho – em empresas de taxi aéreo; e que oficiais e graduados da Marinha dêem baixa para ocupar lugar nos passadiçoes e casas-de-máquinas dos supply vessels que abastecem as plataformas oceânicas que logo irão tornar nosso país o terceiro ou quarto maior produtor de petróleo do mundo… Essa situação, além de deixar bem claro o uso irracional feito do dinheiro público por nossas autoridades, torna o país potencialmente refém de qualquer potência média que venha a nos atacar. Mas… Somos um país pacífico, não é o que dizem?..::

Cultura material militar::O motor, a doutrina militar alemã e sua mudança::Parte 3

Antes do acontecimento da Batalha do Rio de Janeiro, estávamos examinando como a doutrina alemã que marcou o início da 2ª GM se reflete sobre o equipamento posto pela Alemanha à disposição de suas tropas. Continuaremos agora examinando este assunto, que parece sempre interessar ao historiador militar, bem como aos especialistas em história da técnica militar. O tema central será o crescimento exponencial do porte dos carros de combate, que teve seu momento marcante no surgimento do PzKpfw VI, o arquiconhecido Tiger I. Junto com o T34, o Panther (que examinaremos em outro artigo), o Centurion inglês (que já foi examinado aqui mesmo no causa::) e o Pershing M26, parecem constituir o marco inicial dos modernos “tanques pesados”, conhecidos, em inglês, por Main battle tanks, ou MBTs. Bom, vamos ao assunto::

parte3/4Os teóricos do exército já pensavam em um “superpesado” desde meados dos anos 1930 e o projeto de uma coisa assim iniciou-se em 1936-7, mas foi sendo desenvolvido muito lentamente até que começaram a chegar relatórios da Frente Oriental. Os especialistas do exército retiraram o projeto do “superpesado” do banho-maria, pensando num blindado que pudesse lidar com tal tipo de “surpresas”. Este deveria ser especialmente bem protegido e armado, ainda que a mobilidade tivesse de ser sacrificada. Em meados de 1941 os escritórios de projetos da Henschel & Sohn, de Kassel, e da Porsche, de Stuttgart, já tinham sido convidados a apresentar propostas para um tanque do tipo, mas sem muita pressa. Depois de junho de 1941, a calma deu lugar ao nervosismo, e as autoridades militares pressionaram ambas as empresas a antecipar suas propostas. As características principais, exigências originais do HWA, eram a blindagem frontal não inferior a 100 milímetros e, como armamento principal o canhão Krupp  8.8 centímetros de dupla função.

O Doktor Ingenieur Ferdinand Porsche, amigo pessoal de Hitler, encabeçava, na época, o projeto de um carro popular que, custando 1000 marcos nacionais (Reichsmark), fosse capaz de explorar o sistema de auto-estradas (autobahnen) que era uma das jóias da coroa do plano econômico nazista. Com o rearmamento, Porsche tratou de adaptar o projeto do Volkswagen para servir de base a um veículo leve, o Kübelwagen (“carro-banheira”, apelido do Type 62) a ser usado pelo Exército como viatura de emprego geral.

Desenhar um tanque já era outra história. A equipe de Porsche vinha trabalhando, desde 1937, em regime “private venture”, num superpesado. Conseguiu um primeiro sucesso: sempre com um olho nas tendências da época, a proposta recebeu o nome de Tiger, que acabaria designando todo o projeto e seus desdobramentos.  Outros problemas menos relacionados ao marketing e mais à engenharia, não foram superados. O conceito proposto por Porsche tinha alguns elementos revolucionários, como, por exemplo, uma planta de potência eletromecânica. Dois motores de 320 hps cada um, movidos à gasolina, acionariam um gerador que, por sua ver, forneceria energia para motores elétricos de grande potência. A idéia era que os motores à explosão, ainda que menos potentes, usados como acionadores de geradores teriam seu consumo reduzido em pelo menos um terço. O problema é que o sistema, em testes, revelou-se muito frágil, e os motores elétricos, um por conjunto de esteiras de tração, eram controlados por uma caixa de transmissão que permitia a viatura mudar de direção. A geringonça mostrou-se muito complicada e dada a quebrar, além de exigir, para a fabricação, enorme quantidade de cobre, material estratégico do qual a Alemanha dispunha de fontes exíguas.

A Henschel tinha a vantagem de, sob a liderança do engenheiro Erwin Aders, acumular bastante experiência no desenho de tanques. Desde 1938 vinha sendo rabiscado o projeto de um tanque médio de 30-35 toneladas de deslocamento, mais pesado portanto que o Panzer IV, com a mesma torre e suspensão. Posteriormente, esse protótipo foi aperfeiçoado para um projeto ainda mais pesado, de 40 toneladas, em torno do novo canhão KwK 42 (75 mm/42 calibres, disparando um projétil penetrante de alta velocidade). Ambos os protótipo foram abandonados, embora o primeiro tenha sido base para um caça-tanques pesado, denominado *Selbstfahrlafette 12.8 L/61 (”Reparo automóvel” 128 mm/61 calibres), que chegou a ser testado em combate, na segunda metade de 1942.

De fato, o *desenho não foi tanto condicionado pela experiência (bem desagradável) de combate na Rússia quanto pela filosofia de projetos adotada, até então, em função da doutrina da Blitzkrieg. A proposta da Henschel, designada VK4501(H) (de Volkettenfahrzeuge ou “viatura sobre esteiras” modelo 4501), pelo exército, foi mais tarde designada pela notação Panzer Kampfwagen (PzKwg) VI, e denominada Tiger I. Era um carro de combate de desenho bastante convencional (compare o desenho do Tiger I com o do *Panzer IV), acompanhando as tendências da década de 1930, quanto ao desenho do casco e mecânica, embora bastante grande. Diversos detalhes dos dois protótipos abandonados foram incorporados ao VK4501(H): a suspensão, as esteiras de tração, o esquema interno e o motor.

Genericamente chamado de Tiger (H), o projeto Henschel utilizou, tanto quanto possível, componentes e processos industriais já existentes, no que diz respeito aos aços especiais usados nas chapas de blindagem e componentes mecânicos. Isto se explica em parte devido à racionalização de tempo de guerra: o casco do protótipo VK4501 (H) era, de fato, o redesenho de uma proposta anterior da Henschel, denominada pelo exército *VK3601. O chassi apresentava blindagem frontal usinada por inteiro, em processo de esticamento, com 100 mm de espessura; nas laterais da superestrutura (a parte exposta do casco) a proteção era de 80 mm e 60 mm nas laterais do casco (a parte que sustentava a suspensão). A torre tinha sido desenhada pelos arsenais Krupp para o protótipo da Porsche, mas foi aproveitada por sugestão do exército, embora apresentasse problemas de estabilidade. Algumas modificações propostas pela Henschel não chegaram a superar os problemas observados, que faziam o conjunto absorver mal a energia do recuo, o que podia influenciar fortemente a precisão do disparo, mesmo com a viatura parada.

A motorização consistia de um *Maybach HL 210 P45 de 12 cilindros e 21.330 cm3, esfriado a água. Desenvolvido especialmente para o Tiger, era teoricamente capaz de desenvolver 650 HPs a 3000 rpm, consumindo pouco mais de 400 litros de gasolina para cada 100 quilômetros rodados. Aí começaram os problemas: o motor era bastante compacto, mas não devido a qualquer objetivo da empresa em realizar proezas de engenharia, mas às dimensões do compartimento do motor. A proposta de um bloco de alumínio, embora tenha diminuído o peso, mostrou diversas limitações, inclusive uma tendência a rachar, quando a aceleração era elevada ao máximo. O Tiger I incorporava dois sistemas que eram novidades nas forças blindadas alemãs. O primeiro era uma caixa de marchas hidráulica ligada a uma caixa de transmissão semi-automática. O segundo era um *volante, ao invés das tradicionais alavancas de mudança conjugadas. Essa inovação tornava a direção bem mais simples. A potência era transmitida do motor para a engrenagem motora através de um eixo conectado à caixa de transmissão situada na parte dianteira do carro. A transmissão tinha oito velocidades (oito à frente e quatro para trás), e podia, pelo menos teoricamente, levar o conjunto até uma velocidade máxima de 45 km/h em terreno plano e consistente e condições de demonstração. A caixa de marchas também transmitia potência para acionar o mecanismo hidráulico da torre.

A suspensão era baseada em *barras de torção, nas quais braços móveis sustentavam *oito truques formados, cada um, por três rodízios justapostos, intercalados quatro a quatro. Cada rodízio sustentava rodas sólidas de borracha vulcanizada. Este era outro problema: as rodas de borracha tendiam a gastar-se com muita rapidez, o que aumentava os já não pequenos problemas de manutenção. O uso de rodas de borracha maciça tinha sido herdado dos outros modelos de tanques usados pela Wehrmacht, como forma de diminuir o desgaste das esteiras de tração.

As esteiras de tração eram outro problema. Estudos realizados desde a Grande Guerra já tinham determinado que a largura das esteiras, embora aumentasse o atrito durante o deslocamento da viatura, reduzia consideravelmente a pressão exercida sobre o solo. Os projetistas dos tanques alemães da primeira fase da guerra, levando em consideração as requisições do exército, privilegiaram a velocidade. Assim, a melhor opção tinha sido as *esteiras estreitas, de 38 centímetros de largura, adequadas à suspensão de truques oscilantes ligados a feixes de molas. O problema é que esses tanques foram projetados levando em consideração a rede de estradas de terra socada da Europa Ocidental. Estimava-se que os veículo teriam de rodar distâncias relativamente pequenas em terreno não preparado, e a velocidade (que podia chegar a 40 km/h), juntamente com a rapidez das campanhas (que não deveriam ultrapassar o período seco) compensariam a instabilidade do solo.  Nas estepes isso não aconteceu: o período de chuvas, que transformava o solo em um mar de lama, e a falta absoluta de estradas surpreendeu as vanguardas motorizadas da Wehrmacht, fazendo atolar até os tanques. Os relatórios de campo dos militares falavam muito na facilidade de deslocamento do T34 soviético, o que era atribuído (corretamente) ao tipo de esteiras. Assim, os projetistas pensaram, inicialmente, em esteiras de tração bastante largas, com cerca de 80 centímetros. A largura distribuía a pressão sobre o solo de forma bastante eficiente, mas tornava o conjunto bem mais largo e difícil de transportar em vagões de trem especiais (nos quais os tanques eram levados até o teatro de operações). Como a suspensão tinha levado em consideração as esteiras largas, a solução foi desenhar um *segundo tipo de esteiras, chamadas “*de transporte”. Entretanto, as esteiras tinham de ser trocadas, o que ocasionava uma operação mecânica que podia durar até quatro horas, pois implicava que o conjunto externo de rodas tivesse de ser desmontado. Esse problema só foi resolvido com o redesenho dos rodízios e o sumiço das rodas de borracha.

Revolucionário mesmo era o armamento. O tanque pesado pretendido pelo exército deveria ser armado com uma peça de artilharia capaz de penetrar a blindagem de um adversário a uma distância maior do que o canhão do adversário fosse capaz de fazer. A opção natural foi o canhão de 88 mm, aquela altura amplamente disponível como arma anticarro. A torre foi desenhada pelos arsenais Krupp, preparada para receber a versão KwK 36 L/56 (de Kampfwagen Kanone modelo 1936-37 tubo-alma de 56 calibres de comprimento), uma versão adaptada do canhão anticarro com as mesmas características já então disponível. Essa arma já tinha demonstrado do que era capaz tanto no norte da África quanto na própria Rússia: o projétil penetrante de blindagem tinha uma velocidade de saída de 930 m/s, o que lhe dava capacidade de penetrar 110 mm de couraça a aproximadamente 2000 metros de distância. Era bem mais do que o necessário: a blindagem frontal do T34 era de 90 mm. Outra preocupação dos militares alemães era com os mecanismos de estabilização da torre e de pontaria. Em campo aberto, o tiro em movimento, contra alvos também móveis, tornavam a vital a capacidade de corrigir rapidamente a trajetória dos projéteis.

O problema é que um conjunto com esse porte necessariamente teria sacrificada a mobilidade. O peso total da viatura excedia 50 toneladas, o que lhe comprometia a capacidade de usar as pontes em geral disponíveis em auto estradas, obrigando as colunas blindadas a utilizarem pontes ferroviárias. A capacidade de cruzar rios também se tornava muito limitada, pois as primeiras versões não dispunham de escapamentos adequados para movimentação subaquática.

As duas firmas fizeram protótipos que deveriam ser apresentados a Hitler, pessoalmente, no dia de seu aniversário, em abril de 1942 (aquela altura o ditador, ainda embalado pelas vitórias de 1940, e se achando, dava palpite até no desenho dos uniformes de suas forças armadas). Produzidos às pressas no final do ano de 1941, ambos revelaram uma série de problemas que não puderam ser resolvidos. O modelo Henschel, mesmo a despeito da amizade pessoal entre Porsche e Hitler, acabou sendo ungido pelo ditador, impressionado pela capacidade de um tanque enorme (o protótipo pesava 55 toneladas) em alcançar a velocidade de 45 km/h.

Em março de 1943, depois de uma série de revisões de projeto, as divisões blindadas começaram a receber os primeiros Tiger, com a designação PzKpfw VI Ausf E, e sem passar por todos os testes requeridos pelo exército. A todos os problemas observados juntou-se mais um: o treinamento inadequado do pessoal mecânico, que simplesmente não sabia como lidar com a nova máquina.

Os Tiger I foram usados pela primeira vez em combate em setembro de 1942, perto de Leningrado, quando algumas unidades foram enviadas à frente, para avaliação. A maioria dos tanques nem chegou a entrar em posição, pois os defeitos mecânicos forma tantos que derrubaram nove dos doze exemplares. Todos foram recolhidos. No início de 1943 outra pequena leva foi enviada ao teatro norte-africano. Os defeitos mecânicos acabaram por resultar em um exemplar capturado intacto pelos ingleses, o que possibilitou um exame exaustivo do novo modelo (este Tiger I é, hoje em dia, um dos principais itens do acervo do Museu de Tanques de Bovington). Os defeitos mecânicos, provocados principalmente pela baixa potência do motor e pela sobrecarga do sistema de transmissão, continuariam a assolar o veículo e suas tripulações ao longo de toda a guerra. Em raras ocasiões uma unidade de Tiger chegou a operar com toda a sua força. Os Ausf E deveriam ser reunidos em número não menor que 28 carros (o ideal seriam 45, número quase nunca atingido), em unidades especiais chamadas Schwerige Panzer Abteilungen (algo como “Seção de Tanques Pesados”), comandadas por um tenente-coronel. Essas unidades atuavam junto às divisões blindadas convencionais, obedecendo a um comando centralizado mas com grande autonomia tática. Os membros eram voluntários com boa experiência de combate, e essas unidades logo começaram a se distinguir onde atuavam. Não era incomum que pequenos grupos de Tiger conseguissem colocar fora de combate cinco vezes mais adversários do que perdiam. De fato, tanque a tanque, os Tiger dificilmente eram superados. Os exemplares eram postos fora de combate por defeitos mecânicos ou, mais comumente, falta de combustível.

Em 7 de julho de 1943, durante a campanha de Kursk, o tanque comandado pelo primeiro-sargento Waffen SS Franz Staudegger, integrante do 13ª Companhia Blindada da 1ª Divisão Blindada SS declarou, devidamente chancelado por testemunhas (inclusive aeronaves enviadas para intervir) ter colocado fora de combate 22 tanques soviéticos no espaço de três horas; dois outros Tiger da mesma unidade cobriram-lhe a retirada, quando o 13-31, sem munição e com problemas na caixa de marchas, teve de se retirar. No processo, inutilizaram mais 9 tanques soviéticos. Esse tipo de proeza não era tão rara, e geralmente rendia ao comandante da tripulação o colar da Cruz de Ferro (a “Cruz de Cavaleiro”), condecoração dificilmente atribuída a oficiais com graduação menor do que a de major. Na mesma campanha outro graduado da 1ª DBWSS (cujo “nome de honra” era Leibstandarte Adolf Hitler – “Regimento Pessoal”), o cabo-de-esquadra Balthasar Woll, artilheiro de um Tiger comandado por um segundo-tenente (outro fato raro nas DBs convencionais), colocou fora de ação 11 tanques soviéticos com 11 disparos, todos a uma distância superior a 1500 metros. Woll receberia, em setembro de 1944, sua própria “Cruz de Cavaleiro”, por participar da destruição de mais de 200 veículos inimigos, sendo 80 deles tanques soviéticos. Essa unidade foi depois convertida no “Seção de Tanques Pesados SS 501”, que apresentou-se na contra-ofensiva das Ardenas (novembro-dezembro de 1944) com 45 tanques Tiger, a mais forte unidade blindada colocada em campo na oportunidade, pelos alemães.

Esses escores quase inacreditáveis podem ser explicadas por diversos fatores. Em primeiro lugar, a qualidade indiscutível do canhão KwK 36, combinada à extrema proteção das chapas usinadas por inteiro em aço-níquel. Essa combinação tornava o Tiger inatingível, a 1400 metros, por qualquer canhão de tanque existente em 1943, inclusive o excelente canhão de 85 mm instalado no T34 a partir do início de 1944. Também se deve incluir nessa equação o visor telescópico binocular Turmzielfernrohr  – TZF – 9b, instalado na torre do Tiger I Ausf E, e considerado o melhor mecanismo ótico de pontaria então disponível no inventário da Wehrmacht (e sobre o qual, curiosamente, existem poucas informações disponíveis).    

O PzKpfw VI Ausf E tinha, entretanto, alguns problemas sérios. O primeiro era o custo, tanto financeiro quanto em materiais e homens-hora. Sob qualquer parâmetro, o Tiger I custava pelo menos o dobro do que  um PzKpfw IV, e quase quatro vezes mais que um canhão de assalto StuG IV Ausf G, que montava um canhão KwK 40 75 mm L48 (o mesmo que equipava os tanques Panther) e era bem mais manobrável do que o Tiger I. A enorme alocação de recursos exigida acabou resultando numa produção de apenas  1355 unidades, entre agosto de 1942 e agosto de 1944. O segundo problema era mais objetivo: a máquina era subpotenciada. O motor de alumínio não gerava potência suficiente para, em condições de trabalho, e o resultado é que as duas últimas marchas para a frente não podiam ser usadas sem o risco de estourar o bloco. A velocidade real era, quando muito, quase 25 por cento menor do que a conseguida em condições de demonstração. Apenas uns 250 exemplares saídos de fábrica montaram esse motor; a partir do final de 1942, uma versão com bloco em aço e maior potência, o Maybach HL 230 P45, de 700 HPs, não chegou a melhorar o desempenho de forma notável, mas aumentou a durabilidade do conjunto.  

As táticas desenvolvidas pelos aliados para enfrentar essa nova arma variavam. Os americanos, após examinar informes de campo ingleses e um exemplar capturado na Tunísia, decidiram que os alemães somente conseguiriam reunir esses veículos em números reduzidos, e, assim, a massa de blindados aliados, menores mas reunidos em números avassaladoramente superiores seria suficiente para superar o problema. Essa tese nunca chegou a se comprovar, visto que o principal carro de combate norte-americano, o Sherman M4A3, com um canhão de 76 mm como armamento principal, mal conseguia arranhar a pintura de um Tiger I a 1400 metros, e praticamente desmontava quando atingido pelo KwK 36 a até 2000 metros. De fato, apesar da proclamada (pelos americanos e nunca exatamente provada) superioridade dos caça-tanques M18 Hellcat, a resposta dos EUA era sempre apelar para a superioridade aérea. Os ingleses, escaldados pela experiência do norte da África, optaram por dotar suas unidades blindadas de artilharia anticarro capaz de opor os blindados alemães. Arma a arma, essa opção era mais efetiva, embora a baixa mobilidade das posições anticarro fosse uma desvantagem.  Em 1943, os ingleses levaram a cabo a experiência de instalar o poderoso canhão OQF (Ordnance Quick Firing) 17 libras (76,2 mm/70 calibres), distribuído em 1942, na torre modificada de um Sherman. Esse canhão já tinha sido testado na África e se mostrara capaz de penetrar qualquer blindagem alemã em distâncias não menores do que 1500/2000 metros, usando um projétil penetrante de blindagem cuja velocidade de vôo era de 1204 m/s. A experiência resultou no Sherman *Firefly, único tanque aliado capaz de opor com alguma chance de sucesso os veículos mais pesados colocados em campo pela Wehrmacht a partir de 1944. Os soviéticos optaram por desenvolver artilharia anticarro automóvel. Inicialmente, o canhão de 85 mm do T34/85 foi montado numa versão especial do chassi daquele veículo, sem a torre, o que resultou numa silhueta mais baixa e num conjunto bem mais veloz, denominado SU (do russo Samokhodnaya Ustanovka – “reparo autopropulsado”). Entretanto, o veículo ainda era subartilhado, de modo que, no início de 1944, os soviéticos montaram no mesmo chassi um canhão D10. Essa providência rendeu o caça-tanques denominado SU100. O projétil penetrante de blindagem, com velocidade inicial de 1000 m/s revelou-se capaz de penetrar qualquer blindagem alemã, inclusive a frontal do Tiger I. Entretanto, a má qualidade dos mecanismos de pontaria soviéticos (a maioria dos quais basedos em tubos fixos sem lentes) e o baixo nível de treinamento das tripulações praticamente anulavam a vantagem propiciada pelo canhão.

O surgimento do Tiger I não marcaria ainda o ponto de inflexão da doutrina alemã que, por sinal, não seria determinado por nenhum tipo de blindado (talvez o projeto do supertanque Maus, que nunca chegou a ser efetivado, represente melhor essa mudança). O ano de 1942 marcou o limite efetivo da doutrina da Blitzkrieg, com a expansão máxima da máquina militar do Reich, e as limitações importas por tal expansão, principalmente no que diz respeito às fontes de combustível. A velocidade não seria mais, a partir de então, a base da doutrina; o movimento sim. E os alemães demonstraram, com sobras, durante a guerra, serem mestres do movimento::

A batalha do Rio de Janeiro::Observações depois da ocupação::

Passada a novidade da “batalha do Rio de Janeiro”, ou “Segunda Batalha de Itararé” (como o blogue prefere chamar tão grandioso evento), a vida no Complexo vai voltando à normalidade. Sábado passado um pequeno grupo de turistas apareceu por lá, liderados por uma artista plástica do Espírito Santo. Bom sinal – parece que as pessoas estão passando a ver o Complexo como mais outro lugar. Aliás, a semana passada foi repleta de bons sinais, visto que o Estado parece ter chegado ao local para não mais sair – e conta com a confiança da população local. Então é tempo de convocar os planejadores: senhores, chegou a hora do planejamento – das ações de médio e longo prazo. De qualquer forma, tão simbólico quanto a bandeira nacional drapejando no local mais alto da região, foi a implantação de placas de rua e códigos de CEP, o que significa que  a enorme área, que reune quase oito por cento da população da cidade, foi finalmente incorporada ao município. Algum tempo atrás, eu tinha dito, aqui mesmo no causa:: que a região precisava de um “banho de política”. Uma coisa exatamente assim. Aliás, um banho dado inclusive pela COMLURB, que parece que não tinha permissão de entrar lá…

Surge também o projeto de uma “Força de Paz” (FPaz – milico adora essas siglas…), visando colocar a presença do Exército em apoio às ações policiais, até a instalação da UPP local. A doutrina seria baseada na grande experiência do EB e da Marinha em forças internacionais de emergência, como a que atualmente está aquartelada no Haiti. A idéia é controversa por vários motivos. Dois são os principais.

Intelectuais locais, ligados às ONGs de fomento à cidadania e às universidades, não vêem com bons olhos o engajamento do EB em missões de segurança interna. Não deixam de ter certa doze de razão. Rubem Césas Fernandes, um dos coordenadores da superong “Viva Rio”, atualmente instalada em Port-au-Prince, diz que à atuação dos militares precisa corresponder uma forte supervisão civil. Segundo ele, no Haiti a presença de organizações internacionais fortemente apoiadas pelos governos de seus países de origem e pela ONU é um contrapeso à atuação militar, que frequentemente extrapola. Segundo Fernandes, no Rio de Janeiro a maioria dos formadores de opinião tende a achar que defender direitos humanos é defender bandidos, então a tal supervisão tenderia a ser menos incisiva. Chego a concordar com esse antropólogo. As atitudes militares não poucas vezes acolhem comportamentos que deveriam ser encarados como desvios comportamentais – veja-se, por exemplo, o sargento que, sem motivo algum atirou em um civil, num aparente acesso de fúria motivado pela simples presença, à vista de um quartel, de um homossexual; uns dois anos atrás, um segundo-tenente temporário, aparentemente para mostrar autoridade, entregou um grupo de adolescentes a um traficante de drogas, que prontamente os executou. Dias depois, chorando copiosamente, o oficial declarou “não saber por que tinha feito aquilo”. Não que os cidadãos pobres estranhem a violência em seu cotidiano, e boa parte dos desmandos da Polícia Militar deve-se à uma ideologia de que todo pobre é um bandido em potencial. As PMs, pelo Brasil todo, têm poucos oficiais e as frações (o policiamento é feito por pequenos grupos de homens) são geralmente comandadas por graduados. Os oficiais saem pouco dos quarteis, não andam junto com a tropa e fazem política de baixo nível num grau incomparavelmente mais alto do que nas FAs. 

Talvez oficiais superiores, em campo, pudessem manter a tropa sob controle estrito, mas resta saber se majores e tenentes-coronéis estariam dispostos a comer poeira e deitar suor nas vielas do Alemão… Por outro lado, os comandantes militares têm manifestado preocupação com a extensão do tempo da presença militar no local, dada a possibilidade de contaminação dos efetivos do EB e da Marinha pelo contato com policiais corruptos – e embora não tenha sido dito, inclusive (e talvez principalmente) da oficialidade. Essas preocupações não parecem totamente infundadas: a Polícia Civil do Rio começou, afinal, ontem (4 de dezembro) a investigar a denúncia de que o traficante “Polegar” (ex-chefe do tráfico no Morro da Mangueira, que estava refugiado no Complexo do Alemão) foi retirado (ou “extraído”, no jargão militar) do local num carro descaracterizado da Polícia Civil. As notas publicadas nos jornais não deixam muito claro como a coisa aconteceu, mas a Corregedoria da Polícia do Rio de Janeiro apressou-se em desmentir a informação. A questão é: até que ponto as FAs estarão imunes à corrupção?

A convivência promíscua entre polícia e criminosos não é novidade e nem característica do Rio de Janeiro. No mundo inteiro, policiais lançam mão de contatos que fazem no submundo para obter informações que lhes permitam antecipar os movimentos do crime. O recurso aos informantes – alcaguetes, “caguetes”, “x-noves”, “orelhões”, como são chamados na gíria policial – é parte da atividade policial em todos os países do mundo, e implica desde pequenas recompensas a esses criminosos até a chantagem. O problema é quando setores da polícia começam a se aliar a setores do crime organizado, e a situação se inverte: policiais corrompidos começam a informar o crime organizado sobre os movimentos da polícia.

É interessante observar que, na operação da Vila Cruzeiro, os traficantes devem ter recebido informações internas, visto que tiveram tempo de preparar o terreno para reter as unidades especiais da PMERJ, e chegaram a conseguir inutilizar um dos “Caveirões” do BOPE. Está certo que o *”Caveirão” não é um veículo militar, mas uma espécie de carro-forte adaptado para transportar um “grupo de ações táticas”, nome que, no BOPE, recebem as esquadras de policiais militares especialmente treinados e equipados. Mas é uma improvisação. O “outro lado”, ou seja, o tráfico, também conta com alguns elementos que receberam o excelente treinamento das unidades elite das FAs brasileiras: páraquedistas e fuzileiros navais. Esses militares são, em muitos casos, moradores de comunidades carentes, tentam conseguir uma carreira profissional estável nas FAs. Acabam dispensados, na maior parte dos casos, depois de 4 anos de serviço ativo, caso não conseguir passar num concurso interno para cabo ou num concurso aberto para graduado. Os jovens soldados, sem emprego e sem o suporte moral da corporação (que faz enorme diferença), ficam totalmente vulneráveis ao canto de sereia do dinheiro fácil.

Assim se justifica a preocupação das autoridades militares. “Recrutados” pelo crime organizado, ex-militares das tropas pára-quesdistas cuidam da segurança dos chefes e dos locais onde acontece o “movimento”. Não são incomuns as informações sobre apreensões de cadernos com esquemas de táticas de retardamento e retração organizada, bem como de montagem de armadilhas e instruções para o uso de armamento. Esses cadernos são escritos por pessoal militar “recrutado” pelo tráfico, e é assim que os criminosos aprendem como lidar com as forças de intervenção da polícia militar. Pode parecer muito impressionante, mas não é (a não ser para o sensacionalismo da imprensa): o que normalmente acontece é que os “soldados” do crime organizado postos à disposição dos “instrutores” não são sequer milicianos. Carecem de qualquer idéia de disciplina e não têm nenhuma cadeia de comando. São apenas marginais armados, e o treinamento deles limita-se a como municiar e disparar uma arma.

A não-contaminação das FAs e dos setores superiores das forças de segurança fica meio evidente (para nosso alívio) no fato de que os criminosos não pareciam esperar a intervenção das VBTP do Corpo de Fuzileiros Navais. A intervenção foi resultado de uma negociação, em plena crise, entre o governo estadual e o Comando da Marinha Brasileira, na qual o governador interviu pessoalmente. A negociação foi rápida e a Marinha respondeu com rapidez, lançando mão das guarnições que, em qualquer quartel militar, ficam sempre em serviço. Seis M113A3, dois *Carros-lagarta Anfibios (CLAnf, no jargão da MB) de 25 toneladas e três VtrBldEsp SR 8X8 MOWAG “Piranha IIIC“, com as respectivas guarnições e equipes de apoio, integrantes da Divisão Anfíbia (principal unidade do CFN/MB, com escala de brigada reforçada) foram transportados de seu quartel na Ilha do Governador e lançados diretamente no “teatro”. A surpresa observada entre os criminosos indica que estes não contavam com a intervenção militar, não sabiam como confrontá-la e nem tinham armamento adequado. Os militares tinham instruções para não intervir na operação da PMERJ, a não ser que a integridade das viaturas fosse diretamente ameaçada. O armamento orgânico das viaturas M113 e CLAnf, a *metralhadora Browning M2 .50 (12,7 mm) é considerado capaz de opor qualquer viatura militar não protegida, com proteção leve e pequenas aeronaves; no caso dos “Piranha”, a arma orgânica  é uma metralhadora FN Herstal 7.62.

A utilização dos blindados correspondeu à doutrina de lançamento de esquadra de infantaria em teatro tático. Entre nove e onze policiais militares do BOPE (um grupamento de ações táticas), com armamento completo foram conduzidos até o ponto focal e lá desembarcaram. Durante a busca por posições de fogo, se beneficiaram da massa do blindado como proteção. A VBTP permanecia durante alguns instantes no local e em seguida se retirava, para dar passagem a outra, trazendo um novo “grupo tático”. Uma vez consolidada a posição, os blindados retornavam ao ponto de reunião para lançar grupos táticos em novas posições. Em ação de deslocamento, os blindados se lançaram contra obstáculos deixados pelos “combatentes adversários” (vamos chamá-los assim, com alguma condescendência…). Depoimento de militares do CFN dão conta de que, em pelo menos três oportunidades, pequenos veículos foram esmagados pelo peso das viaturas. Um dos motoristas declarou que em momento algum houve oposição que pudesse ser considerada relevante, e os criminosos eram vistos fugindo pelas vielas, em muitos casos abandonando armas e pertences pessoais, além, claro, das enormes quantidades de drogas que não puderam ser deslocadas em função do volume. Os policiais militares, uma vez desembarcados, não tinham nenhuma dificuldade em consolidar posição e progrediam de maneira escalonada pelo terreno (grupos de 3 elementos avançavam, cobertos por um atirador que buscava a melhor posição de fogo), usando os próprios meios.

Os traficantes teriam alguma forma de oposição eficaz? A resposta é um redondo “não”. Segundo depoimento de militares das tripulações das viaturas, disparos de armas leves atingiam a chapa frontal das VBTPs M113, e pelo menos três granadas de mão foram lançadas, mas apenas uma chegou a explodir. As “bazucas” encontradas pela polícia não eram ameaça, de fato. Por sinal,  “bazuca” é uma denominação inapropriada para indicar o armamento encontrado. O que foi mostrado são duas categorias de armas bem diversas. A primeira é um lança-rojão , ao que parece  modelo M67 de 90 mm (é possível comparar as duas fotos). A reportagem da TV Globo, para variar, dá um monte de informações disparatadas e sensacionalistas, comparando essa arma a um canhão de 90 mm (são coisas completamente diferentes). Esse tipo de lança-rojão já foi descontinuado no EB, substituído por um modelo mais moderno, de origem sueca. É muito pouco provável que houvesse munição para ele (os tais “rojões”, um foguete chamado, pelos especialistas, “de carga oca”) e, mesmo que houvesse, provavelmente estaria fora de validade, visto que tem de ser armazenada em condições altamente controladas. E mesmo se a munição estivesse válida, é muito provável que a arma na hora do “vamuvê” negasse fogo: o disparo de um lança-rojão depende de um pulso elétrico obtido de uma bateria (um tipo de pilha); caso essa bateria não esteja instalada ou esteja descarregada, o disparo não acontece nem por vontade divina. A *segunda arma é um *M72 LAW (Light Anti-tank Weapon), armamento já retirado de serviço no Exército dos EUA, e que nunca fez parte do inventário das FAs brasileiras. Pelo que é possível entender da foto, a arma não deve ter mais o rojão, pois caso ele estivesse lá dentro, o risco de disparo acidental pelo policial que a demonstra seria muito grande (observe o diagrama – o PM está com a coisa armada). Como se trata de um “pacote descartável” (pode ser lançado fora depois de usado, embora seja possível recarregá-lo), é provável que tenha sido roubado ou comprado de um colecionador.

Entretanto, as fotos do armamento apreendido após a ocupação do Complexo do Alemão são *realmente preocupantes. Isso porque boa parte dos fuzis automáticos visíveis (em meio a muita porcaria, como armas de colecionador, armas claramente danificadas e peças de armas) são, na maioria, os FAL FN Herstal, arma padrão do Exército Brasileiro.  Parece que também foi apreendido um HK G3, arma da infantaria da aeronáutica. São pouco notáveis (eu, pelo menos, contei quatro) os AK47, e também se conta algumas carabinas Colt AR15. Digo “preocupente”, e muito, pois os FAL devem estar saindo dos quarteis militares, roubados ou comprados de efetivos do EB e da própria polícia (nos últimos anos, milhares dessas armas foram transferidas das FAs para as polícias militares e civis). 

É preciso que essas coleções de armamento apresado sejam estudado (e deve estar sendo)  com cuidado pela inteligência policial e das FAs, e que se apure a procedência, o que irá determinar se o contrabando é realmente considerável. Eu apostaria que talvez ainda seja para armas curtas. Mas também apostaria que a maior parte desses itens deve vir mesmo das indústrias locais, Taurus e Rossi, que fabricam excelentes pistolas semi-automáticas e revólveres, que podem ser desviados ou roubados aos magotes. O controle da distribuição de armas é realmente uma necessidade, apesar da controvérsia que sempre desperta, e as campanhas de “entrega voluntária” devem continuar::

A batalha do Rio de Janeiro::A segunda batalha de Itararé e a estrela do show::

Todos os veículos militares sobre esteiras de tração têm um antepassado comum, o *trator de esteiras Holt, fabricado pela empresa norte-americana Caterpillar Tractor Company, a partir do finalzinho do século 19. A idéia de instalar esteiras em veículos motorizados como forma de facilitar o deslocamento deles nas condições extremamente adversas das trincheiras resultou em rebocadores de artilharia, veículos de transporte e tanques. No período entreguerras algumas experiências foram feitas com veículos sobre esteiras, na URSS, Alemanha e EUA. Essas experiências resultaram, particularmente na Alemanha e nos EUA, em viaturas de transporte de pessoal extremamente eficientes.

A vantagem de qualquer veículo de esteiras sobre seus equivalente com rodas é a distribuição da pressão exercida devido à descarga do peso do veículo sobre o solo. Um veículo com esteiras de tração é mais estável do que um sobre rodas, pois elementos como a distância do veículo com relação ao chão e o desenho da suspensão fazem com que o centro de gravidade do carro, durante o deslocamento, varie menos. Mas as esteiras também resultam em desvantagens. A maior área de contato provoca a mudança do regime de torque, ou seja, da transmissão da potência do motor para o chão. Todos sabemos que veículos sobre pneumáticos são mais velozes, e é exatamente em função do menor coeficiente de atrito com o solo (este opõe resistência ao avanço do veículo – quanto maior a área de contato, maior a resistência). Este coeficiente de atrito acaba determinando a potência do motor e o consumo de combustível que, num veículo sobre esteira, acaba sendo muito mais alto do que num veículo sobre pneumáticos.

Outro problema notável é que, nos veículos sobre esteiras de tração, a dirigibilidade depende diretamente da transmissão. Em geral, é adotado um sistema em que uma caixa de marchas especial modifica o regime de giros do eixo das *rodas tratoras (as roda ligadas ao motor), fazendo com que um dos conjuntos de esteiras se mova mais rápido do que o outro. Isso acaba fazendo com que o sistema todo seja relativamente frágil e quebre com certa facilidade. Na 2ª GM, os complicados sistemas de transmissão adotados nos veículos sobre esteiras, notadamente nos carros de combate, foi fonte de muita dor-de-cabeça para combatentes e equipes mecânicas. Por sinal, é até hoje: um carro de combate com a caixa de marchas quebrada ou as *esteiras rompidas (o que frequentemente resulta do esforço mecânico das constantes alterações de giro) tem quase a mesma funcionalidadde de uma prancha de surf debaixo da cama.

Este foi um dos motivos da adoção, imediatamente antes da guerra, de viaturas meia-lagarta. Os “meia-lagarta” resolviam esse problema adotando rodas de direção não-tracionadas, com um sistema de direção de um veículo motorizado comum: um parafuso sem-fim ligado a um volante, e uma caixa de marchas padrão, de três ou quatro velocidades. O menor peso do conjunto criava a possibilidade de usar nesses veículos motores menos possantes e muito mais econômicos, além de torná-los mais fáceis de operar, visto que a direção era semelhante a de um caminhão. Isso os tornava ideais para certas tarefas, como  transportar tropas, a chamada “infantaria blindada”.

Ainda durante a guerra, alemães e norte-americanos pensaram na introdução de veículos de transporte de tropas totalmente sobre esteiras. Os projetos alemães não chegaram a sair dos estágios iniciais; os norte-americanos examinaram um protótipo baseado no chassi do caça-tanques M18 “Hellcat”, de notação *M44. O problema é que o projeto exigia um grande dispêndio de materiais, já que o casco, suspensão, motorização e transmissão eram basicamente os mesmos do blindado. Acabou sendo deixado em “banho-maria”. Terminada a guerra, os EUA continuaram a estudar veículos blindados sobre esteiras de tração destinados ao transporte de infantaria, embora os “meia-lagarta” *M3 continuassem a ser considerados adequados para a função e estivessem disponíveis em grandes números.

No início dos anos 1950, a experiência da Guerra da Coréia provocou um reexame profundo na doutrina norte-americana de guerra de movimento. Os norte-coreanos utilizavam a mesma doutrina soviética, que dividia a infantaria em três categorias: infantaria a pé, infantaria “motorizada” (transportada em caminhões não protegidos) e infantaria “montada”, ou seja, transportada no dorso de tanques T34/85. Essa infantaria, em diversas oportunidades conseguiu, em ações combinadas com os blindados, superar tropas norte-americanas teoricamente superiores em números e armamentos. Era transportada até próximo da zona de combate em cima dos blindados, desmontava pouco antes de alcançar a área de operação e daí delocava-se a pé, protegida pelo massa dos tanques. Os norte-americanos começaram, então, a estudar novos tipos de blindados, melhor armados e protegidos. O Sherman estava fora: mostrou-se pateticamente frágil diante da artilharia dos blindados de fabricação soviética; a família “Patton”, inaugurada em 1948 com o *M46 era superior ao T34/85, em alguns aspectos, mas apresentava alguns problemas mecânicos e um canhão considerado ineficiente. Outro modelo que surgiria desses estudos foi o *M41 “Walker”, que pode ser classificado como “tanque de cavalaria”, destinado a prover proteção de flanco para unidades mais pesadas; o M47 “Patton” (de fato, um M46 com nova torre) foi considerado capaz de superar os tanques soviéticos encontrados na Coréia. Também foram pedidos estudos em torno de um veículo que pudesse prover apoio aproximado de infantaria.

Os estudos desenvolvidos desde a 2ª GM foram retomados. O primeiro veículo a ser proposto foi o *M75, projetado pela fábrica de tratores International Harvester. Essa máquina utilizava a mesma plataforma mecânica do tanque M41, com pequenas mudanças na suspensão. A motorização era a mesma: um motor Continental a gasolina, considerado relativamente frágil em condições de uso. O M75 chegou a ser empregado nos últimos estágios da Guerra da Coréia, e o ponto que despertou maior polêmica foi o desenho: os engenheiros, seguindo indicações dos militares, projetaram um habitáculo em forma de caixa e uma grande porta dupla traseira, que permitia que os 13 infantes transportados desembarcassem muito rapidamente, mas dava ao veículo uma silhueta excessivamente alta. Entretanto, o maior problema do M75 era mesmo o preço, considerado muito alto pelo Exército dos EUA. Em 1954, a empresa FMC (Food Machinery and Chemicals Inc.), que havia recebido a encomenda de 1000 M75, a pedido do Exército apresentou o projeto de uma versão menor do veículo. Este mantinha basicamente o mesmo desenho do M75, mas em tamanho ligeiramente menor, pois os engenheiros da FMC diminuíram o comprimento da máquina e aumentaram-lhe a largura. A altura foi também ligeiramente diminuída, pois foi considerado que o *rápido desembarque não era prejudicado caso os infantes embarcados ficassem levemente encurvados, ao deixarem seus assentos. Sendo feito em placas de aço laminado, encaixadas por solda, teve seu peso consideravelmente diminuído, permitiu alterações na suspensão e o uso de dois motores GMC de caminhão, o que diminuiu notavelmente o consumo sem comprometer o desempenho. A diminuição do peso e o aumento da largura também permitiram que a máquina adquirisse capacidade anfíbia, que a anterior não tinha. O sistema de direção consiste em um diferencial conectado diretamente à transmissão, e o motorista o aciona através de um par de alavancas cada uma controlando uma das seções de esteiras de tração. O veículo não tinha armamento próprio, e era, em sua versão básica, equipado apenas com uma metralhadora pesada calibre 12,7mm (a tal “ponto cinqüenta” de que a imprensa vive falando), destinada à autodefesa. Recebeu a notação M59 e surgiu no final da década de 1950.

Esse novo APC (de Armored Personnel Carrier) permaneceu em produção até o final dos anos 1960, e quase 7000 unidades foram fabricadas (o Exército Brasileiro recebeu alguns exemplares, a partir de 1962). Apesar das melhorias, ainda era considerado excessivamente pesado para, por exemplo, ser transportado em aeronaves. Esta era a principal reclamação do Exército dos EUA, e daí, a FMC começou, com base no desenho do M59, a experimentar o uso de chapas de alumínio de alta densidade, que poderiam ter quase a mesma dureza do aço, com peso razoavelmente menor. O menor peso traria diversas vantagens. O desempenho aumentaria, sem aumentar o consumo de combustível (gasolina de alta octanagem, na base de 4 litros por quilômetro rodado); também possibilitaria que a máquina fosse transportada em aeronaves cargueiras C130, a razão de dois por aeronave, e até mesmo ser lançada de pára-quedas; aumentaria a capacidade anfíbia, facilitando o deslocamento em teatros de operações com muitos rios ou pantanosos. O novo veículo teria certa capacidade NBC (em inglês, acrônimo de nuclear-biológica-química) e deveria ser adequado ao campo de batalha europeu, mas adaptável a outros teatros. Resultou desse estudo o conceito ACAV (Armored Calvary Assault Vehicle, em inglês). O veículo que correspondeu ao conceito é o *M113.  

Sua produção inicial começou em 1960, na fábrica da FMC na Califórnia. Distribuída ao Exército e Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA, a nova VBTP (“Viatura Blindada de Transporte de Pessoal”, nomenclatura do Exército Brasileiro) também foi entregue a países aliados da OTAN. A viatura tornou-se a base de uma linha conhecida como FOV (Family of Vehicles), série de especificações sobre a plataforma M113, que inclui as versões aperfeiçoadas. Em 1964, a experiência de campo, nos EUA e países aliados serviu para fazer surgir a primeira, o M113A1, que tinha como principal modificação foi a troca do motor a gasolina por um diesel. Essa mudança melhorou o alcance sem comprometer notavelmente o desempenho. Em 1976, surgiu o M113A2 e, em meados dos anos 1980, o M113A3, versão com mecânica muito modificada. Todas as versões incluiam viaturas-postos de comando (com parte elétrica modificada para receber aparelhagem de radio e outros equipamentos de comunicação e controle); veículos de recuperação e manutenção (com modificações na transmissão e na suspensão, pela permitir inclusive reboque de viaturas iguais, danificadas); viaturas para tansporte de cargas; viaturas transportadoras de equipamento gerador de fumaça; diversos tipos de transportadores de morteiro (81 mm e 120 mm); posteriormente foram também adaptados M113 transpordadores de metralhadoras giratórias XM134  *Minigun 7.62 mm (bastante usados no Vietnam), M741 Vulcan (viatura de defesa anti-aérea de ponto) e carregadores de diversos tipos de mísseis.

De fato, a plataforma original baseou, desde seu lançamento, mais de 40 variantes, com milhares de pequenas modificações. Muitas dessas modificações foram desenvolvidas por usuários estrangeiros do M113, baseadas em requerimentos militares. Alguns são, de fato, sistemas inteiramente novos, que mantém o desenho da viatura original.   

Desde 1960 foram fabricados mais de 80.000 M113, e a produção da FOV está longe de terminar. Novas unidades ainda são produzidas na Inglaterra, pela BAE Systems (um bom site sobre a viatura, em inglês, é mantido pela BAE), e pacotes de modificação das existentes são usados para modernizer as configurações já em serviço.

O veículo levanta opiniões divergentes nos usuários. Embora seja considerado simples de operar, bastante resistente e fácil d reparar, é considerado frágil em combate. Usado em grandes números na Guerra do Vietnam, são comuns as fotografias em que os infantes *viajam no teto do veículo. Tanto os GIs quanto seus aliados *preferiam essa posição pois além da blindagem não resistir a nada maior do que um projétil 7.62 mm, uma mina anticarro média rompia facilmente o fundo do veículo; além do mais, o rompimento de um dos conjuntos de esteiras de tração deixava a viatura totalmente inoperante e altamente vulnerável. Segundo a experiência dos operadores, num caso desses, o melhor que a tripulação e o grupo de combate poderiam fazer era sair de perto o mais rápido possível, pois a viatura se incendiava com enorme facilidade. Como se essa fragilidade toda não fosse suficientemente ruim, o interior do habitáculo era considerado muito quente, ficava cheio de gases de combustível e nem todas as versões dispunham de ar-condicionado. Mesmo assim, entre 1964 e 1972, os EUA chegaram a manter cerca de 2000 VBTP M113 naquele teatro. Eram – como ainda são – os principais elementos da cavalaria mecanizada do Exército dos EUA.

Originalmente, os M113 foram pensados como transportadores de esquadra de infantaria. No final dos anos 1950, a doutrina estabelecia que a infantaria motorizada deveria desembarcar um pouco antes do ponto focal e alcançá-lo a pé. Logo ficou evidente que a mobilidade do sistema mecânico quando combinada à potência da metralhadora orgânica Browning de 12,7 mm, poderia ser um valioso elemento de choque adicional para a esquadra de infantaria. Essa observação, baseada na experiência de campo obtida no Vietnam, modificou a doutrina: os infantes passaram a ser lançados diretamente no ponto focal.

Embora os veículos da categoria VBTP estejam sendo discutidos em função das novas doutrinas de guerra de movimento, que exigem veículos de esteiras e de rodas bastante velozes (os ingleses falam em velocidades de até 110 km/h como ideais), capazes de transporter mais carga, seja em termos de pessoal ou material, e dotados de maior proteção, não existe ainda um veículo capaz de substituir, a curto prazo, as enormes quantidades de M113 existentes no mundo. No início dos anos 1980, o governo norte-americano tinha projetos de substituir rapidamente essas máquinas pela VBTP *Bradley, dentro de um projeto de reequipamento mais amplo. Só que o M1 revelou-se caro, frágil, de mecânica complexa. Parece que a versão M113A3 tem ainda muito futuro pela frente::

Cultura material militar::O motor, a doutrina militar alemã e sua mudança::Parte 2

O artigo anterior gastou um monte de letras para explicar, de forma talvez insuficiente, quais são os princípios de um motor à combustão. Agora, nesta segunda parte, vamos ver se conseguimos (afinal…) entrar no assunto. A doutrina chamada Blitzkrieg já foi bem apresentada aqui mesmo no causa::, e os nove ou dez assíduos certamente já leram este artigo, publicado anos atrás (uau! causa:: já é tão velho assim?..). Do ponto-de-vista da teoria, não há muito o que acrescentar, e sugiro aos não-assíduos deste blogue (que, infelizmente para meu ego, são a maioria da humanidade…) a leitura preliminar do tal artigo.  Continuemos, pois. Esta segunda parte busca apresentar alguma coisa sobre motores à explosão, os primeiros blindados e os primeiros blidados alemães. Como estes mudaram da água para o vinho no espaço de dois anos, fica para o outro capítulo, assim como a espiadela no Panzer VI, o “Tigre”. Deste, todo mundo lembra – para os filmes e HQs norte-americanos dos anos 1950 e 1960 (digo isto porque não existem mais “filmes” e “muito menos “histórias em quadrinhos” norte-americanos – mas isto é outra história, talvez para ser abordada pelo bom Catatau… Falando em Catatau, recomendo fortemente a leitura deste posto do dito blogueiro, do qual nunca escondi ter profunda inveja. Acho que farei alguns comentários sobre o tema, disposto a brigar com algumas das postulações expostas lá – briga que certamente perderei, mas tudo bem: não é demérito algum perder para bons intelectuais… Ou é, um pouco… Sei lá…). Bem, agora que causa:: já bateu o record do parêntese mais longo já aparecido em um blogue, vamos aos tanques::  

Parte 2/3 Propostas de um “motor à combustão interna” viável começaram a ser feitas conforme os princípios da termodinâmica e suas leis se consolidaram, na primeira metade do século 19. Entre 1850 e 1880, surgiram um motor eficaz à explosão de gás, de pequena potência (que chegou a ser instalado e funcionar bem em um triciclo), um motor de dois tempos, um motor de pistão livre (que chegou a ser comercializado com certo sucesso) e finalmente, em 1876, um motor viável de quatro tempos, obra do comerciante e mecânico autodidata alemão Nikolaus Otto.

O motor de Otto tinha, como novidade definitiva, a ignição do combustível por uma centelha elétrica que provocava uma explosão que criava o fluído de trabalho. O motor criado por Otto se tornou a base que persiste até hoje, impulsionando a maioria das formas de tração mecânica de que dispomos. Como já foi dito, essa máquina reunia as vantagens dos motores “à combustão interna”: baixo peso, já que não precisava de reservatório de água a ser vaporizada; consumia muito menos combustível em relação ao peso; o combustível usado, o benzeno, era muito mais leve do que carvão mineral ou lenha, usados pelos trens e navios a vapor da época. Mas também haviam problemas: o sistema de admissão de combustível falhava constantemente, e o motor, embora não parasse de funcionar, perdia potência de forma notável. A adaptação, em 1885, por Karl Gottlieb Daimler, de um motor Otto para queimar gasolina, até então um subproduto do refino de petróleo que tinha pouca utilidade, resolveu o problema. A grande sacada desse engenheiro alemão foi a colocação da câmara onde corria o pistão em posição vertical, com a alimentação feita através de um carburador. Essa peça (invenção de dois húngaros) mistura o combustível com ar, assim melhorando a taxa de explosão. Esse aperfeiçoamento tornou os motores à combustão interna definitivos: proporcionalmente a seu tamanho e peso geravam potência em coeficiente inalcançável por qualquer motor a vapor. O motor de Daimler é reconhecido como avô de todos os motores à gasolina modernos.

Com base em seu motor, Daimler construiu, em 1885, um veículo de quatro rodas. Em 1886, Karl Benz, outro engenheiro alemão, construiu uma pequena carreta que parecia (e era, de fato) uma vitória, tipo de carruagem francesa aberta, muito popular na segunda metade do século 19 – só que sem os cavalos. É possível reconhecer nesse veículo uma das “caras” do mundo moderno: quatro rodas, motor à gasolina, certa autonomia e grande simplicidade mecânicae de operação.  

Não podemos esquecer que essa criatividade toda chegou ao auge com a segunda fase da industrialização capitalista, que acontece na segunda metade do século 19. O armamento também passava por uma revolução, e incorporava os avanços científicos e tecnológicos elaborados com base nos mesmos novos itens – aço, combustíveis derivados de petróleo, borracha vulcanizada, por exemplo – que possibilitaram o surgimento do motor à combustão interna e do automóvel. Conforme avançava a tecnologia industrial, a partir do último quartel dos Oitocentos, as descobertas e invenções iam sendo rapidamente colocadas a serviço da indústria bélica. Assim, era de se esperar que, na virada do século, veículos blindados funcionais começassem a surgir. Na época (bem, em todas as épocas…) os governos queriam armas, e eram fregueses pródigos das indústrias pesadas, empenhadas em oferecer novidades a um mercado em expansão: as principais potências européias, envolvidos em seculares disputas políticas no continente e na corrida colonial que começou naquela época.

Ao longo da segunda metade do século 19, embora tenha havido propostas para a construção de veículos protegidos movidos a vapor, este tipo de motor não se mostrou muito apropriados para aquele fim. No finalzinho do século, entretanto, a base para a concepção de tal tipo de arma tornou-se disponível, com o surgimento dos motores à combustão interna, que, como nos outros automóveis, tornaram possível a diminuição do peso do conjunto e, conseqüentemente, o aumento de sua eficiência. O primeiro veículo blindado eficaz foi construído na Inglaterra, por volta de 1900, quando a firma John Fowler & Company dotou um de seus veículos tracionados a vapor de uma proteção blindada. Este veículo chegou a ser usado para mover suprimentos, na guerra sul-africana, “dos Bôeres” (1899-1902). Em 1899, o engenheiro Frederick Simms resolveu ir um pouco mais longe: projetou uma geringonça motorizada e armada. Impulsionado por um motor Daimler, um *quadriciclo de origem francesa transportava – de forma um tanto precária, temos de admitir – uma metralhadora Maxim (como o sujeito faria para dirigir, atirar e escapar dos tiros inimigos, tudo ao mesmo tempo, é um mistério, mas Simms devia saber o que fazia…). O exército britânico considerou a coisa “de pouca ou nenhuma utilidade”.Simms não desistiu, e três anos depois apresentou ao exército, numa cerimônia pública, o *”Carro de Guerra de Simms“. este protegido e mais fortemente armado. O problema é que a coisa apresentou desempenho ridículo, e acabou virando piada entre os militares presentes.  

Na mesma epóca, um veículo protegido, o “Charron”, foi apresentado na França. Este é considerado o primeiro veículo blindado produzido no mundo. Produto de iniciativa independente da empresa de equipamentos mecânicos *Charron-Girardotet Voigt, esse tipo de veículo foi apresentado pela primeira vez em 1902, mas não despertou interesse nos militares franceses. Em 1904, *outro modelo, incorporando alguns aperfeiçoamentos (inclusive rodízios pneumáticos, então uma novidade, e uma torre girante) chamou atenção do exército francês, cujos técnicos viram nele qualidades para uso no norte da África. Armado com uma metralhadora de 8 mm, o Charron deslocava pouco mais de 3 toneladas, boa parte das quais em função da proteção, provida por chapas metálicas aparafusadas na estrutura do veículo. Quase ao mesmo tempo, outro modelo, de características similares, foi apresentado na Áustria, pela Austro-Daimler GmhB.

Carros blindados eram uma boa idéia, e se revelariam, em diversas ocasiões, extremamente úteis. Mas ainda eram automóveis, dotados de quatro rodas, e ainda com o maior problema que as carruagens sempre tinham tido: precisavam de estradas pavimentadas para serem totalmente eficientes. Para completar a evolução dos elementos básicos que resultariam, em algum momento, no moderno carro blindado, faltava a adoção de um meio de tração eficiente em qualquer terreno. A adoção de esteiras metálicas sem-fim como alternativa às rodas foi a solução. O sistema já estava disponível naquela época, pois tratores agrícolas com este tipo de sistema já eram conhecidos nos EUA e na Inglaterra desde o início do século XX. No entanto, até pouco depois do início da Primeira Guerra Mundial, nenhum veículo concebido em torno desse sistema de tração chegou a interessar alguma das principais potências. Protótipos de sistemas de armas muito semelhantes aos tanques já tinham sido apresentados na França e na Inglaterra, na primeira década do século 20, mas os militares dos dois países não tiveram interesse em experimentá-los, pois não se tem informação de consultas sobre protótipos. Também existem informações de que veículos sobre esteiras também foram apresentados a austríacos e alemães, sem que nenhum dos dois países se manifestasse.

A questão é que veículos motorizados eram vistos, no começo do século 20, como meras curiosidades mecânicas, algo como um brinquedo de luxo para gente rica. No campo militar, alguns planejadores chegaram a ver serventia nesses veículos, no máximo, como transportadores de suprimentos e em tarefas que exigissem maior agilidade – como o transporte de feridos, de oficiais em serviço e de correspondência militar. Mas mesmo nessas funções, os primeiros veículos à gasolina eram muito prejudicados pela precariedade dos motores disponíveis: por melhor que fosse o conceito do motor à explosão, os produtos oferecidos em grande escala pela indústria eram pouco potentes, muito pesados e bastante frágeis, afetados pela precariedade dos materiais então disponíveis. Ainda demoraria algum tempo até que aparecessem máquinas confiáveis, gerando potência suficiente e com um mínimo de confiabilidade, que dessem chance ao veículos motorizados no campo militar.   

A Grande Guerra foi essa chance, abrindo espaço para todo tipo de veículo motorizado: caminhões, aviões, tratores e… tanques. Inventados pelos ingleses em 1915, os tanques não chegaram a influenciar em nada o resultado da Grande Guerra. Entretanto, a aplicação da nova arma, que inicialmente foi chamada de “navio terrestre” (certos detalhes no projeto dos *primeiros blindados foram inspirados no desenho dos vasos de guerra da época) despertou a atenção de alguns teóricos militares. O problema é que esses teóricos, oficiais de patente intermediária que haviam estado diretamente em combate, não eram levados a sério pelos exércitos. Na inglaterra, quase todos saíram do exército e (argh!!!) passaram a escrever livros. Diziam que a aplicação de veículos, fossem de combate ou de apoio, e até mesmo aeronaves, deveria ser concentrada para buscar pontos fracos nas linhas inimigas e, encontrado tais pontos, romper através dele aplicando a concentração de forças. O trabalho inicial era feito por unidades motorizadas, mas a exploração da brecha se dava através do uso maciço de unidades de infantaria convencionais: eram conduzidas até a frente de batalha em comboios ferroviários e se deslocavam para o teatro tático a pé ou em veículo tirados a cavalo – os chamados “hipomóveis”.

A Alemanha perdeu a guerra. Perder uma guerra daquelas é uma droga, mas estar sem armamentos pode ser uma vantagem – existe espaço aberto para novas idéias. Uma das boas idéias tinha surgido na segunda metade do conflito – tropas de alta mobilidade, procurando pontos fracos nas linhas adversárias. Chamadas “de choque” (stosstruppen, em alemão), essas tropas eram unidades especiais de engenharia de combate, e chegaram a fazer alguma diferença na parte final do conflito. Em novembro de 1917, a batalha de Cambrai foi a primeira oportunidade, na Frente Ocidental, do uso massivo dessa nova infantaria. Atuando de form a coordenada com a artilharia, unidades muito bem treinadas, com armas especiais  e alto grau de iniciativa usavam táticas de infiltração para penetrar as linhas inimigas  rapidamente e avançar para a retaguarda. Seu objetivo era desorganizar linhas de comunicação e suprimentos, e tudo que permitisse ao inimigo resistir coordenadamente. Na época, deu muito certo. Depois do fim da guerra, oficiais do novo exército alemão, limitado pelo tratado de Paris a 100.000 efetivos, e pensado mais como polícia antimotim, estudando a atuação dessas tropas, devem ter pensado, imediatamente: “Que tal colocar rodas debaixo desse pessoal e de suas armas?”

Isso porque unidades mecanizadas podiam ser muito rápidas, caso dotadas dos novos veículos que a indústria tinha se tornado capaz de construir, com motores mais confiáveis, chapas de metal mais leves e duras e novas armas. Desde os anos 1920, estudos realizados pelos alemães mostravam que a velocidade de deslocamento era a grande vantagem de uma unidade mecanizada. Exercícios de campo promovidos pelo exército alemão no pós-1ª GM, utilizando veículos motorizados (muitos deles peças de cenografia feitas de papelão e madeira), experimentando esses pressupostos teóricos, mostraram que deveriam ser concebidos tipos diversos de blindados. Alguns deveriam ter proteção capaz de suportar projéteis de maior calibre; outro tipo de tanque, concebido por Heinz Guderian, deveria ser muito veloz, com a função de explorar brechas e flancos. Alguns especialistas dizem que Guderian copiou essa idéia das formulações do teórico britânico Percy Hobart (infelizmente, a droga da Internet brasileira não traz dados sobre nada, assim, um texto em inglês sobre este importante personagem aqui). Este tenente-coronel do Real Corpo de Engenheiros tinha se debruçado sobre a experiência com blindados no fim da 1ª GM, e concebeu um tipo de unidade blindada baseada em duas categorias de tanques: “de infantaria” (os mais pesados) e “de cavalaria” (mais leves, menos armados e muito velozes). Apesar das limitações estabelecidas em 1919 pelo Tratado de Versalhes, alguns programas experimentais foram estabelecidos pelo alemães, em colaboração com a Suécia, ainda nos anos 1920, para que as características dos veículos fossem estudadas. 

A partir de 1931, o exército começou a requisitar veículos desenhados com base nessas experiências. Essas requisições inicialmente estabeleciam três tipos de veículos: um tanque pesado, armado com um canhão de 75 mm, um mais leve, armado com um canhão de 37 mm, e outro ainda menor, armado com duas metralhadoras de 7.92 mm. Alguns protótipos do *tanque pesado de infantaria” chegaram a ser entregues ao exército e postos em serviço; o outro modelo, denominado Leichtetraktor I (“trator leve” – devido às restrições do Tratado de Versalhes, os alemães disfarçavam seus programas de pesquisas com nomes “de fantasia”) apresentou problemas e teve seu desenvolvimento retardado.  O modelo efetivamente produzido foi o *PzKpfw Model I (“Carro de combate blindado modelo I”).

Esse veículo tinha sido pensado para funções de treinamento. Certo, mas o exército alemão não possuía tanques, portanto, também não tinha experiência de como fazer requisições de tal tipo de veículo. Os modelos usados na Suécia ou eram “veículos-conceito” (uma espécie de mockup montado sobre um chassi de caminhão ou trator) ou modelos de produção estrangeira, adquiridos em pequenas quantidades pelo governo sueco, sob a desculpa de proceder testes. A indústria alemã tinha pouco ou nenhum acesso a essas máquinas. Na guerra anterior, a Alemanha tinha começado tarde a produzir tanques, e os que tinha produzido eram *poucos e malfeitos. Assim, da mesma forma que o exército não sabia pedir, os engenheiros não faziam a menor idéia de como projetar e produzir aquelas coisas. 

Mas mesmo levando todas essas limitações em consideração, e também que o produto solicitado visava somente padronizar o treinamento ministrado às novas tropas, o resultado final foi pífio. Para piorar as coisas, o parque industrial alemão, apesar da reconhecida qualidade de seus engenheiros e técnicos, estava, por volta de 1932, começava a ser gravemente afetado pela crise econômica mundial, e não era certo que desse conta, sem problemas, de desenvolver as requisições do exército.

E não deu mesmo: o protótipo apresentado em meados de 1932, pelo arsenal Krupp, de Essen, com a notação “LKA” (“nome-fantasia” que significa Landwerke Krupp – “Agrícola Krupp” – modelo A) era baseado nos modelos disponíveis no fim da Grande Guerra. Uma espécie de grande casamata móvel, com uma placa frontal (glacis) inclinada, onde o armamento (subdimendionado) deveria ser instalado. Este era constituído por duas metralhadoras Dreyse MG13 7,92mm, decisão um tanto estranha, já que os próprios alemães tinham percebido que a metralhadora era inútil mesmo contra máquinas ou posições apenas levemente protegidas. Ou seja: o LKA era uma droga. A decepção dos militares deve ter sido tal que, em vez de pegarem a coisa para testes, propuseram que uma espécie de joint venture das principais empresas alemãs de metalurgia e mecânica, acrescentada por especialistas militares, revisse o projeto. A parte mecânica foi desenvolvida pela Henschel, Daimler-Benz e M.A.N; o desenho do casco ficou com a Krupp e Rheinmetall . Uma das principais modificações apresentadas foi proposta pela Henschel: a mudança da casamata do projeto original por uma torre girante (aparentemente baseada no exame, pelo exército, de desenhos franceses e ingleses então já em serviço). Essa versão foi aprovada em 1934, como Panzerkampfwagen I Ausf (abreviatura de Ausführung, “execução”, ou “lote”) A.

Os primeiros exemplares foram entregues às pressas, e não tinham torre, parecendo um caminhão sobre esteiras; os seguintes, mesmo completos, tinham blindagem frontal menor do que o especificado. Mas mesmo assim, o exército os aceitou como máquinas de treinamento, para que as duas primeiras divisões blindadas pudessem receber equipamento padronizado. Ainda assim, a geringonça era cheia de problemas: a suspensão, uma tentativa de burlar patentes norte-americanas e francesas, acabou gerando um “frankenstein” mecânico que apresentava péssimo desempenho até mesmo em terreno medianamente acidentado. A tripulação era de dois homens, sendo que motorista e comandante ficavam isolados e eram obrigados a se comunicar por um tubo de voz, fortemente afetado pelo ruído do motor. Pior ainda, o comandante cumpria também a função de artilheiro, que o sobrecarregava e tornava sua atuação passível de falhas. O “modelo A” não tinha rádio, e se esperava que as manobras em campo fossem cordenadas por sinais visuais. Não se sabe exatamente quantas unidades foram produzidas, mas alguns autores sugerem que foram mais-ou-menos 850.

Quando os nazistas resolveram, seguindo os italianos, intervir na disputa entre republicanos e fascistas, na Espanha, o exército alemão adorou a idéia – tratava-se de uma mini-guerra, relativamente próxima, onde as novas doutrinas poderiam ser experimentadas. Uma tropa de todas as armas foi organizada, compondo uma espécie de miniatura da nova Wehrmacht. Certa quantidade de Panzer I foi despachada para a Espanha. A participação alemã de quatro anos, apoiando diretamente as forças de Franco, deu à então recém-organizada Luftwaffe uma experiência em operações combinadas de valor inestimável.  As novas armas, seu uso e o reinamento do pessoal foi porto em teste prático, sob fogo real. De cara, obtiveram um sucesso notável – a transferência, em tempo mínimo, numa operação combinada entre marinha e força aérea, de tropas de elite do Marrocos para a Europa, com todo o equipamento. A organização alemã mostrou-se revolucionária, e é curioso que os resultados não tenham chamado mais atenção do resto do mundo, fortemente presente na guerra, em ambos os lados. Um dos motivos admitidos por historiadores especializados era o pequeno tamanho da força alemã engajada. A estrutura de comando era informal, com preponderância da Luftwaffe, as ordens eram gerais, emitidas diretamente de Berlim pelo comandante, marechal von Sperrle e, em campo, detalhadas pelo coronel Wolfram von Richtoffen.

Por outro lado, a participação da mini-força mecanizada alemã na Espanha proporcionou ao Estado-maior do Exército lições bastante importantes. Até então, os teóricos consideravam, não sem bastante controvérsia, que a proteção dos blindados poderia ser leve. Essa concepção mostrou-se falha, diante dos tanques republicanos. Esses eram *T26, de fabricação soviética, cópia melhorada do desenho britânico *Vickers Mark E. O “Mark E” originalmente era um tanque “de infantaria” (lento, fortemente protegido – a blindagem frontal chegava a 25 mm – e fortemente armado), que os soviéticos haviam comprado para praticar “engenharia reversa”. O projeto acabou mudado para melhor. Uma das melhorias foi a instalação de um *canhão anticarro de infantaria  L/46 Modelo 33, de 45 mm. A qualidade do produto soviético era, de fato, muito superior ao que os alemães dispunham, e de fato, até coisa pior seria mais do que suficiente para superar os pequenos Panzer I.

Até então, os alemães consideravam os tanques russos como carros leves, o que indica avaliação errada das informações disponíveis. A surpresa dos planejadores alemães deve ter sido desagradável ao ponto de faze-los rever a idéia, já meio deixada de lado, dos veículos diferenciados. Estavam prontos os projetos dos PzKpfw III e IV, que foram considerados adequados ao quadro que se desenhava, no qual o adversário mais considerável deveria ser o tanque russo (os alemães também pareciam ter pouca informação sobre os *blindados franceses e *norte-americanos).

O Panzer III, armado com um canhão de 37 mm, tinha sido colocado em banho-maria, e foi revivido, pois pareceu suficiente; o Panzer IV, de 25 toneladas e dotado de um canhão de 75 mm, de baixa velocidade, tinha como função apoio direto à infantaria. Estavam em estado de protótipo e a indústria, assoberbada com milhares de requisições da Wehrmacht, então em pleno rearmamento, não conseguiu colocá-los em produção. A única coisa disponível de imediato era o pequeno *Panzer KampfWagen Model II (“Carro de combate blindado modelo II) ou, no jargão da indústria, Sd.Kfz. 121 (Sonder Kraftfahrzeug, ou “Veículo motorizado Especial”), que se tornou, até 1941, quase onipresente. O “Panzer II”  estava pronto desde 1935, como desdobramento do projeto do Panzer I. A partir de meados de 1936, sofreu diversas alterações baseadas na experiência da Guerra Civil Espanhola.

Mesmo alguém que não entenda muito do assunto nota que o tal “Panzer II” é pouco maior que uma caminhonete. Esses pequenos veículos deslocavam em torno de 10 até 12 toneladas (nas últimas versões), eram levemente protegidos e armados (as principais versões tinham um canhão de 20 mm como armamento principal) e, sobretudo, muito velozes – as primeiras versões, equipadas com um motor de seis cilindros e 140 hp, alcançavam 40 km/h em estrada. Eram fáceis de produzir e relativamente baratos, de modo que foram generosamente distribuídos e, em 1939, o exército dispunha de aproximadamente 1200 unidades. Sua principal função era explorar, usando a velocidade, diversos pontos da linha inimiga.

Os alemães imaginavam que a velocidade, o emassamento e a colaboração estreita de equipes interarmas (tanques, infantaria e artilharia motorizadas) seriam suficientes para explorar brechas. Os tanques da vanguarda seriam acompanhados por infantaria transportada em veículos especiais, caminhões protegidos cuja suspensão traseira era montada com base em esteiras de tração. Esses veículos eram chamados *Schützenpanzerwagen (“Veículo  blindado para fuzileiros”), dos quais a primeira série foi a Sd.Kfz.250 leichte (“leve” ou “ligeira”). Tratava-se de uma espécie de caminhonete, que, no jargão norte-americano passou a ser chamada “transporte blindado de pessoal” (em inglês, AFV, ou armored fighting vehicle).  Esse veículo era capaz de transportar 4 a 5 infantes e 2 tripulantes, um deles operador de uma metralhadora ligeira MG34 orgânica. Geralmente o Sd.Kfz.250 atuava  nas unidades avançadas, enquanto o restante da infantaria era transportada em caminhões, a partir de 1937 os também onipresentes *Opel Kfz-305 (de Kraftfahrzeug, “viatura”) Blitz, de duas toneladas.

Os  Panzer IV (um artigo sobre esse tanque aqui mesmo, no causa::), por sua vez, junto com a infantaria convencional (deslocando-se sobre suas *botas de marcha), dariam conta de tanques e pontos fortes inimigos, deixados na retaguarda pelo avanço em velocidade das unidades mecanizadas. Essa idéia durou até o momento que a Wehrmacht deu de cara, nas estepes russas, com os muito bem protegidos e armados KV1 e KV2 e, sobretudo, com o soberbo T34 (um artigo sobre a “maravilha russa” aqui mesmo, no causa::). Aí ficou evidente que um tanque de 25 toneladas equipado com um canhão de uso geral (baixa velocidade de saída), motor subdimensionado impulsionando esteiras de tração estreitas, era muito pouca coisa. Isso resultou no lançamento de uma requisição para um veículo de 45 toneladas, projetado em torno do excelente canhão de 88 mm, o que implicaria em proteção, velocidade e manobrabilidade que não correspondiam a nada do que a Alemanha dispunha::

A linhagem AK::Os sucessores do AK::

parte3Em meados dos anos 1960, por diferentes motivos, tanto os EUA quanto diversos de seus aliados da OTAN questionavam o uso do cartucho 7.62X51 mm NATO. O Exército dos EUA adotara, desde 1957, um fuzil automático para essa minição, o *Springfield M14 (um excelente artigo sobre essa arma, em português, aqui), de fato uma versão aperfeiçoada do M1 Garand da 2ª GM. Em termos de desempenho, o M14 era excelente. Em termos de desenho, era pesado e longo, ainda muito assemelhado aos desenhos da 2ª GM (conhecidos, nos EUA, pela designação “fuzil de combate” ou battle rifle – se você lê inglês, mais informações aqui). Mas não era o único problema. Outro motivo residia no fato de que a munição 7.62X51 NATO é bastante pesada. Um cartucho dessa munição pesa cerca de 20 gramas (9,50 para o projétil), o que significa que 20 cartuchos pesarão por volta de 400 gramas, além do peso do carregador. Nessas condições, um carregador tipo “caixa” dificilmente comportaria mais do que 20 cargas sem tornar a arma excessivamente pesada.  O número de carregadores que um soldado poderia transportar, em situação de combate seria, pois limitado. Além do mais, a munição 7.62 NATO era, por projeto, bastante potente, o que provocava um alcance útil de uns 600 metros, bem maior do que os estudos mostravam necessário. Desde meados dos anos 1950 norte-americanos e europeus estudavam um cartucho de menores dimensões e menor potência. No caso norte-americano, a experiência inicial no Vietnam acabou por selar a sorte do M14. Os AK47, AKM, e as diversas variantes do “Tipo 56” chinês surpreenderam de tal maneira os norte-americanos que, em 1969, já não haviam quase fuzis M14 entre a infantaria dos EUA na Indochina.

Os soviéticos, por sua vez, sentiam o mesmo problema. Embora o cartucho M1943 fosse um pouco mais leve (o projétil pesava por volta de 8 gramas) e menos potente que seu equivalente ocidental, ainda assim, era pesado e potente. Não que não tivesse qualidades, mas também tinha defeitos de projeto. O principal era o desenho, chamado de *“popa de barco” (uma tradução livre de boat-tail), que melhorava desempenho aerodinâmico e tornava a trajetória muito tensa. Essa característica, combinada à dureza do material de que era fabricado o projétil, uma liga de chumbo e açoa recoberta por uma jaqueta de cobre de razoável espessura, criava um inconveniente: em distância de tiroteio (50 até 300 metros), a trajetória dificilmente se alterava quando encontrava obstáculos de baixa dureza (como madeira ou o corpo humano). Isso significava que, frequentemente, os ferimentos provocados não eram incapacitantes. Ao contrário, em proporção muito alta o tratamento era fácil e permitia que a baixa rapidamente voltasse à linha de frente. No final dos anos 1950, os chineses fizeram algumas modificações no cartucho que o tornaram um pouco mais eficiente. O material do corpo do projétil passou a ser o aço-carbono (muito mais dúctil do que a liga original) recoberto por uma jaqueta de cobre de menor espessura. O sucesso da combinação da linhagem AK (a maior parte de origem chinesa) com a munição produzida na China e Vietnam do Norte (com padrões chineses) provocaram avaliações equivocadas por parte da inteligência norte-americana. Já os soviéticos fizeram, desde o final dos anos 1950, avaliações exaustivas baseadas na observação das manobras anuais do Pacto de Varsóvia e das atividades militares de países fora de sua esfera direta de influência, como a Crise de Suez e das guerras dos Seis Dias e do Yom Kippur).

Os exercícios anuais do Pacto de Varsóvia eram particularmente importantes para essas avaliações. Embora o Pacto nunca tivesse tido grande importância na estratégia militar geral soviética e servisse mais como instrumento de controle dos aliados e de política externa, as manobras permitiam que o desempenho das forças armadas tanto soviéticas quanto dos outros países membros fosse examinado. A partir do final dos anos 1950, os soviéticos passaram a treinar um único objetivo geral: a invasão dos países ocidentais. A importância atribuída ao movimento e à mecanização, que sempre fora grande, aumentou. Na primeira metade dos anos 1960 se desenvolveu de um novo tipo de guerra móvel, com ênfase no assalto blindado, em ambiente nuclear. A distribuição de novos tipos de APC (do inglês Armoured Personnel Carrier), destinados a entregar as esquadras de infantaria diretamente no ponto de combate demonstrou a necessidade de maior cadência de fogo e, portanto, maior capacidade de transporte individual de munição preparada.  Uma observação interessante retirada do Vietnam é que um combatente a pé conseguia transportar de 6 a 8 dos carregadores curvos do AK47/AKM (eram basicamente iguais, pesando por volta de 450 gramas, com 30 cargas) sem ter sua mobilidade comprometida. A nova doutrina previa combatentes atirando diretamente dos veículos, através de escotilhas, antes mesmo de desembarcar – quando iria precisar de mais munição.

Um novo cartucho vinha sendo estudado desde o início dos anos 1960. O desenvolvimento foi acelerado conforme se observava a tendência, entre as principais potências do Ocidente, da adoção do calibre .223 (Remington)/5.56 (NATO) – que vinha sendo introduzido paulatinamente desde o Vietnam. O novo projétil, cujo modelo definitivo entrou em produção apenas em 1974, já estava disponível, para testes de campo, por volta de 1967. Recebeu a notação M74, e aos poucos deveria substituir o M1943. Isso levaria, claro, alguns anos – até porque não havia arma para ele.

O novo cartucho tinha características bastante diversas do M1943. O projétil, totalmente jaquetado, é bastante leve, pesando cerca de 3,2 gramas. Manteve a filosofia boat-tail, feito de aço, com uma curta seção frontal de chumbo, recoberto por uma jaqueta de cobre. Entretanto, o conjunto não alcança a ponta da jaqueta, de modo que uma pequena quantidade de ar fica presa naquele ponto.

Trata-se de um desenho muito pouco usual. A deformação da ponta oca da jaqueta, provocada pelo impacto do projétil contra o alvo, em teoria, desbalanceia o conjunto e o faz mudar de direção enquanto percorre a seção de trajetória dentro do alvo. No caso do corpo humano, isso potencializaria a capacidade de provocar ferimentos graves. Essa teoria nunca foi exatamente provada, e, segundo estudos realizados nos EUA e Inglaterra, o projétil 5.45 não produz ferimentos maiores do que seu equivalente ocidental, o 5.56 mm. A carga de pólvora química alojada no estojo de 39 mm, redesenho do M1943, de menor diâmetro, teve de ser diminuída, e provocava, ao ser detonada, uma quantidade de energia mais baixa, mas suficiente para imprimir ao projétil uma velocidade inicial de 900 m/s ao deixar o cano de 41,5 cms, mantendo um alcance eficaz de 300 a 350 metros.

O fuzil desenhado para usar o novo cartucho começou a ser distribuído em 1974,  embora os estudos de projeto tivessem começado, segundo a maior parte das fontes, em meados dos anos 1960. Os testes começaram no fim da década, e, curiosamente, o mais convencional dentre os avaliados era exatamente o apresentado pelo bureau de Kalashnikov. O protótipo, denominado A-3 é, basicamente, um AKM redesenhado para utilizar o cartucho de potência intermediária. A explicação parece simples: embora outros bureaus de projetos tivessem apresentado protótipos bem inovadores, e um desses tivesse sido considerado muito bom – o AS-006 Konstantinov – o A-3, sendo cópia redesenhada do AKM, não criaria problemas de produção industrial e poderia utilizar o ferramental já existente. Também foi levado em conta que o funcionamento do fuzil já era bem conhecido entre os mais de 3 milhões de militares soviéticos.

Inicialmente, o AK-74 foi distribuído para utilização pela infantaria motorizada da União Soviética. O *sistema de operação por recuperação de gás é idêntico ao da geração anterior, inclusive nos detalhes do pistão recuperador, ferrolho rotativo e ausência de válvulas de sangramento de gás. Embora guarde um alto nível de comunalidade com os AK da geração anterior, no que tange às peças, o AK-74 apresenta modificações significativas com relação a seus antecessores. A primeira e mais notável é o peso: vazio, o modelo padrão tem exatos 3 quilos, que aumentam para 3, 4 depois de receber o carregador (feito em fibra de vidro de alto impacto, com uma estranha coloração marrom-avermelhada) com 30 cargas de munição. 

O cano, cujo interior é cromado, foi redesenhado, e o raiamento, devido ao calibre e potência da munição, modificado, embora o giro continue sendo para a direita. Em função da potência da munição, o freio de boca aumentou de tamanho. Apresenta duas frestas à frente de três orifícos laterais, posicionados de modo que o sangramento de gás atue para evitar que a arma corcoveie em demasia. Essa *peça, rosqueada na parte anterior do cano, também cumpre o papel de supressor de chama. O sistema de pontaria foi modificado, com o redesenho da alça de mira. Sob o cano, um sistema de suportes combinando alças duplas e um trilho simples permite a instalação de uma baioneta- padrão tipo 6H4 (semelhante à usada no AKM) e lança-granadas de 40 mm BG-15 (o mesmo usado no AKM) ou GP-25.

Nas primeiras versões, a coronha e empunhadura posterior (“de pistola”) eram feitas em fibra de vidro de alta resistência. Uma versão destinada à distribuição entre tropas aerotransportadas surgiu quase imediatamente: o *AKS-74. É um AK-74 com uma coronha dobrável, embora de desenho diferente da anterior de arame de aço. O objetivo seria facilitar o transporte em aeronaves e em condição de salto. Essa versão tornou-se muito popular entre a infantaria blindada: dentro dos então quase onipresentes *BTR-60 e *70, onde se acotovelam até 14 combatentes, além dos três tripulantes, há muito pouco espaço disponível.

No geral, o AK-74 cumpriu sua função. Extensivamente testado na desastrosa guerra do Afganistão, diversas versões foram surgindo, acrescentando detalhes que tornavam a arma mais versátil, como diversos tipos de adaptadores para visores noturnos, novos materiais (polímeros) para a coronha e as empunhaduras, e pequenos redesenhos no freio de boca. Em 1979 uma versão encurtada, o AK-74U começou a ser distribuída, visando cumprir o papel de submetralhadora (experiências similares foram feitas pelos norte-americanos no Vietnam). O encurtamento radical do cano, reduzido à metade (210 mm) criou diversos problemas de tiro e acabou obrigando um redesenho com alteração do regime de torção do raiamento (o número de voltas que o projétil faz dentro do cano). O desenho e posição da alça de mira também foram modificados, em função do encurtamento da arma e de seu alcance.

No início dos anos 1990, a versão final, denominada *AK-74M (de Modernizirovanniy ou “modernizado”) se tornou padrão no exército russo e das nações da Comunidade de Estados Independentes. Essa versão incorporou grande número de peças em polímero, inclusive uma coronha dobrável que se tornou padrão. Um pouco depois, uma série conhecida pelos especialistas como “centurial”, por incluir o números da série 100 na notação, foi lançada, destinada principalmente à exportação: os AK-101, AK-102, AK-103, AK-104 e AK-105. Adotam diversos calibres e têm conseguido boa penetração no mercado internacional. Por sinal, dentre as diabruras que fazem de *Hugo Chavez o espantalho favorido de nossa vibrante imprensa, uma das maiores foi adquirir 100.000 unidades da versão AK-103, que utiliza a munição M1943. Parte da compra deverá ser produzida em uma fábrica local (na foto, o travesso empunha um AK103 de fabricação russa).

Como se vê, a linhagem AK está longe de terminar e mesmo na Rússia, sua “pátria-mãe”, diversas outras armas têm surgido e sido sistematicamente recudas pelas forças armadas nacionais::