Minha comemoração particular do fim da Segunda Guerra Mundial::Idéias absurdas que ajudaram a vencer a guerra2::Rosie the Riveter ou A mulher americana entra na guerra::

Rosie the Riveter, por Norman Rockwell. Trata-se da versão mais conhecida do icone da mulher norte-americana na guerra

Rosie The Riveter’ (“Rosinha, a Rebitadora”) nunca existiu. Ela foi inventada por diversos artistas e publicitáriosnorte-americanos, no momento em que idéias estapafúrdias eram mais do que necessárias para ajudar a tirar o país da maior encrenca em que já se vira metido (e não é de hoje que os EUA são criativos para se meterem em encrancas…): uma guerra mundial para qual não estavam preparados.

A idéia de ter mulheres em funções de combate hoje em dia não chega a despertar estranheza; a idéia de que mulheres trabalhem fora de casa, então, não chega a espantar qualquer pessoa. Mas nem sempre foi assim. Até o ataque japonês a Pearl Harbour, fato que lançou os EUA na 2ª GM, a quase totalidade da força de trabalho norte-americana era masculina. Até mesmo nas grandes cidades, era algo incomum encontrar mulheres em postos de trabalho remunerado. A partir dos anos 1920, alguns tipos de trabalho passaram a ser ocupados majoritariamente por mulheres, como, por exemplo, telefonistas, secretárias e professoras do ensino básico. Eram normalmente trabalhos adequados “à natureza feminina”: não exigiam força física (que, segundo se dizia, as mulheres não tinham) nem muita agilidade intelectual (idéia que até hoje surge por aí…) e lhes permitiam expressar a delicadeza e a “graciosidade”. De fato, o lugar reservado para as mulheres, na sociedade, era mesmo a família, cuidando de crianças e fazendo biscoitos…

Para que as mulheres deixassem tal posição, seria preciso uma crise grande o suficiente para que faltasse mão-de-obra no mercado de trabalho. Ao longo do século 19, as crises não chegaram a tal ponto: haviam homens suficientes para ocupar os postos de trabalho existentes sem que os salários aumentassem muito. O interessante é que, durante a segunda metade do século 19, conforme a economia se expandia com a Segunda Revolução Industrial, não houve guerras muito grandes e longas, que obrigassem a convocação de número considerável de homens adultos. A coisa mudou com a 1ª GM: a convocação maciça da porção masculina da sociedade, notadamente após 1916, chegou a obrigar alguns países europeus a lançar mão de grande número de mulheres jovens como força de trabalho industrial, embora tais números não tenham chegado a provocar uma inversão notável na composição da mão-de-obra. Nos EUA, a entrada tardia na guerra, e o número relativamente pequeno de efetivos enviados à Europa, a partir da segunda metade de 1917, não chegou a constituir problema sério para a constituição da força de trabalho. Nos anos posteriores ao fim do conflito, a expansão da economia criou postos de trabalho para todos aqueles que retornavam do front. A crise geral de 1929, por sua vez, expulsou do mercado de trabalho, nos EUA, cerca de vinte por cento do trabalhadores, e reduziu drasticamente o salário dos restantes. Nessa conjuntura, as mulheres permaneceram em casa enquanto os homens perambulavam pela rua a procura de uma ocupação.

O enfrentamento da crise econômica só seria encaminhado a partir de 1932, com a implementação do conjunto de políticas intervenconistas denominado “New Deal“. De início, as políticas de revitalização econômica através de fortes investimentos governamentais em obras públicas e assitência social não incluíram as forças armadas, cujo tamanho tinha sido drasticamente reduzido depois da 1ª GM. Além do mais, durante os anos 1930 a crise não deu sinais de que recuaria rapidamente, de modo que a eclosão da guerra na Europa encontrou a “grande depressão” apenas parcialmente resolvida. Isto explica, em parte, a conhecida relutância dos EUA em encarar uma possível participação no conflito, ainda que seus interesses nacionais no Pacífico estivessem fortemente ameaçados. Mas o país tinha sido tomado, após o fim da Grande Guerra, por forte mentalidade isolacionista, e o grosso da população, maltratada pela crise econômica, tendia a enxergar os problemas europeus como “problemas estrangeiros”. Ainda assim, a partir de 1940 o governo norte-americano passou a projetar uma participação “relativa” na guerra, com o presidente Franklin Delano Rooselvelt disposto a auxiliar os ingleses em sua luta contra o nazismo através de apoio econômico e industrial (concretizados na política de “Empréstimos e aluguel” – Lend-lease – concretizada no início de 1941). O potencial militar dos EUA (aquela altura, nada muito considerável) seria empenhado apenas na defesa hemisférica – defesa das águas domésticas no atlântico norte e apoio e liderança às políticas de defesa dos países latino-americanos.

Entretanto, a mobilização propriamente dita começou no final de 1939 e se acelerou no clima um tanto deprimente (para o governo Rooselvelt) dos sucessos militares alemães da primavera de 1940. Esta fase, uma transição ordenada prevista no plano de mobilização industrial de 1939, logo foi abandonada. De fato, os planos de mobilização industrial e militar já vinham sendo elaborados desde 1930 e examinaram detalhadamente a forma como o país organizaria a administração civil, as forças armadas e a indústria numa possível guerra generalizada. A base era a doutrina de que a gestão da economia e particularmente o controle da indústria nessa possível guerra seriam funções presidenciais por excelência. Essas funçôes seriam delegadas à agências executivas, em grande parte compostas por civis especializados e chefiadas por um staff de total confiança do chefe da nação. O planejamento antecipado foi uma boa solução: a idéia era de que o problema, quando e se surgisse, provavelmente seria maior do que qualquer serviço ou departamento, sozinho, poderia dar conta. Em 1940 a equipe presidencial convocada já dispunha de um projeto que previa os métodos e instrumentos de controle econômico em tempo de guerra, a partir de listas de necessidades e prioridades para instalações, indústrias e produtos, para o controle do comércio exterior, e até mesmo para o estabelecimento de empresas estatais de emergência, controle de preços e da opinião pública.

Em maio de 1940, o Roosevelt lançou, numa mensagem dirigida ao Congresso dos EUA, o desafio dos “50 mil aviões” (uma Força Aérea de 50.000 aeronaves e a produção de outras 50.000 a cada ano) e encaminhou um pedido de dotação orçamentária suplementar para a defesa. Paralelamente, montou, no gabinete presidencial, o “Escritório de Gerenciamento de Emergências”, que deveria coordenar o esforço de mobilização. A “Comissão Consultiva de Defesa Nacional”, mais ampla, avaliaria os problemas de mobilização de recursos e prepararia planos abrangentes para vários estágios do processo. Essa comissão se não durar um ano, e foi sucedida pelo “Escritório de Gestão da Produção”, também logo dissolvido. O clima político não foi lá muito receptivo a uma mobilização em escala industrial e a população também olhava a guerra como um problema europeu.

A mobilização propriamente dita começou no final de 1939 e se acelerou no clima um tanto deprimente (para o governo Rooselvelt) dos sucessos militares alemães da primavera de 1940. Esta fase, uma transição ordenada prevista no plano de mobilização industrial de 1939, logo foi abandonada. Se por um lado o ataque aéreo contra Pearl Harbour  mobilizou a população para a causa da guerra, por outro o problema mostrou-se ainda maior do que tinha sido imaginado: o teatro do Pacífico exigia intervenção imediata, os ingleses queriam mais do que ajuda econômica e os soviéticos, tornados aliados a partir de junho de 1941, passaram a clamar pela abertuda de uma “segunda frente”. A mobilização da sociedade passou a ter como objetivo aguentar o tranco até a montagem de forças armadas grandes o suficiente para intervir em todas essas frentes, mas seriam necessários, para começo de conversa, algo em torno de 1.o00.000 de efetivos no Exército, 50.000 na aviação e 300.000 na marinha,  e num prazo de aproximadamente seis meses.  É claro que as forças armadas precisariam de equipamentos e munições, e essas teriam de proceder das fábricas que as próprias forças armadas iriam esvaziar. Inicialmente, se pensou em uma convocação que preservaria as áreas mais sensíveis da produção. Foram precisos apenas poucos meses para que ficasse evidente: não ia dar certo. A sucessão de vitórias japonesas, ao longo da primeira metade de 1942, e a campanha dos submarinos alemães contra a navegação mercante na costa oriental dos EUA mostrou que a magnitude da convocação exigiria soluções radicais.

Pouco antes, o o governo começara a encarar seriamente a convocação de mulheres para ocupar os postos de trabalho que iriam vagar com a incorporação dos homens adultos às forças armadas. As pesadas baixas iniciais mostraram com clareza e crueza a crise em que o país se via mergulhado. Em função da propaganda, não seria difícil fazer com que as mulheres aderissem ao esforço de guerra, mas não se poderia esperar que elas o fizessem de forma absolutamente espontânea, como os homens estavam fazendo no que tange ao alistamento nas forças armadas. Seria preciso apelar ao sentimento patriótico das mães e esposas norte-americanas, e isto teria de ser feito através de grandes campanhas publicitárias.

O governo norte-americano passou a montar, a partir de 1942, com a assistência de grandes agências, sucessivas campanhas que conclamavam as mulheres a assumir,  na indústria, funções até então vistas como masculinas. Tais funções seriam indicadas tais funções como “postos de combate” de um “frente interna” (em inglês, Homefront) que exigiria a participação de todos. É interessante observar que a campanha We can do it!, lançada em fevereiro de 1942 – quer dizer, logo no início da guerra –, mostra uma mulher jovem, com o rosto determinado, fazendo um gesto tipicamente masculino. Era a  primeira cara de Rosie, the Riveter (“Rosinha, a rebitadora”), personagem que se tornou o símbolo da mulher norte-americana durante a 2ª GM.

A imagem foi criada pelo artista J. Howard Miller, por encomenda do Comitê de Coordenação da Produção de Guerra da empresa The Westinghouse Company, indústria eletroeletrônica produtora de peças para aeronaves de combate. A mais famosa dessas imagens foi baseada em uma fotografia feita numa fábrica da empresa em Michigan, e retratava uma trabalhadora de 27 anos de idade chamada Geraldine Doyle. Nessa época, a personagem não era chamada de “Rosie”, nome que, por incrível que pareça, só foi adotado no final dos anos 1970, ou seja, mais de quarenta anos depois do lançamento.

A campanha teve enorme sucesso e o objetivo inicial foi rapidamente cumprido: a indústria conquistou a força de trabalho feminina. O setor aeronáutico viu crescer de forma notável o número de mulheres em suas linhas de produção. Mais de 310.000 delas trabalhavam nessa indústria em 1943, representando mais de 65 por cento do total da força de trabalho dessa indústria. A magnitude desse porcentual não precisa ser frisada: em 1939, cerca de um por cento da mão de obra dessa indústria era composta por mulheres. A indústria de munições também passou a recrutar trabalhadoras em grande número.

O sucesso feminino nas novas atividades devia-se, em parte, às características do trabalho desenvolvido. De fato, fabricar aviões ou preparar cartuchos não exigia força física, já que a força propriamente dita era feita pela máquina. A indústria moderna, organizada no final do século 19, colocava os trabalhadores como operadores de máquinas, e o conjunto máquina-operador executava pequenas tarefas de forma mais ou menos automatizada e altamente repetitiva. O conjunto dessas tarefas resultava no produto acabado. Os movimentos realizados eram poucos e simples (apertar um gatilho ou acionar uma alavanca ou um pedal, por exemplo), em posições próximas uma das outras. O operário não precisava se deslocar, ou o fazia em extensões muito pequenas, visto que o objeto do trabalho é que se deslocava, ao longo de uma linha. Ferramental acionado por força eletromecânica, pneumática ou hidráulica tinha de ser deslocado até um ponto bastante preciso dentro de um objeto maior. Dessa forma, o operário não precisava entender plenamente o que estava fazendo, desde que seguisse a risca uma série de instruções. Caso tivesse dúvidas, remetia-se a um esquema gráfico que indicava por imagens ordenadas sucessivamente o que tinha de ser feito. Um operário desses precisava ter um grau de instrução relativamente baixo, e o treinamento era muito fácil, aprendido na própria linha de montagem. O decorrer do trabalho era supervisionado o tempo todo por capatazes – estes, em geral, do sexo masculino. E, apesar da admitida necessidade da força feminina para o esforço de guerra, isto não significou vantagens salariais: dificilmente uma operária ganhava mais do metade do ordenado pago a um operário. Os capatazes quase nunca eram mulheres, e os cargos de supervisores e gerentes eram virtualmente fechados ao sexo feminino.

Conforme as mulheres se juntavam às linhas de produção, as campanhas começaram a mostrar as qualidades que se esperava de uma “combatente da frente interna”: forte, disciplinada, dedicada. Masculinizada, mas sem perder certas características femininas. Essas campanhas começaram a apresentar, a partir de maio de 1943, a nova “Rosie”. Esse redesenho da personagem aparece com uma ilustração do artista gráfico Norman Rockwell, na capa da revista Saturday Evening Post. Rockwell é conhecido por seus desenhos altamente realistas do americano comum, apanhado em cenas cotidianas. Sua “Rosinha”, entretanto, incorpora todos os atributos geralmente atribuídos aos operários industriais, inclusive o macacão de zuarte (um tecido de mescla de algodão, juntando fios mais grossos e mais finos, muito parecido com os blue-jeans), que os fazia serem chamados de “colarinhos azuis”, em oposição aos “colarinhos brancos” da administração. Ela é mostrada na hora do almoço – um sanduiche, que pode ser consumido rapidamente nos vinte minutos de intervalo que as operárias tinham para almoçar. É interessante observar que a cena, um verdadeiro discurso patriótico feito com imagens, incorpora a “arma” da “combatente”: um rebitador, mas de proporções bem maiores do que aqueles usados na indústria de equipamento militar (que tinha aproximadamente as proporções de uma furadeira elétrica de impacto), uma enorme bandeira dos EUA e, debaixo dos pés de Rosinha, um exemplar do “Mein Kampf”, o panfleto de Hitler transformado em livro sagrado dos nazistas. O mais interessante nessa imagem são as proporções masculinas que Rockwell atribuiu à sua personagem, a começar pelos braços musculosos. Alguns intérpretes afirmam que essa imagem tem atributos das imagens religiosas compostas durante a Renascença, e que a composição teria sido intencional, feita para dar tons religiosos à mensagem patriótica buscada com a composição.

As campanhas publicitárias prosseguiram por toda a Guerra. As revistas ilustradas estampavam reportagens fotográficas com “Rosinhas da vida real”: uma rebitadora da General Motors na cidade de North Tarrytown, NY, que instalou 3.345 rebites em um bombardeiro Avenger, merecendo pelo feito uma carta de agredecimento do presidente Rooselvelt. Essas “mulheres da vida real” passaram a merecer atenção da imprensa não propriamente como trabalhadoras empenhadas em funções industriais regulares, mas como ocupantes de funções ”masculinas” num momento atípico em que os homens não estavam disponíveis::

Rafale versus Typhoon::Como uma avaliação deve ser feita::

“Rafalista militante e juramentado” que sou, continuei pesquisando o tema na Internet, tendo agora como objetivo encontrar avaliações técnicas da aeronave, principalmente com relação às concorrências em que foi apresentada (e que perdeu todas). O que corre na imprensa especializada (imprensa da qual nossa intimorata “Veja” não faz parte), é que o problema do Rafale é mesmo o preço. Certo, isso parece mais do que confirmado, mas como o avião francês tem sido avaliado tecnicamente? É bom? É ruim? É uma “sucata”, como decidiram nosso Lord Rew-Rew e o gourmet boquirroto Antonio Ribeiro?

Falemos sério. Aeronaves tecnologicamente em “estado da arte” e caríssimas não são avaliadas por jornalistas especializados em insultos ou em restaurantes. A concorrência FX é um desses concursos – já falamos sobre ele aqui no causa:: Esses concursos são cheios de idas e vindas, e em nenhum está totalmente eliminada a possibilidade de um “por fora”. Ao contrário do que costuma a insinuar nossa imprensa, essas coisas não acontecem apenas no Brasil.

Dentre esses concursos, um dos maiores em que o Rafale foi apresentado é o Indian Air Force Medium Multi-Role Combat Aircraft, concorrência conhecida como MMRCA. É uma competição para a escolha de uma aeronave multifunção a ser fornecida para a Força Aérea Indiana (IAF – Indian Air Force) nos próximos dez anos, em números que alcançarão 126 unidades. Parte considerável dessas aeronaves deverá ser fabricada localmente, e o orçamento final do projeto chega a US$ 10 bilhões, ou seja – uma montanha de dinheiro. Iniciado em 2009, o concurso envolveu o Dassault Rafale, o Eurofighter Typhoon, o Boeing F/A18 Hornet, o JAS 39C Gripen NG, o MiG 29 e o Lockheed F16 Fighting Falcon. Em abril passado, foram escolhidos os dois finalistas: o Rafale e o Typhoon. As avaliações continuaram ao longo do ano, e o resultado deveria ter sido divulgado em este mês, mas informações vazadas do governo indiano dão conta de um possível adiamento da resposta. Parece que o problema é o preço das aeronaves selecionadas, que extrapola em muito o que as autoridades indianas estão dispostas a pagar. De toda forma, uma completa bateria de testes tanto técnicos quanto de campo, bem como questões sobre os termos do contrato a ser assinado foi (e ainda deve estar sendo) aplicada. Essa disputa tem gerado muita discussão na Internet, e acabei chegando ao fórum Indian Defense. Nesse fórum virtual encontrei um artigo bastante completo e mais de 500 páginas (é isso aí mesmo – quinhentas) de comentários, muitos deles altamente especializados, sobre os prós e contras das duas aeronaves. Não consegui identificar os autores (nesses espaços, todos os participantes adotam avatares meio ridículos), mas o crédito é deles, tanto do tal “major general jigjitnatt”, autor do artigo, quanto dos “coronéis”, “majores” e por aí vai: estão todos de parabéns. Seguindo o método habitual de causa::, recortei e editei parte do material (uma pequena parte – a edição de todo o material demoraria algumas semanas e resultaria em um livro sobre os dois caças…). A tradução (o original é em inglês) é livre, mas procura ser totalmente fiel ao conteúdo e pode ser verificada. Quando necessário, foi feita alguma pesquisa para esclarecer os termos técnicos, que são muitos – alguns já esclarecidos na postagem anterior. Depois de dois dias de trabalho, estou colocando o material à disposição dos assíduos do blogue das boas causas. Quem quiser ignorar e se aventurar pelo original, esteja à vontade (basta clicar ali em cima). No fim da leitura, terá se tornado um especialista em Rafale e em Typhoon, e poderá, com esse conhecimento, fazer muitas coisas legais – menos conseguir um emprego na “Veja” e uma bocada em Paris::

Agora é oficial: a longamente aguardada competição MMRCA chegou ao estágio final. Duas aeronaves foram selecionadas e deverão ir, cabeça com cabeça, até a vitória nessa competição de 10 bilhões de dólares. Os finalista são o Eurofighter Typhoon e o Dassault Rafale. Não posso prever qual será o vitorioso, mas posso dizer hoje qual dessas aeronaves a IAF deveria selecionar. Assim, sem maiores delongas, passarei à análise.

Aeroestrutura Ambas as aeronaves são configurações muito avançadas, em delta com canards. As duas já viram alguma ação e tem sido objetos de desejo de diversas forças aéreas, no mundo inteiro. Embora pareçam, à primeira vista, similares, as estruturas são completamente diferentes, e cada componente cumpre diferentes funções.

O Typhoon é uma aeronave de desenho formidável. Seus grandes canards estão posicionados em ângulo, com relação ao chão, logo atrás do nariz. Essa característica ajuda o conjunto a elevar rapidamente. Isto pelo fato de que cria uma “cauda virtual” que influencia fortemente o comportamento da aeronave, capacitando-a a apontar o nariz em qualquer direção muito rápido, de maneira semelhante ao que acontece no SU-30 MKI (o Flanker indiano).

Vale também à pena mencionar, no desenho do Typhoon, seu canopi. Tem o formato de bolha, com a vantagem de oferecer um amplo campo de visão ao piloto. As tomadas de ar dos motores estão situadas debaixo da fuselagem. Embora esse arranjo tenha vantagens, como melhorar o desempenho de vôos em baixas velocidades, também tende a criar problemas em situações de alta velocidade. Em curvas de alta velocidade, a estrutura sofre alta taxa de estresse, mas o desenho do Typhoon, indiscutivelmente bem resolvido, é muito robusto, sendo perfeitamente capaz de suportar tais cargas. O único problema observado são as exigências de manutenção que podem ser requeridas para manter a aeronave em boa forma.

Um dos pontos fortes é o desenho das asas, e logo ao primeiro exame, fica claro que o perfil limpo deve ter sido exigência dos britânicos, que requeriam uma máquina bem manobrável. Tudo nessa aeronave grita “velocidade” e “manobrabilidade”. O desenho das asas não é reto, mas ligeiramente curvados para cima, de modo a implementar a resistência e capacitar o conjunto a lidar melhor com baixas velocidades. Mesmo os slats são controlados por eixos giratórios motorizados, que requerem menos espaço nas asas e se movem mais rapidamente. A empenagem vertical tem um desenho convencional, pensado para ser resistente.

O Typhoon tem tomadas de ar de geometria variável, o que significa que podem ser diminuídas de modo a controlar o montante de admissão de ar para os motores. Esse detalhe é um dos diferenciais do modelo, pois pode tornar a aeronave mais eficiente em altas velocidades, tanto quanto nas baixas. Em aeronaves de desenho convencional, quando velocidades mais altas são requeridas, mais ar é admitido através das tomadas em função do desempenho aerodinâmico do conjunto. Torna-se mais difícil queimar essa quantidade extra de ar, de modo que mais combustível começa a ser gasto, o desempenho se torna menor e o motor começa a perder empuxo. No Typhoon, isso pode ser evitado através da redução do tamanho da tomada, que passa a admitir menos ar em altas velocidades, e quando o gás alcança a câmara de combustão, sua velocidade diminui, em função do grande volume daquela, de modo que a ignição é otimizada e o empuxo se mantém.

O Rafale é um pássaro diferente. Não é tão complexo, mas é robusto. Foi desenhado de modo que parece ao mesmo tempo bonito e resistente. Os canards do Rafale não são tão grandes quanto os do Typhoon, e estão posicionados muito próximos das asas, o que sugere que serão de pouca ajuda para o conjunto. Mas essa configuração implementa a eficácia aerodinâmica da aeronave. Pode ser uma diferencial notável, no que diz respeito ao vôo em baixas altitudes e altas velocidades. Nessas velocidades, essa configuração oferece menor resistência aerodinâmica e capacita a aeronave a atingir velocidades superiores a Mach 2.

O Rafale não tem uma concepção tão radical quanto a do Typhoon. A tecnologia utilizada em sua estrutura é mais convencional. Tudo nela já foi experimentado e testado. O projeto não foi concebido tendo em mente a mesma manobrabilidade que Typhoon. De fato, a aeronave multinacional é muito superior, em manobrabilidade e agilidade, à sua concorrente francesa. Os canards do Rafale, aparte o fato de proverem superfícies de controle adicionais, são posicionados de modo a assegurar que o fluxo de ar seja canalizado diretamente até o apex [nota de causa:: trata-se da área do bordo de ataque onde se concentra a carga dinâmica] do aerofólio [nota do causa:: outra maneira de dizer “asa”, quando se considera essa parte de uma aeronave do ponto de vista de seu comportamento aerodinâmico, ou seja, de como ela rompe a resistência do fluído, quer dizer, do ar (para os mortais não-engenheiros)], o que cria um efeito de vórtice [nota de causa:: trata-se de um movimento giratório e turbulento (um redemoinho) que, em certas condições, assume o fluxo de escape um fluído, e que é mais rápido no centro e decresce progressivamente conforme afasta-se do centro] que torna o conjunto muito mais estável em velocidades elevadas. Quanto mais próximos os canards das asas, menor é seu efeito. Para o Rafale, os canards atuam de modo muito similar aos slats. Os canards do Typhoon implementam a manobrabilidade da aeronave, mas não são muito eficazes, do ponto de vista aerodinâmico. O posicionamento dos canards escolhido para o Rafale proporciona à aeronave um padrão de curva melhor do que o do concorrente multinacional, quer dizer: o raio de curva do Typhoon é maior. Por outro lado, se estivermos considerando o efeito de implementar a elevação da aeronave, o Rafale perde. E os canards são feitos para isso, ajudar a aeronave a subir. O Rafale utiliza os canards para outras funções, que não têm relação com a manobrabilidade. Os canards do Rafale são feitos para lhe dar maior estabilidade.

A conclusão seria, então, que o Rafale não é tão manobrável quanto o Typhoon. Com carga similar ao concorrente francês, o multinacional curva num grau maior, em velocidades maiores. O menor empuxo do Rafale faz com que um loop vertical [nota de causa:: manobra em que a aeronave faz uma curva para cima de 360°, que se inicia num ponto e termina mais ou menos no mesmo ponto, na qual em alguns momentos a sustentação da aeronave é garantida pela potência dos motores] demore uma eternidade para se completar, quando em comparação com o Typhoon. E para padrões rápidos de curva, o Rafale também perde para seu concorrente. Os canards do Typhoon são desenhados para adicional arrasto quando usados, mas essa característica os torna muito eficazes. Eles são grandes e posicionados acima de modo a canalizar ar para as asas, e estas fazem o resto do trabalho. Em resumo: o Rafale pode transportar maior carga paga devido à sua estabilidade, mas o Typhoon ganha em manobrabilidade.

As tomadas de ar do Rafale também são convencionais. Elas tem um belo desenho, mas nada de revolucionário. Não são más, mas o Typhoon passa-lhe a frente também nesse detalhe. A aeronave multinacional tem uma taxa de aceleração muito melhor do que a do Rafale, e mesmo em situações em que a estabilidade faz a diferença, a aeronave francesa não consegue ultrapassar Mach 1.8. Em termos gerais, isto diz alguma coisa. O motivo são os propulsores.

MotoresO EJ200 [nota de causa:: O turbofan Eurojet EJ200 é o propulsor do Eurofighter Typhoon. É um produto baseado na tecnologia XG40, da empresa Rolls-Royce, desenvolvida durante a década de 1980, e posto em produção pelo consórcio Eurojet Turbo GmhB, instalada nas proximidades de Munique, Alemanha. As empresas líderes são a Rolls-Royce e a alemã MTU] é geralmente considerado superior ao Safran-Snecma M88-2 que equipa o Rafale, tanto em empuxo quanto em consumo de combustível.

O empuxo fornecido pelos propulsores EJ200 chega, em modo “seco” a 60 kN, podendo escalar até 90 kN em modo “molhado” [nota de causa:: em pós-combustão, modo utilizado em aeronaves militares para adquirir empuxo extra, em situações de decolagem ou de combate. O termo “molhado” (pouco usual no Brasil) é usado devido ao fato de que se consegue o empuxo adicional pela injeção de grande quantidade de combustível diretamente no exaustor da turbina (pós-combustor), o que provoca uma explosão controlada que aumenta a velocidade do conjunto]. Esses montantes são consideráveis e, juntamente com a forte aeroestrutura e as poderosas asas, os motores conseguem o máximo de seu desempenho. E o pessoal da Eurojet parece querer mais: correm notícias de que está para sair uma versão com TVC incorporado [nota de causa:: abreviatura de Thrust Vectoring Control – “controle de empuxo vetorado”. Se trata de uma forma de alterar a direção do jato de gás, num propulsor a jato ou a foguete, de modo alterar o ângulo de saída do fluxo]. Certamente isto é possível, mas, no momento, o EJ200 tem um desempenho não superado pelos concorrentes mais diretos, e o desempenho dos canards compensa, parcialmente, as vantagens que poderiam ser adicionadas pela inclusão do TVC.

O fato é que os propulsores são uma das mais fortes desvantagens do Rafale. A pergunta sobre o motivo da Dassault não ter posto um motor mais poderoso é simples: ele não precisa de um. O propulsor M88-2 instalado na aeronave francesa é muito bom, mas quando comparado aos das outras aeronaves da geração 4.5, o empuxo gerado por ele parece ser um tanto baixo. Não é que os propulsores da Snecma percam no quesito “empuxo seco”, onde alcançam 50 kN. O problema é no modo “molhado, onde a diferença sobe para 15 kN (75 a 90). Os testes parecem ter indicado que a eficiência dos dois produtos é a mesma, no modo pós combustão, resumindo-se o problema à potência . Já faz algum tempo a Dassault tem prometido apresentar um modelo da M88, o “3”, com maior empuxo, mas não se sabe o estágio de desenvolvimento desse novo propulsor. Apenas parece que será maior e mais potente que o modelo “2”.

No que diz respeito à potência combinada, em condições de serviço, o perfil de ambos é basicamente o mesmo: no Typhoon, o conjunto dispensa certa de 178 kN, bem mais dos que os 150 kN do Rafale. Se bem que tal diferença possa parecer considerável, ela conta muito pouco, já que o coeficiente peso-potência é quase o mesmo, no Rafale e no Typhoon. Quanto ao montante de carga bélica transportada, o Typhoon perde. O peso carregado do multinacional [nota de causa:: peso básico acrescido da capacidade interna de combustível] é de 16000 quilos, e o peso máximo da decolagem, de 23500 quilos, ou seja, o Typhoon transporta em torno de 7500 quilos de armamento, combustível externo e/ou pods especializados. Já o Rafale levanta, para um peso carregado de aproximadamente 14000 quilos, um peso máximo de 24500 quilos.

O Rafale é muito mais eficiente que o Typhoon, no que diz respeito ao consumo de combustível, mas o propulsor EJ200 conserva potência em altas velocidades Mach, dando ao Typhoon uma maior capacidade de aceleração, quando em velocidades superiores a Mach 1.5. A velocidade máxima do multinacional é de Mach 2 (uns 2490 km/h a 16000 ft), enquanto o Rafale, mesmo em condições ideais, dificilmente excede Mach 1.8 (aproximadamente 2130 km/h a 16000 ft). Alguns especialistas argumentam que o propulsor M88-2 tem melhor desempenho em altas altitudes e mantém o conjunto em velocidade supercruise [nota de causa:: velocidade de pelo menos Mach 1.1 (cerca de 1350 km/h) em condições de vôo normais (vôo estabilizado em altitude média), por mais de 20 minutos sem exceder o consumo  de combustível em mais de 40 por cento em relação ao vôo de cruzeiro] por mais tempo que o concorrente, mas essas vantagens não compensam a velocidade máxima, em condições de combate.
AviônicosO Typhoon monta, como principal equipamento, o radar CAPTOR [nota de causa:: produto do consórcio Euroradar, liderado pela empresa Selex Galileo, de Edimburgo. Foi desenvolvido com base no radar Blue Vixen, desenvolvido nos anos 1970 para o Sea Harrier FA2]. Trata-se de um radar multimodo Pulso-Doppler, com antena acionada mecanicamente. Não é novidade que essa tecnologia está, atualmente, ultrapasssada, podendo ser considerada uma geração atrasada com relação aos radares multimodulares do padrão PESA, e duas, com relação ao padrão AESA. Mas a Euroradar tem tentado melhorar o sistema, aumentando o tamanho da antena, o que lhe aumentou notavelmente a performance. O CAPTOR pode detetar aeronaves voando a uma distância de 160 km. Mas como se trata de um radar MSA [nota de causa:: abreviatura de Mechanically Steered Array, “equipamento mecanicamente dirigido”, aquelas antenas de radar que ficam se movendo em círculo ou em meio-círculo, acionadas por um motor, enquanto emitem o sinal], tem algumas desvantagens, a principal delas não poder rastrear muitos alvos ao mesmo tempo. Outra desvantagem considerável é a baixa capacidade de prevenir interferência eletrônica, ainda que o sistema apresente alguma capacidade de separação de pulsos. Ainda assim, no que diz respeito ao radar, o Rafale leva grande vantagem.

Graças ao Thales RBE2. Trata-se de um radar padrão PESA, cujo desempenho é influenciado negativamente pelo tamanho do nariz da aeronave francesa. Isso porque o tamanho do radar é restringido pelo espaço, o que limita a distância do rastreamento de alvos para algo em torno de 140-150 kms. Essa distância parece pequena, em relação aquela exibida pelo CAPTOR, mas a tecnologia do RBE2 é muito superior. Para começar, o sistema não tem peças móveis e é completamente automatizado. Quando em modo de interceptação, seleciona automaticamente as repetições de pulso de frequência, altas, médias e baixas, tornando mais clara a recepção. O RBE2 logo será substituído por outro, do padrão AESA, cujo alcance é estimado em 160-170 kms, e será ainda mais avançado, com relação ao antecessor. Não se pode dizer o mesmo em relação ao Typhoon, a não ser que notícias têm dado conta que um modelo do padrão AESA está sendo planejado, mas que não poderá ser incorporado ao “bloco 3’ da aeronave, embora talvez esteja disponível um upgrade.

Mesmo com o RBE2A, o alcance de rastreamento do Rafale será de menos de 200 kms. O padrão AESA não apresenta um ganho significativo com relação ao anterior PESA, em termos de alcance – de fato, a diferença é quase inexistente, não chegando a 10 ou 15 por cento. Portanto, a próxima versão do RBE2 será capaz de rastrear até 40 alvos ao mesmo tempo, à distâncias de até 160-170 km. Alguns especialistas argumentam que, com o limitado espaço de abertura disponível no Rafale, o RBE2A, mesmo com módulos de radar mais poderosos, apresentará limitações em missões de cobertura, SAR e busca e rastreamento. Por outro lado, o RBE2A mostrou-se invulnerável à interferência. Não restam dúvidas de que, tecnologicamente, o radar do Rafale é, até o momento, superior ao instalado no Typhoon.

O CAPTOR padrão AESA, ou CAESAR (CAPTOR AESA Radar), tem sido dito, deverá ser bem melhor do que o RBE2 padrão PESA. Especula-se que seu alcance será algo entre 200 e 220 kms. O CAESAR está sendo projetado para dar ao Typhoon um desempenho de função alternante dinâmica, de modo a poder cumprir funções de SAR, GMTI/MMTI [nota de causa:: abreviatura de Ground Moving Target Indicator/MultiMapping Targeting Indicator, ou seja “indicação de alvos terrestres móveis/indicação de alvos por mapeamento múltiplo”. Significa usar as capacidades dos radares de abertura sintética para produzir mapas de terreno em três dimensões, nos quais os marcos – edifícos, estradas, estruturas, veículos, aeronaves estacionadas, navios, antenas de rádio e de radar – são indicados nos mínimos detalhes, identificados em tempo real e precisamente localizados no terreno em torno da aeronave], busca/rasteamento aéreos, guerra eletrônica anti-míssil EW, e assim por diante. Diferente do Rafale, o Typhoon poderá cumprir muitas tarefas através de seu radar. Excetuando-se as funções de cobertura, SAR e busca/rastreamente, que ambas as aeronaves realizam, seus radares não tem muito em comum.

Isto parece significar que os projetistas do CAESAR estão desenhando seu produto para ser tecnologicamente superior ao radar da Thales. O projeto busca um desempenho similar ao do AN/APG79, que equipa o F/A18 Super Hornet, que, até o momento, é dado como mais capaz dentre os radares que equipam MRCAs (MultiRole Combat Aircraft, “aeronave de combate multimissão”).

Uma característica do radar do Typhoon, que parece ter sido copiada do AN/APG79 do F/A18 Super Hornet, e que é dada como uma vantagem é a abertura – 700 mm, enquanto a do Rafale é de 600 mm [nota de causa:: isto quer dizer que os módulos estado sólido que formam a “antena ativa” do radar projetam um “cone” de ondas cujo diâmetro inicial é de 70 cm, mais ou menos, e que se expande proporcionalmente. A 100 km de distância, esse “cone” cobre uma área de aproximadamente 70 km de raio, em todas as direções. Nos radares padrão AESA, essa abertura pode ser ampliada variando-se o ângulo de emissão de cada um dos módulos]. A antena do radar padrão AESA do Typhoon estará montada numa placa ajustável, ao invés de uma placa fixa, como no RBE2. Isto deverá dar ao CAESAR uma área de detecção maior do que a do concorrente francês.

Outra questão é que os projetistas do Rafale optaram por uma filosofia de utilizar softwares e pods especializados: o sistema SPECTRA, OSF (optrônicos), e pods para realizar tarefas de ECM (Eletronic Counter Measures, “contramedidas eletrônicas”), GMTI/MMTI, etc., enquanto o radar do Typhoon deverá ser capaz de fazer tudo isso. Por outro lado, os sistemas de contramedidas eletrônicas incorporados à aeronave têm se mostrado muito confiáveis, de modo que o Typhoon não precisa fiar-se exclusivamente em seu radar, pois tem um monte de sensores montados nele.

Entretanto, um argumento pode ser apontado como definitivo, com relação ao RBE2A: ele existe, enquanto o CAESAR, por enquanto, é uma promessa.

Um sistema do Rafale que merece ser mencionado é o SPECTRA. Trata-se de um software que aumenta as chances de sobrevivência da aeronave por automatizar várias de suas tarefas de autodefesa. O SPECTRA capacita integração e comunicações em rede com outras aeronaves e recursos em terra. Todos os elementos constitutivos do SPECTRA são construídos dentro da aeroestrutura, e tem alto nível de automação e integração. O SPECTRA inclui detectores de radar de laser e de infravermelho, possibilitando a prevenção da aproximação de mísseis. Elementos ativos incluem dispensadores de chaff e flare e interferência de rádio. O SPECTRA inclui funções de ELINT [nota de causa:: acrônimo de Electronic signaLs INTelligence, “inteligência de sinais eletrônicos”. Diz respeito à busca de sinais eletrônicos emitidos por sistemas que não de comunicações, com fins de inteligência, ou seja, de análise, localização, identificação e determinação de contramedidas] para gravação, análise e localização de emissões de ondas, de forma a identificar as possivelmente hostis. Tem sido dito que o SPECTRA também é capaz de potencializar as características stealthy da aeronave, visto incluir modos de interferência capazes de reduzir a assinatura de radar. Não se sabe como esse modo funciona, e nem se é realmente operacional. O fato é que a Thales e a MBDA tem testado um processo denominado “cancelamento ativo” que atuaria comparando e analisando sinais de radar e enviando cópias de volta à fonte emissora, com a fase modificada e, deste modo, alterando o eco de retorno.

Características de redução de seção rastreável por radarO Eurofighter Typhoon apresenta diversos elementos estruturais desenvolvidos de modo a reduzir a seção rastreável por radar (SRR) frontal da aeronave. Mas é somente a SRR frontal que é reduzida, pois, as SRR laterais são comparáveis às  de outras aeronaves modernas. É esperado que SRR frontal tenha medidas situadas entre 0.5 e 1 metro quadrado. Já o Rafale tem um SRR maior, devido, principalmente, ao menor uso de materiais compostos na estrutura. O formato da aeronave também é um problema, o que Cb por resultar em maior SRR lateral. A SRR da aeronave francesa deve subir a algo em torno de 1.5  até 2 metros quadrados.

Mas alguns analistas consideram ser totalmente inverídica a informação de que ambas as aeronaves têm SRR frontal de menos de 1 metro quadrado. Outros analistas vão além: afirmam que, apesar do amplo uso de materiais absorventes no Typhoon, o formato da estrutura da aeronave, com os grandes canards e tomadas de ar certamente resultam numa SRR frontal maior do que a do Rafale. Este tem, de acordo com esses especialistas, uma silhueta melhor desenhada. Por exemplo, as tomadas de ar funcionam melhor em ocultar a face do turbofan do rastreamento por radar do que as do Typhoon. A dispersão de ondas de radar, no Typhoon, permite melhores leituras ao longo do lado externo dos canards e das asas, mas o nariz, seção interna dos canards, raízes das asas, fuselagem e empenagem vertical são os grandes traidores. Mas levando em consideração que ambas as aeronaves, na vida real, voarão com mísseis montados e, possivelmente, também com tanques de combustível externos, não existe maneira de reduzir a assinatura de radar para leituras menores que 1 metro quadrado.

Deve-se levar em conta que ambas as aeronaves têm suas SRR otimizadas, mas não são, de fato, aeronaves stealth, não importa o que digam a Eurofighter e a Dassault. As assinaturas IR, em ambas, são grandes o suficiente para serem vistas a 90 km de distância, mesmo por adversários menos capazes. Não importa a quantidade e qualidade dos materiais absorventes de radar incorporados, nunca poderão ser comparadas aos caças quinta geração.

ArmamentoEste é um importante aspecto, em uma aeronave de caça. E ambos os modelos passaram a empregar, recentemente, novos mísseis. O Typhoon utiliza o Meteor, no futuro combinado ao ASRAAM [nota de causa:: abreviatura de Advanced Short Range Air to Air Missile, “míssil ar-ar avançado de curto alcance” produzido pelo consórcio MBDA para a Grã Bretanha, sob notação AIM132, orientado a calor. Entrou em serviço em 1998]; o Rafale deverá usar também o Meteor em combinação com o MICA. Todos esses mísseis são produtos “top de linha”, mas o que torna o Typhoon um sistema de armas superior é sua compatibilidade com os AIM9 Sidewinder e AIM120 AMRAAM [nota de causa:: abreviatura de Advanced Medium Range Air to Air Missile, “míssil ar-ar avançado de médio alcance”, um míssil de guiagem ativa, tipo “além do alcance visual” (BVR) com capacidade de operações noturnas e diurnas, em qualquer condição meteorológica. Substituiu o AIM7 Sparrow, ativo em todos os países da NATO]. Embora o MICA e o Meteor sejam mais do que capazes de lidar com esses mísseis, a questão é que o leque de opções à disposição do Rafale é mais estreito.

Ambas as aeronaves também são capazes de entregar munições ar-terra. Tem sido dito que o Typhoon não é uma plataforma ar-terra muito capaz, mas esta afirmação pode ser facilmente contestada. A aeronave multinacional é perfeitamente capaz de realizar qualquer tipo de missão dessa natureza. O problema é dar o treinamento adequado aos pilotos dessa aeronave. O número de pilotos qualificados para o Typhoon ainda é muito baixo, e todos eles são “caçadores puros”, não treinados para missões ar-terra.

Em resumo…O Rafale é uma grande aeronave, mas o Typhoon parece ser um pouco melhor. São ambas aeronaves muito caras e não se pode tomar uma decisão errada com nenhuma das duas. Se a decisão fosse deixada [aos cuidados do redator do texto], escolheria o Typhoon, sem nenhuma hesitação. O Rafale foi provado em serviço na Líbia, e claramente demonstrou o fato de que é um verdadeiro caça multimissão. The Typhoon foi empregado somente em missões de patrulha aérea, mas agora, ao que parece, juntou-se à campanha em outras missões.

Outra vantagem do Rafale é o fato de seu AESA estar pronto para entrega no próximo ano, enquanto o AESA do Typhoon não estará pronto antes de 2014 (a época em  que os primeiros jatos estarão sendo entregues à Força Aérea Indiana). Mas este se torna um dos principais argumentos para a escolha do produto Eurofighter, as oportunidades que vêm com ele. Podemos ter certeza que o Ministério da Defesa da Índia não deixará passar essa chance de ouro, participar ser parte do consórcio::

O FX2, o Rafale e o método “Veja” de avaliar aviões::Dirimindo (outras) bobagens::

Nunca escondi que sou “rafalista juramentado e militante”. Dentre outras qualidades que vejo na aeronave francesa, uma – talvez a principal, em meu método de análise – é a beleza: ô aviaunzim bunitu, seo! Mas reconheço que, no caso de superioridade aérea, só beleza não põe mesa. Resolvi, então, dar uma olhada, sem compromisso, no que se poderia encontrar, na Internet, sobre a aeronave francesa, e se haveria alguma base na preferência, um tanto descarada, que a imprensa nacional manifesta pelo Boeing F/A18 – o único, dentre os projetos, que, em minha modesta opinião, já deveria ter sido descartado.

Não tinha maiores pretensões, e as informações, bem desencontradas, não encorajavam nada mais que isso. Aí topei com o blogue de um certo Antonio Ribeiro, correspondente da Der Ang… digo, de “Veja” em Paris. E, ao que parece, quer manter a boca de qualquer jeito. Numa postagem datada de 17 de janeiro último, o sofisticado escriba (que dedica boa parte do tempo de trabalho a encontrar lojas e restaurantes na Cidade-Luz) mete-se a “analisar” a possível “escolha final” do projeto FX2. Análise um tanto rasa, já que do avião, propriamente dito, não diz nada. Em compensação, as colocações no “estilo Veja” (inconfundível) eram pródigas: O Rafale foi anunciado três vezes, publicamente, como o preferido de quem tinha a palavra final na escolha, o ex-presidente Lula. A FAB baseada em extenso estudo técnico indica o caça sueco NG Gripen como melhor opção. O terceiro finalista F18 Hornet, fabricado pela Boeing, corre por fora. Pouco abaixo, ao referir-se à reação francesa ao adiamento estabelecido pela presidente brasileira, saia-se com esta: Natural em muitos chefes de estado, o novo estilo de comando no Palácio do Planalto, pode não ter abarcado simpatia completa em quem assistiu o jeito carnavalesco de governar nos últimos oito anos, mas muitos também cruzam os dedos para que dê certo.

Claro, é perfeitamente compreensível que os clientes da aristocracia paulista procurem ficar bem com seus patrões. Mas como, sobre o avião, neca de pitibiribas, eu já ia passando adiante, até que  notei os comentários: “quem sabe não tem alguma coisa inteligente lá?..”, pensei eu. O conteúdo – todo escrito pelo dono do blogue, assinando-se “Antonio” (nunca tinha visto blogueiro algum comentar a si mesmo) – era um conjunto espantoso de distorções e falsificações. Nenhuma das “informações” batia com as fontes técnicas que normalmente consulto, e que – admito… – não são nenhum avião (já que o assunto é este).

Resolvi então escrever um post mais sério do que de costume – o que significa, antes de mais nada, grande pra caramba e talvez mais chato do que o normal. Também farei uma coisa que não é usual em blogues (está mais pra Wikipédia): citarei as fontes que consultei. Assim, o que vocês irão ler é um conjunto editado de recortes feitos em material contido nessas fontes. Caso queiram ler os originais, a dica é a seguinte: cortem os nomes técnicos e colem nos motores de busca. Assim, quem quiser poderá ter muitas informações sobre coisas como o radar AESA do Rafale (que o cretino afirma não existir…), o sistema de contramedidas eletrônicas, considerado o mais avançado existente, e por aí vai.

Bom, a primeira fonte que pode ser consultada é uma página da Rafale International, que não diz grande coisa, mas é em português e muito boa para quem não sabe nada sobre o avião francês. Também em português, o site Plano Brasil é uma ótima fonte, visto a varredura que fazem na imprensa diária. Apesar da zona que são as caixas de comentários – que também trazem muita coisa interessante, se você tiver uma paciência de monge chinês. Muito melhor é uma reportagem publicada no site Flightglobal – foi a base de meu texto. Também vale à pena examinar o conteúdo da caixa lateral, More on this story, que apresenta uma boa seleção de notas publicadas na imprensa internacional. Vale também passar os olhos no site Defense Industry Daily, que geralmente tem textos bem esclarecedores, assim como a revista eletrônica Aviation Today, que mostra um artigo meio com cara de press-release editado, mas com diversos dados sobre os sistemas do avião. Outra fonte interessante é o site – meio esquisito, pela variedade de conteúdos – Above Top Secret. Este site reúne informações de diversas origens, e a maior parte das que utilizei estão uma matéria sobre o Rafale, muito completa, The Rafale – As good as it can get. Stealth.Supercruise.Omnirole. Outra matéria bastante interessante, consultada no ATS foi Non-American AESA radar developments. Esta tem partes meio pesadas mas traz, particulamente na página 2, informações esclarecedoras sobre o Thales RBE2. O artigo da Wikipedia (em inglês) não é grande coisa, mas permite alguma navegação até outras fontes.

Bem, é mais ou menos assim. Depois de dois dias navegando sobre o mesmo assunto, vou dar um tempo de Rafale (que, por sinal, parece ser o nome de uma rajada repentina de vento, comum na costa francesa do Mediterrâneo). Espero que esses dias contribuam para esclarecer o assunto e prevenir sobre os métodos “jornalísticos” empregados por Der Ang… quer dizer, pela “Veja”. Pensando bem… Alguém precisa ser prevenido sobre isso?..::

Diversas forças aéreas contam, atualmente, em seus inventários, com caças da chamada “geração quatro e meio”. Estas são definidas por atributos tais como sistemas fly-by-wire, alta performance e instabilidade em vôo, capacidade de operar em rede (trocando informações em tempo real com centros de controle e com outras aeronaves), capacidades multitarefa e multiarmamento. Com essas características, os tipos disponíveis no Ocidente incluem o Boeing F/A18EF Super Hornet, Dassault Rafale, Eurofighter Typhoon  e Saab Gripen NG. O Rafale o Super Hornet são também capazes de operar a partir de navios-aeródromos. Outras aeronaves que reúnem tais características são o Boeing F15E e o Lockheed Martin F16. Estas, embora não possam ser caracterizados exatamente como aeronaves da geração quatro e meio, passaram por modernizações que lhes deram capacidade multitarefa.

Os modelos da “geração quatro e meio” são caros e de operação complexa. Assim, é compreensível que, conforme a amadurece a tecnologia embarcada na forma de sistemas de armas – aviônicos, sensores e capacidades centradas em rede, aumente o preço e a competição entre os fornecedores dessas aeronaves no mercado internacional. Ainda assim, o custo inicial e o custo de serviço são bastante proibitivos. O custo inicial tem, necessariamente, de incluir motores de reserva, peças de reposição tanto para a célula de vôo quanto para aviônicos e sensores, sistemas de armas, treinamento de pilotos e pessoal de terra. A manutenção do aprestamento dos conjuntos piloto-equipamento também tem um custo alto, visto que a decolagem de uma aeronave desse tipo significa a mobilizar combustível, sistemas de apoio ao vôo, além do desgaste natural das células e sistemas.

O produto oferecido pela França é o Rafale. Essa aeronave é produzida por um consórcio denominado Rafale International, constituído pelas empresas Dassault Aviation, Safran-Snecma e Thales. Essas são as empresas principais (a Dassault lidera o projeto), mas uma série de outras associadas são encarregadas da produção de peças estruturais e componentes da aeronave, em várias plantas industriais, por toda a França. A montagem final acontece nos arredores da cidade de Bordeaux. Os projetos, que reúnem milhões de horas de pesquisa e desenvolvimento, são armazenados numa configuração redundante que utiliza um sistema de realidade virtual, aperfeiçoado pela própria Dassault, através da subsidiária Dassault Systémes, denominado Catia.

O projeto Rafale baseou-se no conceito AC-X, encomendado pelo governo francês à Dassault no final dos anos 1970. O primeiro resultado foi o Rafale A, plataforma de demonstração que fez seu primeiro vôo em 1986. Visava testar as características aerodinâmicas da aeronave, até então ainda em fase de estudos. O programa oficial da aeronave militar foi lançado em 1988, e resultaria num produto ligeiramente menor e com alguns detalhes reconcebidos, como por exemplo a empenagem vertical, as tomadas de ar dos motores e os canards. O resultado foi denominado Rafale C01 (“C” de chasseur, “caçador”, em francês), seguido pelo biposto B01 (“B” de biplace), modelos apresentados em 1991. Nesse mesmo ano, os protótipos M01 e M02, dotados de trens de pouco reforçados e ganchos de arresto foram postos à disposição da Marinha francesa. A filosofia do programa era, desde o início, aperfeiçoar uma aeronave que, a médio prazo, substituísse todos os tipos de aeronaves de combate em serviço nas forças armadas francesas, desempenhando todas as tarefas atribuídas à Força Aérea e à Marinha. Isso inclui a defesa e policiamento do espaço aéreo nacional, reconhecimento tático e estratégico, ataque ar-terra e ar-mar e dissuasão.

O primeiro Rafale “de fábrica” voou em 1998. A versão naval começou a ser entregue à Marinha em 2004. Ambas as forças empregavam, então, o padrão “F1”, de superioridade aérea. Em 2006, o padrão “F2”, “multitarefa”, começou a ser entregue à Força Aérea Francesa, e desde 2008, todos os Rafale são entregues, de fábrica, no padrão “F3”, “multitarefa aperfeiçoado”, ou “omnitarefa”. Este inclui capacidade de reconhecimento, através da integração de pods especializados, bem como capacidade para entregar armamento nuclear, através do míssil ASMP-A (Air-Sol Moyenne Portée, ou “Ar-Terra, Porte Médio”) do consórcio MBDA. As aeronaves em serviço deverão ser configuradas para o padrão “F3” no próximos anos e esse modelo do Rafale se tornará a única aeronave de combate multitarefa operada pela Força Aérea e Marinha francesas.

As forças francesas planejam incorporar 234 Rafales: 180 para a Força Aérea e 54 para a Marinha. Esses números já foram maiores, mas se reduziram em função de cortes de gastos e realocação de verbas dentro do próprio programa. Até 2016, as aeronaves convencionais e navais deverão substituir sete tipos de caças e caças táticos ainda em serviço e permanecer na ativa até pelo menos os meados da década de 2040. Os planejadores franceses imaginam adquirir, até 2030, por volta de 70 Rafales, cuja produção, na taxa atual, é de 12 unidades por ano.

A Dassault, em acordo com as forças francesas de defesa, estabeleceu que os sistemas do Rafale deverão passar por upgrades a cada dois anos, pelo menos. Está prevista para 2012 a entrada em serviço de toda uma nova geração de sensores que implicará uma nova bateria de softwares integrados; para 2020 está planejado um upgrade completo, correspondendo ao projeto, já previsto, de modernização de meia-vida da aeronave.

Desde o início do programa que lhe deu origem, o Rafale foi planejado como uma aeronave capaz de cumprir qualquer missão – tática e estratégica – de reconhecimento, assim como todas as missões de ataque, convencional ou nuclear. Essas missões têm sido testadas conforme os Rafale da Força Aérea e da Marinha são empregados operacionalmente no Afeganistão desde 2005, e mais recentemente, na Líbia. O envio de um punhado de Rafale ao teatro afegão possibilitou às forças francesas testar, em condições de combate, o leque de missões concebido para a aeronave, bem como os diversos vetores empregados em conjunto com ela. Embora as autoridades militares francesas não confirmem, correu nos meios especializados que até mesmo o míssil ASMP-A passou por testes simulando condições de emprego real. Mas os principais testes que o emprego operacional possibilitou foram os de operações centradas em rede. A variedade de equipamentos e capacidades reunidas nas forças aéreas à disposição da coalizão, bem como o ambiente de comando e controle gerado por tal variedade nas situações reais de apoio às operações terrestres, não chegaram a ser problema. Em prosseguimento a essas experiências, seis Rafale M foram empregados em um exercício combinado com a Marinha dos EUA, executando pousos e decolagens, sendo abastecidos e municiados no convés de vôo do NAeA USS “Theodore Roosevelt”.

De fato, o Rafale M é a única aeronave de combate baseada em navios-aeródromos atualmente em produção na Europa e apresenta, com os Rafale B/C da Força Aérea, 80 por cento de comunalidade. As principais diferenças são a presença de um gancho de arresto, a “navalização” do trem de aterrisagem, que foi redesenhado, o reforço longitudinal, visando aumentar a resistência da fuselagem ao estresse da decolagem e aterrissagem em convés de vôo e o tratamento de algumas áreas de modo a prevenir a corrosão. Tudo isso fez o Rafale M ficar 300 quilos mais pesado do que seu equivalente terrestre, e perder um dos pontos de fixação externos: 13, em comparação com os 14 dos modelos B/C.

A filosofia da aeronave adotou a configuração “delta sem cauda” – as enormes asas em forma de triângulo. Esta configuração, que começou a ser estudada pelos cientistas e engenheiros alemães, é considerada particularmente eficaz nas situações de vôo supersônico. Essa escolha está no centro de uma série de opções de engenharia adotadas para aumentar a agilidade da aeronave em detrimento de sua estabilidade, em todas as situações de vôo. Entretanto, a configuração “delta sem cauda”, juntamente com a adoção de canards, a melhoria no perfil das asas (particularmente dos bordos de ataque) e o aperfeiçoamento do desenho da fuselagem, possibilita dotar a aeronave de um “centro de gravidade aumentado”. Essa característica torna possível corrigir parcialmente a instabilidade aerodinâmica, abrindo a opção de juntar diferentes missões através da combinação do carregamento dos pontos externos de fixação. O “centro de gravidade aumentado” capacita os planejadores e técnicos carregar a aeronave inclusive de modo assimétrico, tanto lateralmente quanto longitudinalmente.

Esse desenho capacita a aeronave a transportar uma carga externa de armamento ou pods especializados de até 9500 quilos. Seu peso vazio é de 10300 quilos, aos quais se acrescenta a capacidade interna de combustível de 4700 litros. Seu peso máximo de decolagem é de 24500 quilos, ou seja, o Rafale é capaz de fazer decolar 140 por cento além de seu peso vazio.

Os dois grandes canards foram adotados como solução para implementar a estabilidade e a sustentação, também garantida por quarto slats (superfícies aerodinâmicas situadas nos bordos de ataque das asas de aeronaves convencionais, que as capacitam a operar com maior ângulo de ataque). Quarto elevons (superfícies de controle características da configuração delta) controlam tanto a elevação como a inclinação axial, auxiliados por quatro elevons retráteis e pelo leme, situado na empenagem vertical otimizam a combinação elevação/arrasto e reduzem a tendência ao deslizamento lateral (instabilidade) observado nas configurações “delta sem cauda”. As superficies de controle são movimentadas por sistemas hidráulicos de alta pressão, gerenciados por um sistema digital de controle de vôo (DFCS) concebido pela própria Dassault, a partir do sistema de controle de vôo analógico incorporado ao Mirage 2000. O DFCS do Rafale é capaz de mapear o envelope de vôo da aeronave possibilitando um desempenho aerodinâmico ainda mais alto que o do Mirage 2000, já considerado de altíssima qualidade. O sistema opera através de três canais independentes de troca de dados, complementados por um adicional, usado para back-up. A presença do DFCS é determinada pelas demandas de alto “g” que podem ser feitas à estrutura da aeronave, e alcançar +9.0g, com um ângulo de ataque (AoA) de até 29°, no modo de combate aéreo, e de até +5.5g alcançando 20° de AoA nos modos ar-terra e ar-terra/alta carga (chamados “ST1” e “ST2”). Nessas situações,  a posição do centro de gravidade pode ser alterada para adiante ou para trás. A aeronave continuamente “verifica” a carga que transporta, deixando ao piloto a decisão de selecionar o modo.

Contribuem também para esse desempenho a otimização dos materiais e dos métodos de construção da aeronave (coisas como uso de solda química e fusão de materiais) e a eficácia dos controles FBW (fly-by-wire – ao pé da letra, significa “vôo por cabo”). Trata-se de um conjunto de sistemas de controle eletromecânicos e hidráulicos acionados por dados gerados a partir do piloto, transmitidos por fios e assistidos por computadores, que compensam a instabilidade aerodinâmica da plataforma e ampliam a capacidade do piloto. São elementos “ativos” (por exemplo, os canards e superfícies de controle), e “passivos”, que só operam em caso de necessidade, sem a participação do piloto. Antes que aconteça a interferência, entretanto, uma série de sinais visuais e de audio alertam o piloto sobre a velocidade, condição de sustentação, posição do nariz e posição do solo. Esses sistemas também foram planejados para prevenir a possibilidade de “desorientação espacial”, fenômeno muito comum na pilotagem de aeronaves de alto desempenho. Incluem também a “operação descuidada” e a “perda automática do controle/proteção contra sobrecarga estrutural”, modos previstos pelo sistema DFCS, que previnem erros de pilotagem, naturais na ambiência altamente estressante de uma missão de combate.

Esse amplo leque de opções é sustentado pela potência e confiabilidade dos dois turbojatos Safran/Snecma M88-2E4. São propulsores que incorporam diversas inovações tecnológicas e uso de novos materiais (como por exemplo, cristais industriais) que lhes possibilitam alto desempenho, consumo relativamente baixo e desgaste menor dos componentes fixos e móveis. Combinados, geram uma potência total de 22500 lb (100 kN – “kiloNewtons”) de “impulso seco” e 34000 lb com acionamento de pós queimador. O desempenho do conjunto faz alcançar a velocidade de cruzeiro de Mach 1.8 (750kt – 1390 km/h), com um teto de serviço de 55000 ft (16800 m), alcançado em cerca de 1,5 minutos. O tempo de acionamento da potência total é de pouco mais de 4 segundos, em qualquer altitude. A aeronave tem seu consumo otimizado, e, no padrão F3 tem uma tomada fixa de reabastecimento em vôo, operação assistida pelos canards e elevons, que operam conjuntamente para atuar como freios aerodinâmicos, de modo a compensar a variação de peso durante o processo.

A velocidade de aproximação típica, com a aeronave descarregada da carga paga e sem combustível extra, ou seja, deslocando algo em torno de 15000 k com em 16° de AoA costuma a ser de 125 kt (230 km/h). Os freios são a disco de carbono, assistidos por sistema ABS, possibilitam a parada em distância mínima de 450 metros, sem a necessidade de acionamento de pára quedas de frenagem.

A Dassault costuma a apresentar o Rafale como “omnitarefa”, ao invés de “multitarefa”, ou seja, uma aeronave capaz de cumprir “todas as tarefas”, já que “multi” implica em “muitas”, mas não “todas”. O nome é uma estratégia de marketing; já o conceito deriva de uma filosofia baseada na possibilidade de ampla variedade de combinações armamentos ar-terra, ar-mar e ar-ar, pods de sensores e tanques de combustível.

Outra característica do Rafale é a possibilidade de que a aeronave seja reprogramada muito rapidamente, de um perfil de missão para outro. O armamento, pods e células de sistemas internos são desenhados de modo a serem trocados com poucas operações, através da retirada de módulos e encaixe de outros. Esta é uma característica de todas as aeronaves modernas, mas os engenheiros da Dassault encontraram um modo de estender tal flexibilidade: em certas condições a missão pode ser reprogramada mesmo que a aeronave já esteja a caminho.

Esse conceito é chamado, pela Dassault, “lute e não se preocupe com mais nada” (trata-se de uma tradução livre de fight & forget). O piloto pode se concentrar na condução tática e entrega do armamento, enquanto os sistemas da aeronave cuidam da estabilidade da aeronave, da interpretação da ambiência externa e da presença de ameaças reais ou potenciais. É outra característica do perfil “omnitarefa”: a ampla variedade de sensores inteligentes e discretos, desenvolvidos com vistas exclusivamente a essa aeronave, pelas companhias envolvidas no projeto. O conjunto de sensores gera uma vasta quantidade de informações que são “fundidas digitalmente” por um poderoso computador central, dotado de 128 processadores, desenvolvido pela empresa Dassault Eletronique. Essa empresa utilizou um código-fonte considerado muito avançado, denominado “ADA”, capaz de gerar códigos de aplicação conforme a demanda. O resultado, segundo a maioria das análises, é uma notável diminuição da carga de trabalho do piloto, que tem reduzidos inclusive os movimentos físicos da cabeça, tronco e membros, pois os dados interpretados e combinados pelo computador são apresentados numa variedade de displays TFT situados no painel frontal (três, mais exatamente), sensíveis ao toque e no nível da visão, no visor do capacete ou em uma tela holográfica situada ao nível da visão (esses sistemas são chamados HMD – head mounted display – e HUD – head-up display). Por outro lado, essa característica tem gerado certa controvérsia. Segundo algumas fontes, a alta complexidade da cabine do Rafale acaba por ter um efeito contrário ao buscado: de fato, aumenta tanto a carga de trabalho do piloto quanto a possibilidade de estresse.

O que foi descrito acima está integrado ao padrão “F3” do Rafale. Deficiências dos padrões anteriores, como um sistema pouco confiável de visão IR (infravermelho, que possibilita certos padrões de visão noturna e controle de armas), integração problemática entre os diversos painéis, principalmente os do tipo HMD e ausência de um radar AESA operacional foram solucionados. O padrão F2 do Rafale estava equipado  com um radar do padrão PESA (Passive Electronic Scanned Array, “equipamento de varredura eletrônica passiva”), por sinal, o primeiro a ser desenvolvido na Europa. A partir de 2012, os F3 passarão a sair da fábrica equipados com o radar Thales RBE2AA, do padrão AESA (Active Electronically Scanned Array, ou “equipamento de varredura eletrônica ativa”). O padrão AESA consiste de um radar cuja antena é composta por até mil pequenos módulos transmissores-receptores de estado sólido, capazes de emitir tantas ondas de rádio quanto considerado necessário, além de variar o ângulo de emissão-recepção. O sinal emitido “vaza” para fora da banda de frequência, o que torna a fonte emissora muito mais difícil de distinguir contra o ruído de fundo característico do ambiente (outras transmissões, eletricidade atmosférica, etc.). Integrado ao computador central da aeronave, torna-se um verdadeiro centro de controle de alvos, a começar pela capacidade de acompanhamento de terreno, que permite o vôo em altitudes ultrabaixas.

De fato, o radar tem sido uma das maiores fontes de controvérsia, em relação ao Rafale, e muita bobagem tem sido dita sobre o assunto. Até aqui, o radar que equipa essa aeronave é o Thales RBE2 (Radar à Balayage Életronique 2 plans), um radar do padrão PESA projetado e aperfeiçoado a partir de 1989, que integra o padrão LPI (low probability of intercept, ou “baixa probabilidade de interceptação”). O RBE2 é um radar multimodo de controle de fogo monopulso-doppler banda X, construído em torno do “conceito modular”, ou seja, ao invés da antena móvel mecânica, utiliza centenas de módulos eletrônicos de estado sólido. É capaz de rastrear o espaço adiante da aeronave numa distância de até 100 kms, mas também pode atuar no modo look down-shot down (“enxergar” objetos e orientar armamento em ângulos muito abertos com relação ao nariz da aeronave). O RBE2 também teria a vantagem de ser mais adaptável às operações centradas em rede, pois poderia receber, através da antena PESA, informações de radar originadas fora da aeronave. Ainda se trata de um sistema extremamente eficaz, considerado superior ao equivalente utilizado pelo Eurofighter Typhoon, denominado Captor.

Ainda em 2002, as autoridades da DGA (Delégation Generale pour l’Armament – repartição do Ministério da Defesa encarregada de conceber e configurar as necessidades de equipamento das forças armadas francesas) determinaram o desenvolvimento de uma versão AESA do equipamento, visando o Rafale. A Thales, vencedora do contrato, apresentou, na ocasião, um modelo, denominado DRAA (Démonstrateur Radar à Antenne Active). Em 2003, o protótipo foi montado num Rafale B3, e fez testes de vôo bem sucedidos. Em meados de 2004 surgiu um novo protótipo, denominado DRAAMA (Démonstrateur Radar à Antenne Active Modes Avancés), ou seja, o radar AESA do Rafale. Tratava-se de um equipamento inteiramente novo, que incorporava todos os avanços obtidos a partir do programa DRAA. O consórcio Rafale garante que o RBE2 PESA poderá ser escalado para um sistema AESA completo, e que, nas aeronaves francesas, o processo começará no início de 2012, embora não garanta que todos os pretendentes a adquirir o Rafale serão autorizados a adquirir também o RBE2AA. Não existem ainda avaliações técnicas isentas em torno do RBE2AA, mas é provável que o sistema tenha passado por testes extensivos no teatro afegão e, mais recentemente, na Líbia. O que se pode dizer de concreto é que a geringonça é de tal forma cara que já em 2007 a França teve de diminuir o lote de Rafales previsto para ser entregue até 2010, de 59 para 51 unidades, de modo a conseguir dinheiro para dotá-los do novo equipamento.

Outra característica do Rafale é o sistema de contramedidas eletrônicas Spectra (Système de Protection et d’Evitement des Conduites de Tir du Rafale). Integrado pela Thales e pela Dassault, o Spectra é um conjunto de sensores e softwares que permite à aeronave detectar uma série de classes de emissão de ondas, tais como radar, interferência eletrônica, aproximação controlada por faixa infravermelha, detecção provida por faixa laser, além de providenciar medidas defensivas, como interferência eletrônica e dispersão de chaff/flare, a partir dos quatro dispensadores distribuídos pela fuselagem. Segundo informações da Thales, o Spectra também é capaz de diminuir a assinatura de radar da aeronave, implementando suas características furtivas (stealthy). O gerenciamento do sistema é totalmente feito pelo computador central da aeronave, que “funde” os dados e os coloca à disposição do piloto nos painéis, inclusive nos HMD e HUD. O sistema foi testado no Afeganistão, e se demonstrou confiável em nível muito alto (segundo, é lógico, o que foi noticiado pela Thales…), e também de alto grau de operacionalidade, no que diz respeito à manutenção em terra, já que os sensores e programas podem ser mudados muito rapidamente, conforme o perfil de missão. As informações divulgadas pelo consórcio não deixam muito claro em quanto o Spectra aumenta o preço final do Rafale, e se haveria outro sistema de menor escala – e, portanto, mais barato –, que possa ser fornecido no lugar do top de linha. O que se sabe é que nos padrões F1 e F2 o sistema de contramedidas, denominado DBEM (Détection et Brouillage Electromagnétique), reduzia-se ao receptor de alerta de iluminação por radar (RWR – Radar Warning Receiver) e sistema de contramedidas de interferência eletrônica (ECCM – Eletronic Counter-Counter Measures). Mesmo com menos funções incorporadas, a maioria dos analistas o considera muito eficaz: automaticamente detecta, classifica e identifica o emissor e envia a informação ao computador. No ambiente DBEM, o piloto tem de tomar certas decisões que, com o SPECTRA, são tomadas pelo sistema, sem interferência humana.

O Rafale também é dotado de um sistema frontal de optrônicos (FSO – Front Sector Optronics), situado no nariz da aeronave. “Optrônicos” são sistemas que combinam a imagem ótica com a eletrônica, fornecendo uma visão o mais próxima possível da imagem da coisa real. São geralmente baseados em sinais criados por cameras de TV, e no FSO do Rafale, estão centrados num sensor de alta magnificação de TV, destinado à identificação de alvos singulares, num sensor infravermelho de busca e localização e num sistema de telemetria à laser. O conjunto HDTV/IR fica alojado numa estrutura “tipo bola” (semelhante ao que vemos no “queixo” dos helicópteros de TV). Esse sistema se combina com outro, concebido pela Thales Optronique, batizado Damocles. É um pod usado para designação de alvos via facho de laser, e pode ser eventualmente ligado ao FSO, de modo a prover imagens frontais em infravermelho que são transmitidas ao HUD. O cockpit do Rafale é totalmente compatível com diversos tipos de óculos de visão noturna, bem como com vários padrões de HMD, que, segundo a Rafale International, são deixados à escolha do comprador – a empresa faz a integração, sem problemas, visto que a aeronave é compatível com todos os padrões utilizados pela NATO.

Outro sistema optrônico disponível para o Rafale é o pod Reco NG/Areos. Trata-se de um sistema de reconhecimento que grava imagens digitais fixas (fotografias) e em movimento, em padrão infravermelho ou HDTV, sendo portanto eficaz tanto durante o dia quanto à noite, em diversas gradações de distância. O sistema pode ser programado para “adquirir” automaticamente o tema, sem interferência do piloto, que pode acompanhar a aquisição através de imagens redundantes transmitidas para o cockpit, ao mesmo tempo que são enviadas em tempo real para uma ou mais estações em terra. O Rafale é programado para enlaçar os dados adquiridos (datalink) através do sistema Link 16, padrão da OTAN, o que também incluí os Modo M CAS (Close Air Support – “Apoio aéreo aproximado”) e CAS Rover (para imagens em vídeo – aquele que se tornou famoso no vídeo da Wikileaks, mostrando um helicóptero “Apache” passando o rodo em perigosos civis, no Iraque). As imagens podem ser transmitidas para um ou mais centros de controle em terra, bastando que o piloto as selecione.

A maior parte da traquitana montada no Rafale tem, como função, controlar os sistemas de armas que devem ser entregues ao inimigo. Os dois principais, que estão integrados à aeronave desde o padrão F1, são o canhão interno de 30 mm e o míssil de guiagem ativa MICA, fabricado pela empresa MBDA.

O canhão, destinado a confrontar adversários a curta distância, é o GIAT 30 M791. Equipamento de operação elétrica, suas principais características são a câmara rotativa acionada por motor elétrico, a ativação elétrica da espoleta da munição e o cano único. A câmara rotativa torna regulável a cadência de tiro, que pode ir de 300 até 2500 disparos por minuto, em rajadas contínuas ou de 0,5 e 1 segundos. A capacidade interna do tambor é 125 cargas de munição 30X125 mm, de várias especificações, com alcance útil de aproximadamente 2000 metros.

O principal armamento montado pelo Rafale é o míssil ar-ar MBDA “MICA” (Missile d’Interception, de Combat et d’Autodéfense). Trata-se vetor de alcance variável, guiagem mista, que começou a ser projetado no final dos anos 1980, destinado a substituir tanto os mísseis Magic, de curto alcance, quanto os Super 530D, de médio alccance – ambos produtos da empresa Matra. Os engenheiros da empresa acreditavam que os desenvolvimentos obtidos na tecnologia de orientação e nos sistemas de propulsão permitiriam a adoção de uma única arma, o que significaria uma economia de custos e planejamento. O novo míssil chamou-se “MICA”, seguindo o gosto francês por acrônimos criativos. O MICA entrou em operação na Armée de l´Air em 1996, e já se encontra na segunda geração, sendo considerado, juntamente com o russo Vympel R77, o melhor vetor de combate aéreo disponível. A principal característica do vetor é o alcance variável, que vai de mil metros até mais de 80 km. Em duas versões, o MICA tanto pode utilizar a orientação por imagens infravermelhas (IIR) como sensores radar-ativos (ARH – Active Radar Homing), variando o método de guiagem conforme a necessidade. Medindo 3100 cm e pesando 110 kg, transporta um ogiva de 12 kg de alto explosivo a uma velocidade final de Mach 4 (aproximadamente 4200 km/h), velocidade alcançada em menos de 15 segundos. O motor-foguete, impulsionado a propergol sólido, garante não apenas a alta velocidade como notável manobrabilidade, visto adotar o empuxo vetorado do jato, com pequenos defletores no tubo de saída, complementando as superfícies de controle aerodinâmicas. Estas são compostas de quatro pequenas aletas estabilizadoras passivas, logo atrás da seção do radomo, quatro outras, bem maiores e também passivas, ao longo da seção central, e quatro aletas ativas (móveis), na seção traseira. Aliadas ao sistema de orientação, essas aletas permitem que o MICA manobre em ângulos muito fechados, de alto G, e busque adversários situados fora da visão do piloto. A agilidade do sistema decorre da orientação combinada: após o radar da aeronave detectar um alvo, o MICA voa inicialmente sob controle de um sistema interno de navegação inercial. Em seguida os sensores do míssil assumem o controle para completar a trajetória. O sensor de busca IIR por operar em dois comprimentos de onda infravermelha, constrói uma imagem do alvo que servirá para que auxiliar a identificação, implementado-lhe o alcance, quer dizer: o míssil “cheira” o calor de uma aeronave adversária em distâncias variáveis, o que permite seu uso contra objetivos “além do alcance visual” (BVR, Beyond Visual Range) sem ter de acionar o sistema de guiagem ativa, o que, teoricamente, possibilitaria ao adversário perceber a aproximação do vetor. O MICA também é capaz, em certas condições, de distinguir o alvo dos artifícios lançados para enganá-lo (chaffs/flares) ou mesmo diante de interferência de sinais. Portanto, o piloto de uma aeronave armada com o MICA tem à sua disposição uma ampla variedade de opções de ataque. Pode, inclusive, escolher o número de mísseis a serem empenhados contra alvos BVR; a curta distância pode utilizá-lo mesmo depois do vetor ter sido “trancado” num alvo designado pelo radar da aeronave.

Para fins de interdição, o arsenal posto à disposição do Rafale inclui vetores de longo alcance, como o míssil de cruzeiro ASMP-A e o ítalo-franco-britânico Storm Shadow/Scalp EG, produto do consórcio MBDA. Trata-se de um sistema de armas modular centralizado em um míssil de cruzeiro antinavio, de médio alcance (250 km, em condições ideais), que pode ser lançado de plataformas navais e da maioria das aeronaves em serviço na OTAN (Tornado, GR4, Tornado IDS, Mirage 2000, Gripen, Typhoon e Rafale). O Rafale também pode lançar o míssil antinavio de curto/médio alcance Exocet. Todas essas armas já foram testadas, inclusive em serviço, tanto no Afeganistão quanto na Líbia.

Para  finalidades de ataque terrestre, o Rafale dispõe de amplo inventário de bombas guiadas a laser, dos tipos GBU12, GBU22 e a mais recente GBU24. As bombas GBU são cópias do modelo norte-americano, mais conhecido como Paveway II (nome que se refere ao kit de guiagem a laser), sendo que a GBU12 tem 227 kg (500 lb). A GBU22 é conhecida como Paveway III, tem o mesmo deslocamento, mas tem o sistema de guiagem muito aperfeiçoado; a GBU24 é igual à outra, mas desloca 907 kg (2000 lb). São artefatos extremamente precisos, capazes de penetrar alvos protegidos, e intensamente testados em combate, nos últimos anos. O Rafale também está sendo preparado para utilizar as bombas guiadas Sagem AASM (Armament Air-Sol Modulaire) de 125 kg, orientadas por GPS ou facho infravermelho. Essa arma incorpora um pequeno foguete, que lhe aumenta o desempenho aerodinâmico e o alcance, e pode ser pré programada para o engajamento de alvos determinados previamente. Foi extensamente testada no Afeganistão, e tanto os pilotos franceses quanto seus colegas da coalizão passaram a chamá-la de “bomba mágica”. Entretanto, mágicas aparte, a AASM, de início, mostrou algumas incompatibilidades com o Rafale. As variantes guiadas eram especialmente imprecisas, mesmo considerando que, na época (2008), o pod designador Damocles ainda não tinha sido plenamente integrado à aeronave. A situação chegou ao ponto dos franceses terem passado algum tempo utilizando Paveways norte-americanas (o que, suponho, não deve ter sido nada bom para o orgulho gaulês…).

Bem, acho que por ora, já é suficiente, e imagino que os interessados já terão elementos para falar mal ou falar bem do Rafale, mas com algum conhecimento de causa. E também fica a advertência, que não vale para os assíduos de causa:: – falar de avião não é uma questão de querer, mas de ser capaz. De outro modo, é ingenuidade ou desonestidade. Só eu mesmo me dou ao direito de começar a avaliar uma aeronave pelo quesito beleza – mas vejam bem: só faço isso autorizado pelo engenheiro Marcel Dassault (é, ele mesmo). Dizia o pai da moderna indústria aeroespacial francesa que “se é bonito, então voa bem”.

Em futuro muito próximo, pretendo publicar aqui a tradução de uma avaliação feita por um jornalista especializado, sobre o caça, e uma comparação entre Rafale e Super Hornet. Não vou pesquisar nenhuma comparação entre Rafale e Gripen por serem, na opinião de muitos especialistas, aeronaves de categorias diferentes, a começar pelo fato de uma ser biturbina e a outra, monoturbina, o que modifica, positiva e negativamente, o  desempenho de ambas. Fiquem atentos e divirtam-se bastante, até a próxima!::

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Pensamentos de fim de semana::Ainda precisamos de forças armadas?::

Eis que abro o vibrante matutino carioca – O Globo, claro… – no último sábado (2 de julho) e dou de cara com um artigo de meia página e cinco colunas sobre o caça francês Rafale. O que me faz lembrar que o FX2 ainda existe, apesar de ninguém estar mais falando nele.

Se ninguém mais está, então por que a lembrança, logo no vibrante paladino da imprensa escrita? É que nós, meros mortais que não entendemos dessas coisas, podemos estar recebendo as informações que (na opinião de governo, jornalões e outros formadores de – nossa – opinião) precisamos, mas a campanha de marketing das empresas produtoras de armamento – atoladas até o pescoço na falta de demanda – continua ativa. Assim, parece que mais um bando de jornalistas viajou até a cidade de Bordeaux para uma visita à principal planta da empresa Dassault Aviation, candidata a vender 36 aeronaves dentre as que equiparão a FAB pelos próximos 40 anos. A matéria, assinada pelo jornalista Chico Otávio, não acrescenta nada que alguém, mesmo que apenas medianamente informado sobre assuntos militares, já não saiba. O redator, repórter de larga experiência em assuntos de política nacional, até que tentou fazer o dever de casa, para compensar o jabá de alguns dias na França, com tudo pago. Sem grande sucesso: Chico demonstra não entender do assunto, as informações sobre o projeto FX2 não esclarecem nada e, sobre a indústria aeronáutica francesa, dá a informação – estapafúrdia – de que a Dassault poderá “acabar” por causa do altíssimo aporte de tecnologia concentrado pelo Rafale.

Mas a cereja desse divertido bolo torna o quitute todo preocupante. Quase no fecho da “matéria” (que mais parece um press release), Chico, depois de manifestar sua admiração pela tecnologia francesa, afirma que o maior problema do Rafale é o preço – quase 80 milhões de dólares por unidade. E, diz ele: “O negócio todo, incluindo o armamento e o suporte técnico, chega a 8 bilhões de dólares, um desembolso considerável para um país cuja única guerra em andamento é contra a pobreza.”

Touché – diria eu, se fosse francês. É muito provável que seja esse o som da voz do dono. Ao longo dos últimos anos, quem quer que acompanhe o assunto tem pelo menos uma história de jornalistas que “acham melhor empregar esse dinheiro em cultura”, em “melhorar a saúde” em “educação de base”. Ainda que sem a hombridade de uma declaração aberta e franca, parece ser mais ou menos esta a opinião da autoridades governamentais de plantão – e já passa o quarto governo  desde que se começou a falar em FX. No caso em particular, governo e imprensa parecem estar de acordo.

Entende-se que jornalistas e outras categorias de leigos achem que “soberania nacional” e “defesa nacional” são conceitos vazios, numa época de “globalização”, e que seja possível uma participação ativa nos fóruns internacionais sem forças armadas ou indústria de defesa. De fato, o fim da Guerra Fria obrigou quase todas as nações da planeta a repensar suas políticas de defesa, organizações militares e indústria militar. Essas revisões em geral têm implicado em fortes cortes de orçamento e mesmo cortes físicos.

Na Grã–Bretanha, por exemplo, tornou-se realidade a “Revisão da Estratégia de Defesa e Segurança”, que significou, na prática, uma redução de 8% no total dos gastos militares, embora o governo conservador tenha afirmado que o limite do corte são os compromissos com a OTAN (o Tratado do Atlântico estipula que o orçamento militar alcance pelo menos 2% do PIB de cada país-membro). Como resultado dos cortes orçamentários, foram cancelados programas considerados ineficientes, dissolvidas unidades e fechadas bases e quartéis das três forças. Na RAF, o caça tático V/STOL (decolagem/aterrissagem curta ou vertical) Harrier, será desativado e retirado de serviço ainda em 2011. Os jatos de ataque Tornado GR.4 serão mantidos, embora em apenas dois esquadrões (eram seis). A RAF deverá fechar algumas bases e instalações consideradas “não-indispensáveis”. Por enquanto, os cortes atingem apenas os programas de transição para o conceito denominado Future Force 2020, que deverá, nos próximos dez anos, padronizar o equipamento. É intenção das autoridades que , por volta de 2022, os principais meios da RAF padronizados e reduzidos drasticamente, em função da eficiência: por volta de 130 unidades do caça multifuncional EF2000 Typhoon, e outras 150 do F-35, do Programa JSF (Joint Strike Fighter). O Airbus A400M (caríssimo e cheio de problemas) substituirá todos os transportes C-130 e C-17; o programa FSTA (Future Strategic Tanker Aircraft) programou a aquisição de 14 Airbus A330MRTT, que substituirão os aviões-tanques atualmente em serviço. Aeronaves de Inteligência Eletrônica, ligação e treinamento praticamente irão desaparecer, reduzidas em dois para cada três. A Marinha Real manteve os NAe classe Queen Elizabeth apenas porque o programa está muito adiantado para ser cancelado. Os dois navios serão terminados, mas um deles será imediatamente posto em reserva. Outros navios de primeira linha tiveram seus projetos cancelados, e fala-se numa redução total de até um terço da esquadra, que deverá ser reduzida a 120 unidades, sendo que cinquenta de primeira linha.

A situação é mais ou menos a mesma em toda a Europa. O problema é que as principais potências militares têm também parrudas indústrias de defesa, cujos principais clientes são sempre as forças armadas nacionais. Já os países pequenos, da periferia da OTAN, como Bélgica, Portugal e Islândia reduziram drasticamente suas forças armadas – que já não eram grande coisa. No caso da Grécia, compras de armas superdimensionadas, ao longo dos últimos dez anos foram, segundo especialistas, parcialmente responsáveis pelo tamanho da encrenca atualmente vivida por aquele país. Aquisições de sistemas de armas “estado da arte”, particularmente da Alemanha, dos EUA e da Rússia foram consideradas fora de propósito, levando-se em conta a diminuição da importância estratégica do país depois do fim da URSS e da retirada das forças soviéticas dos países vizinhos. Ainda assim, desde os anos 1990 a Grécia tornou-se o único país da esfera da NATO a expandir suas forças armadas: foi criado um sistema de defesa aérea considerado por especialistas como uma extravagância, equipado com sistemas norte-americanos (MIM104 Patriot 3 Advanced Capability), russos (S300, TOR M1e SA8) e franceses (Crotale NG/GR). A Marinha adquiriu submarinos alemães tipo IKL 214 e pretendia incorporar pelo menos duas fragatas classe FREMM (a mesma classe pretendida pela MB); o Exército pretendia, nos próximos dez anos, receber pelo menos 170 Leopard 2A6EX totalmente novos, numa versão fabricada localmente. E por aí vai. Mas agora, com a explosão da crise, é muito pouco provável que essas aquisições de armamento prossigam. Os fornecedores terão de mete-los em algum lugar, caso contrário a falta de encomendas significará, fatalmente, desemprego em seus países.

É claro que sempre existe a possibilidade de tentar empurrar equipamentos de última geração a preços módicos para países endinheirados do mundo “em desenvolvimento”. Mas existe uma inflação desses sistemas de armas modernos e falta de clientes interessados, principalmente após a crise de 2008. A Rússia é vendedora de sistemas de ótima qualidade em condições muito competitivas; a China parece querer desenvolver a própria indústria de defesa – o que significa que será um negociador duro; a Ìndia tem se mostrado o mercado mais promissor – fala-se em compras da ordem de 40 bilhões de dólares nos próximos dez anos. O Brasil…

As forças armadas nacionais têm sido tratadas, desde o fim do regime militar, a pão e banana. Mesmo durante os anos de chumbo, parecia não haver clareza sobre o papel a ser cumprido pelos militares profissionais. O fato de que a América Latina situa-se numa região estrategicamente secundária , depois da Segunda Guerra Mundial, não ajudou a aprofundar essa discussão. Durante a Guerra Fria, o papel reservado às nações dessa parte do globo, sem exceção subdesenvolvidas e cheias de problemas sociais e políticos foi quase o de polícias de si mesmas. Os inimigos projetados eram internos, sendo que a defesa hemisférica era dada como papel dos EUA, sendo reservado às forças militares locais um papel muito limitado.

Os arroubos de “potência” dos governantes militares, entretanto, provocaram certa expansão das forças armadas e a tentativa de estabelecer uma indústria nacional de defesa. Esses projetos sempre estiveram articulados à fonte doutrinária do pensamento militar, ao longo dos anos 1950-1970: as teorias geopolíticas – que também tiveram forte influência sobre o pensamento civil. As aquisições de armamentos realizadas entre o fim dos anos 1960 e o final da década seguinte – período que também coincidiu com um forte investimento na indústria de defesa, bem como o início da reestruturação das forças armadas – foram certamente influenciadas por uma vertente do pensamento militar cuja doutrina levava em consideração a defesa da integridade do território nacional, aí incluídos a Amazônia e a plataforma continental submarina. Entretanto, essa doutrina entrava em choque com a política de “segurança e desenvolvimento”, o braço mais musculoso da doutrina de “segurança nacional”. A luta contra o inimigo interno era constituída basicamente por operações de levantamento e análise de informações que concebiam e apoiavam operações policiais “cobertas” – se é que podemos usar esse eufemismo. O “desenvolvimento” era o outro aspecto da “segurança”: a médio e longo prazos, tiraria a população da miséria através da expansão da esfera econômica. Manter forças armadas capazes de atuar como polícia, com o suporte do enorme aparato policial formal, por outro lado, não exigia equipamento pesado nem de tecnologia particularmente avançada. Foram poucas as ocasiões em que as forças armadas foram mobilizadas como força militar – a maior delas contra a “Guerrilha do Araguaia”. Mesmo nessas ocasiões a mobilização de forças de primeira linha – paraquedistas e fuzileiros navais com treinamento de Forças Especiais e apoio de elementos aeromóveis da FAB – foi largamente secundada por forças policiais e de polícia política.

O fim do regime militar, coincidente com o fim da Guerra Fria, trouxe uma crise de identidade, expressa no debate, percebido ora com menos, ora com mais intensidade, nos meios civis: determinar qual o papel destinado às forças armadas na ordem política pós-militar. Segundo alguns especialistas (artigos bastante interessantes sobre o assunto aqui e aqui), existiria necessidade de reciclar as FAs de modo a capacitá-las a cumprir novos papéis. Segundo especialistas, os militares discutiam, internamente, as novas configurações da ordem mundial, pois embora não existisse perspectiva de agressão externa, não seria razoável confiar totalmente nos acordos internacionais e, principalmente, nos EUA. Por outro lado, o aspecto do debate sobre essa reciclagem que mais aparecia ao público leigo era mesmo a utilização do Exército como uma espécie de vanguarda da manutenção da ordem interna, assunto que também freqüenta, desde a Constituinte de 1988, a pauta das preocupações dos formuladores da estratégia de defesa brasileira.

Trata-se, por diversos motivos, de um debate equivocado com conseqüências potenciais sérias. O envolvimento de pequenos contingentes do CFN em recentes operações de reconstituição da autoridade do Estado sobre vilas populares ocupadas por marginais armados foi um exemplo de como essas intervenções devem ser – e, de forma alguma podem servir de argumento para que as FAs sejam afastadas de suas funções constitucionais.

Funções que são, basicamente, de defesa da soberania e dos interesses nacionais contra possíveis inimigos externos e em situações onde a autoridade do Estado sobre o território nacional sofra ameaça oriunda de fatores internos. O caso das favelas cariocas não chegava a ser exatamente esse, mas é o mais próximo que podemos citar que se encaixa em tal situação.

As ameaças externas, alegam largos setores da sociedade civil, não existem, e, se porventura acontecerem, podem ser enfrentadas na arena diplomática. Esses setores parecem esquecer que a “arena diplomática” é uma arena cujos limites são suportados pela presença de forças militares. Alguém poderia alegar: não existem exemplos recentes de uma situação que possa ser descrita assim. Pois se trata, então de falta de conhecimento de história.

Um exemplo acabado de uma situação assim é a Segunda Guerra Mundial. O ataque nazista contra nosso litoral pegou o país totalmente despreparado. A situação econômica era, desde os anos 1920, muito ruim, o país fora seriamente afetado pela crise de 1929 e, no início dos anos 1940, apenas começara a se recuperar – e também era outro país, de economia rural e parque industrial incipiente. As forças armadas de então, correspondiam a esse país: eram pequenas (em torno de 40.000 homens no Exército e 10.000 na Marinha) mal-equipadas e mal-aprestadas (as doutrinas ainda eram remanescentes da reformulação orientada, a partir de 1922, pela Missão Militar Francesa). Costumo a argumentar que a epopéia da FEB, nos oito meses da campanha italiana foi a parte mais visível, mas menos complexa, da participação brasileira. A preparação da FEB, vista como parte da preparação das FAs brasileiras para atuar de forma ativa na defesa nacional, esta sim, foi a parte difícil. Começou em 1941, antes mesmo da declaração de guerra, com a total reorganização da defesa do litoral brasileiro, sob comando norte-americano (por sinal, as FAs brasileiras foram colocadas, por determinação de Vargas, sob o comando de um oficial-general – vice-almirante – da Marinha dos EUA).

Havia um facilitador, naquela época- o interesse dos EUA pela adesão brasileira. Ao contrário da Argentina, o Brasil não poderia ter ficado neutro. As razões eram mais ou menos semelhantes aquelas que levaram os EUA a, até 1945, manter relações com os dois governos franceses: o governo-fantoche de Vichy e sua simpatia declarada pelos nazistas, e o de fancaria (pelo menos até 1944…) do general De Gaulle e seus arroubos de “líder da França Livre”. A razão estava nas colônias francesas do litoral atlântico africano, onde, de modo algum, os aliados gostariam de ver bases navais alemãs. De modo similar, a posição do saliente nordestino, a “cintura do Atlântico”, o “Trampolim”, tornava o Brasil um aliado crucial. Desde 1941, os norte-americanos se dispuseram a modernizar e equipar as FAs nacionais – particularmente a Marinha e a FAB, então recém criada. Embora seja sensato assinalar que a maior parte das forças que defendiam as rotas marítimas sul-atlânticas desde junho de 1941 eram forças navais e aéreas norte-americanas, estacionadas principalmente em Belém, Natal, Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Ainda assim, o Brasil saiu da guerra com forças armadas equipadas com material similar ao norte-americano, treinadas segundo as doutrinas desenvolvidas nos EUA e, principalmente, com larga experiência de combate.  

Não era pouca coisa. Os militares brasileiros saíram da guerra totalmente simpáticos às doutrinas e ao equipamento norte-americano. O problema foi que, pelo final dos anos 1950, o pensamento norte-americano sobre a defesa hemisférica tinha mudado, e com o aprofundamento da Guerra Fria, os EUA passaram a considerar as FAs latino-americanas como parte de um esquema de “defesa coletiva”, cujas tarefas estavam restritas à defesa local. Para o Brasil restara o papel de polícia do Atlântico Sul. Essas tarefas, na visão norte-americana, não demandavam equipamentos modernos nem excessivamente pesados. A renovação da Marinha, por exemplo, praticamente estagnou. A aquisição de um navio-aeródromo ligeiro (NAeL), requisito básico para a criação de um grupo de caça e destruição, teve de ser feita na Europa. Tratava-se de uma reivindicação da Marinha, atendida por Juscelino Kubistchek em 1957.

Outro momento que fez com que as FAs brasileiras refletissem sobre as próprias condições foi a Guerra das Malvinas, em 1982. A posição dos EUA diante da reação britânica à agressão argentina acentuou as desconfianças que os militares brasileiros tinham com relação aos EUA, e significou praticamente o fim dos tratados de assistência recíproca, que já tinham sido postos no congelador desde a segunda metade dos anos 1970, em função da política de implementação dos direitos humanos do governo Carter. Em 1982, o apoio à Grã-Bretanha por parte do governo de Ronald Reagan foi quase como uma pá de cal nos tratados implementados após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Mas também já tivemos um episódio em que a soberania nacional, ameaçada, teve de ser garantida pela Marinha, então já vivendo a obsolescência de seus meios. O motivo foi dos mais inusitados, mas o evento não deixa de merecer atenção. Falaremos dele no próximo posto::

Diário de viagem das férias de causa::Sobre democracia, crises e bombeiros::

Pois é… Ninguém ainda reclamou que causa:: está de férias já vão mais de dois meses. O que não significa que, neste período, eu não tenha visitado o blogue com frequência: alguns de meus próprios recursos de pesquisa estão plantados nele. Um de meus objetivos sempre foi esse: compor, para meu próprio benefício, uma pequena enciclopédia, facilmente acessível, de assuntos aleatórios em torno de temas militares, estratégia, e seus desdobramentos. E, nessas visitas, não tive como não ficar que feliz e algo pimpão ao verificar que o número de visitas diárias manteve-se constante. Com satisfação, noto que o benefício migrou para outras pessoas, que continuam a ver interesse no conjunto de postagens e, possivelmente, nas indicações de recursos de pesquisa. Tive, recentemente, duas demonstrações desse palpite – um tanto egocêntrico, reconheço: artigos do blogue foram citados por um catálogo de museu e durante um simpósio acadêmico.

Assim, sinto-me animado a continuar, apesar de uma curiosa falta de assunto que me assola – e o interessante é que assuntos não faltam. As revoltas populares no Oriente Médio, os dilemas da OTAN, que parece cada vez mais sem função; a special op meio bufa, que resultou na morte de Osama bin Laden; o estado de guerra entre Líbia e as potências (atualmente nem tão potências assim…) européias; a postura cada vez mais “assertiva” da China, cujas forças armadas crescem de maneira notável – e dentre esse crescimento, o mais notável é o da Marinha (os gastos chineses em defesa mais do que dobraram), coisa que pode indicar pretensões de projeção estratégica de poder. Também poderíamos dizer que a crise econômica européia, com a recente bancarrota da Irlanda, Grécia e Portugal, que logo podem ser seguidas por Espanha e Itália, é assunto de interesse estratégico e militar, pois já está provocando contração nos gastos militares locais. Essa contração – por sinal, observada em todo o mundo – poderá significar que logo teremos generosos oferecimentos das indústrias militares européias, de sistemas de armas modernos em condições de pai para filho. O que isso poderá significar, para nosso país? Sabe-se lá. As principais pendências das forças armadas brasileiras continuam em suspenso: não se fala mais nos caças, nem nos navios de superfície. De positivo, a aquisição, pelo Exército, de uma nova linha de VBTPs (“Viatura Blindada de Transporte de Pessoal”) – o “Guarani”, a ser fabricada pela IVECO, em Minas Gerais. Fala-se da incorporação, nos próximos 15 anos,  de algo em torno de dois e meio milhares de unidades; também anda sendo discutida a substituição do FAL como arma padrão da força terrestre.  Também poderia ser um bom assunto a aquisição, pela MB, de oito aeronaves C1Trader, dos estoques na Marinha dos EUA. Trata-se de um modelo adequado às funções de COD (Cargo Onboard Delivery, ou seja, “Abastecimento direto a bordo”) e REVO (“Reabastecimento em vôo”). São aeronaves obsoletas, mas passarão por programas de modernização, nos EUA. O que isto pode significar? Que, a médio prazo, a MB tem planos de adquirir um outro navio-aeródromo, de maior porte, e talvez ampliar a aviação naval. Ao que parece, estamos às vésperas de uma significativa reestruturação da Marinha, que se seguirá à que vem sendo feita, desde os anos 1980, nas outras forças singulares. As principais unidades da Força Terrestre tem sido retiradas das grandes cidades e transferidas para as fronteiras; a FAB começa a reposicionar seus principais meios. No caso do EB, a tendência é que nos grandes centros fiquem as organizações de ensino e treinamento, administrativas e de referência; a FAB pretende voltar parte de sua atenção para o “vazio amazônico” e para as “fronteiras verdes” onde o EB já se encontra, com seus “Pelotões de Fronteiras”, suas excelentes unidades de infantaria de selva e parte das unidades aeromóveis. A integração terá de ser considerada visto que a FAB deverá oferecer ao EB e às polícias capacidade de vigilância aérea avançada (Early Air Warning) e apoio aéreo. É claro que, em termos de Brasil, nunca se sabe, visto que os políticos daqui, independente da coloração e de serem governo ou oposição, parecem achar que o país não precisa de forças armadas (temos de admitir que a excessão foi o governo Lula, e isto os próprios militares reconhecem).

Mas o assunto militar que me pareceu mais interessante não diz respeito propriamente às forças armadas, mas à uma das “forças auxiliares” – como são chamadas, eufemisticamente, algumas das corporações policiais brasileiras: a greve do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro.

Por que? Alguns dos assíduos devem lembrar que causa::andou mexendo no assunto. Emboran ninguém pareça lembrar que os bombeiros fazem parte das corporações militares estaduais, os “soldados do fogo”, militarizados desde o final do século 19, são parte  das pequenas forças militares com que, no início do século passado, foram dotados os governos estaduais. Essas forças tinham por função manter a ordem interna (que dizer: o poder nas mãos certas), tornando mais difícil a intervenção do governo federal nos assuntos locais. De toda forma, PMs e bombeiros são corporações militares, reguladas por regras diversas daquelas que regem as categorias civis da sociedade.

E é esse o “xis” da questão: até onde eu saiba, militares não podem fazer greve. Esta é uma característica estritas dessas corporações, em todo o mundo, em função de terem sua base plantada sobre os princípios da disciplina e da hierarquia.

As corporações militares não são democracias. Isto é o mesmo que dizer que, num estado de direito, estão subordinadas aos poderes civis, e são diretamente comandadas pelo chefe do estado, visto que as FAs fazem parte da estrutura permanente do estado. Por outro lado, as regras que regem e dirimem conflitos em outras categorias da sociedade civil não têm efeito no cotidiano militar.  Vale dizer: num estado de direito, a sociedade civil é caracterizada pelo respeito à lei, pluralidade de idéias e pelo conflito mediado. Nas FAs, em última análise, o conflito não existe e as ordens e determinações de comandantes designados independente de consulta pública devem ser obedecidas sem questionamento – e ponto final. Existem mecanismos que possibilitam a um subordinado reclamar de uma ordem injusta ou de um comportamento considerado inaceitável, por parte de um comandante, mas esses mecanismos são constituídos por canais estritos, e não se assemelham aqueles vigentes na sociedade civil. Se a tropa tem reivindicações, estas devem estar de acordo com o regulamento (por exemplo: não é possível reivindicar a mudança do modelo de uniforme ou da saudação militar) e devem subir seguindo a cadeia de comando, até onde se encontre um agente autorizado a examiná-las – sempre dentro do regulamento. Pressupõe-se, entretanto, que certas questões, por serem de juízo superior, não podem ser discutidas e muito menos postas em dúvida. Questões salariais são uma dessas.

Um soldado, ou grupo deles, que se recuse a cumprir o regulamento estará comentendo uma violação gravíssima: rompendo a cadeia de comando. Em qualquer país do mundo, democrático ou não, isto tem um nome: insubordinação. Assim, “greve” numa corporação militar não passa de motim; passeata de militares, abandono não autorizado de posto. Motim não é justificável: o militar amotinado é excluído e penalizado. O abandono de posto até pode ser eventualmente justificado, mas depois de ser o transgressor preso e submetido a procedimento disciplinar. 

Assim, em primeiro lugar, a “greve” do CBMRJ é gravíssimo caso de indisciplina militar, e como tal deve ser tratado. Mas é também um angu de caroço político, dados os fatores que o cozinharam e o temperam, a começar pelo fato de que os bombeiros são muito mal pagos, e a população civil é amplamente simpática à corporação e a seus membros. Os bombeiros estão dentre as poucas categorias profissionais amadas pela sociedade (de forma mais-ou-menos semelhante, só consigo lembrar dos professores primários e de ensino médio, que os governos também vem maltratando, sistematicamente, há mais de trinta anos…). É interessante observar que até mesmo a imprensa, que não passa dia sem falar no “excesso de gastos com o serviço público” (e frequentemente acusa grevistas: causam problemas e atrapalham tudo, do trânsito à vida dos homens bons) tem colocado como “justas” as reivindicações dos soldados do fogo. A invasão do Quartel Central, no Rio tornou a situação ainda mais complicada, visto que a atitude do governador – que, em princípio, não poderia ter sido outra – de ordenar o uso da força para retomada das instalações daquela organização militar e a prisão de 429 efetivos envolvidos, catalisou a simpatia da população da cidade. Talvez facilite um pouco imaginar os soldados do BOPE entrando em greve e invadindo  o quartel da Rua Campo Belo, e logo depois, os “caveiras” promovendo uma passeata na Avenida Atlântica. É muito pouco provável que os moradores das redondezas estendessem panos negros nas janelas, como fizeram no dia do evento.

Toda essa situação foi precipitada pelo estado de penúria em que vivem  esses profissionais e, por extensão, suas famílias. Afinal, a profunda cisão que existe na sociedade brasileira, com elites gozando de todos os privilégios e a grande massa popular vivendo com dificuldades, repete-se nas forças armadas. O uso que vinha sendo feito pelo governo do estado do Funesbom, formado pela arrecadação da “taxa de incêndio”, é prova acabada do modo perverso como tais vicissitudes batem continência nas corporações militares. Tal situação tornou-se mais perceptível na medida em que, nos últimos anos, o desenvolvimento econômico do país, que possibilitou maiores chances de progresso pessoal e social a profisionais com qualificação técnica, também colocou em evidência a má situação social e econômica das categorias militares. O “oba-oba” do governo com relação ao sucesso econômico (culminando com a conversa do “pibão”, no início do ano) teve como efeito colateral evidenciar o fato de que esse mesmo governo (considerando todas os níveis), tem deixado seus servidores como última prioridade. As autoridades pedem “sacrifícios” e “paciência” a categorias que não fazem outra coisa – e no caso das categorias militares, sem instrumento algum de negociação.

A panela de pressão apitou, como se dizia em meu tempo de estudante. O apito, em minha opinião, avisa que a “questão militar” tem de ser tratada pelas autoridades com maior seriedade, e não com a tática de empurrar com a barriga e tentar jogar a opinião pública contra elas – tática por sinal usada com todo o serviço público. O governador do Rio de Janeiro, pelo modo como enfrentou a crise, parecia não dispor de informações completas sobre o problema. Quando teve de se manifestar sobre o evento do Quartel Central, o fez de meneira totalmente inepta. Pouco tempo atrás, Cabral tomou a atitude inédita – podemos dizer, histórica – de restabelecer a autoridade civil e a ordem sobre um enclave controlado por marginais armados. Naquele episódio, agiu com ponderação notável; já neste… Deveria ter chamado a atenção do público para a questão da hierarquia e da disciplina, e colocadado a questão salarial de forma honesta e direta. Preferiu invocar histórias chorosas e não comprovadas sobre “criancinhas postas em risco por baderneiros e inocentes úteis” e tentar uma saída pela tangente: oferecer gratificações que não resolveriam nada.

A mesma coisa, certamente, não acontecerá com a outra força militar estadual: a PMERJ – esta muito mais perigosa do que os simpáticos bombeiros. E é altamente improvável que aconteça nas forças armadas regulares, onde a disciplina estrita mantém tais situações sob controle. Claro que sempre pode aparecer um maluco do tipo do capitão paraquedista Jair Bolsonaro, que, em 1987, mostrou-se disposto a usar seus conhecimentos técnicos como forma de protesto contra os baixos salários que tornavam os oficiais militares reféns de administradoras de imóveis e agiotas. É muito mais provável que oficiais da FAB cada vez mais peçam dispensa muito antes do tempo para usar o excelente treinamento como pilotos de asa fixa e asa rotativa – pago com meu-seu-nosso dinheirinho – em empresas de taxi aéreo; e que oficiais e graduados da Marinha dêem baixa para ocupar lugar nos passadiçoes e casas-de-máquinas dos supply vessels que abastecem as plataformas oceânicas que logo irão tornar nosso país o terceiro ou quarto maior produtor de petróleo do mundo… Essa situação, além de deixar bem claro o uso irracional feito do dinheiro público por nossas autoridades, torna o país potencialmente refém de qualquer potência média que venha a nos atacar. Mas… Somos um país pacífico, não é o que dizem?..::

O projeto FX: a mais longa novela já escrita no Brasil::parte 3::

O capítulo de hoje da novela, apresentará aos bloguespectadores fanáticos alguns coadjuvantes, que certamente trarão ação e emoção ao roteiro. Trarão, não. Já estão trazendo. Vamos ao capítulo 3, pois então::

Apesar de residir em Belo Horizonte faz alguns anos, eu continuo lendo, quase diariamente, jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Alguns diriam que se trata de exercício de uma personalidade masoquista, e eu tenderia a concordar, pois ler “O Globo” ou a “Folha de São Paulo” costuma a ser, seguramente,  meio caminho andado para uma bela azia. A implicância desses órgãos da imprensa escrita com o governo federal é notável, e já tivemos bons exemplos disso. Não é o caso de listá-los, e nem de querer que os nove ou dez assíduos concordem comigo – afinal, alguns desses me qualificam de “lulopetista” (seja lá o que for isto…) e não concordarão mesmo. Nessa lista de assuntos, um dos que tendo a acompanhar com maior atenção é a obra de Santa Engrácia que virou a aquisição de equipamento para a FAB. Claro que essa ação conecta-se com outras de espectro mais amplo: as posições que o governo brasileiro tem assumido em termos de política externa, posições que têm afastado nosso país do alinhamento automático com os EUA – ou seja, de um “ocidentalismo” que, mesmo indisfarçavelmente falacioso, parece enlouquecer nossas elites. Essas posições deixam indignados boa parte dos jornalistas desses órgãos, que as qualificam ora como como “maluquice”, ora como “demonstrações infantis de independência” (nas palavras, emitidas no último dia 12, por outra paladina do ocidentalismo pró-EUA, a jornalista Miriam Leitão).

Não adianta tentar discutir o fato de que talvez seja interessante manter certa distância crítica com relação ao governo dos EUA, mas, nem mesmo no que diz respeito à um assunto técnico como a aquisição de aeronaves, prevalece um mínimo de sensatez. Os jornalistas de nossa imprensa simplesmente não entendem o motivo pelo qual nossos militares e civis não assumem logo que devemos comprar o produto que nos é oferecido pelos americanos. Não faz a menor diferença os argumentos que possam ser levantados a respeito: deveríamos adquirir os F/A18 e ponto final.

Por outro lado, frequentemente a forçação de barra é de tal forma rasa de argumentos que mesmo um analista superficial contesta sem grande dificuldade.

Um desses forçadores de barra é – como não poderia deixar de ser – o inigualável Merval Pereira.

Uma coisa deve-se dizer a favor de Merval: ele consegue usar qualquer tema , mas qualquer mesmo, para falar mal do governo. Muitos dos assíduos certamente afirmarão que é implicância minha – e é, em grande parte. Mas o que realmente importa é o fato de que o antigovernismo de MP por vezes parece afetar-lhe o julgamento. (“Por vezes”?.. Bem… Serei condescendente para que os assíduos antigoverno não caiam em cima de mim…) Não me importa grande coisa quando ele sai dizendo que o pré-sal é um embuste do governo – cada um pode achar o que bem entender, inclusive eu. Mas quando ele sai comentando assuntos militares, aí minha azia vira uma tremenda queimação. Imaginem como ficou meu estômago com os comentários publicados no último dia 10 de fevereiro, sob o título “Desconfianças”. Claro, Merval tem feito do projeto FX2 um de seus cavalos de batalha, nos últimos tempos. Bem, eu também, só que por motivos diversos: MP simplemente encasquetou que os militares brasileiros “têm problemas” com os EUA. E que no centro dos “problemas” estaria “a crença de que os EUA não transferem tecnologia para outros países”. Merval afirma que essa crença seria um equívoco, e que a Boeing estaria disposta, para dirimir essa desconfiança, a abrir à participação brasileira o projeto “Global Super Hornet”. Resta saber o que vem a ser isto – visto que ele não explica. 

Explico eu, pois. Trata-se de uma tentativa de criar uma alternativa para o Lockheed-Martin  F35 “Joint Strike Fighter”, aeronave de quinta geração que deverá substituir o F16 e o F/A18 nos próximos dez anos. O problema é que o programa “Global Super Hornet” não existe objetivamente e não tem suporte financeiro ou político do governo dos EUA. De fato não se sabe se tal programa sairá do papel, pois até agora não têm interessados. Parece ter sido criado pela empresa para oferecer à Coréia do Sul uma opção atrativa ao multinacional europeu “Typhoon”, que está sendo apresentado ao programa KFX (uma espécie de FX coreano, claro, sem a enrolação). A Boeing conta também com o interesse da Índia, que promove um superconcurso para, dentro do programa Medium Multirole Combat Aircraft (MMRCA), a aquisição de aproximadamente 150 aeronaves nos próximos dez anos.  E ao Brasil, afinal, foi oferecido como canto de sereia, em função das tais desconfianças de que fala o MP. Desconfianças que, também para o vice-presidente da Boeing para a Europa, Israel e América, Joseph T. McAndrew, são infundadas: ele afirmou já ter as garantias do Congresso que a empresa poderia abrir ao Brasil tudo o que for necessário.

Entretanto, permitam-me falar de modo mais direto: o buraco é mais embaixo. O F/A18 “Super Hornet” teve sua história operacional cheia de problemas, inclusive de discordâncias internas nas FAs dos EUA (se você lê inglês, poderá saber de alguns aquiaqui); outros dizem que não tem futuro, visto já ter sido desenvolvido até o limite, por ser a versão muito melhorada de uma aeronave dos anos 1970. Sua sobrevivência na Marinha dos EUA deve-se exclusivamente aos sucessivos atrasos no programa JSF, com que as autoridades norte-americanas pareciam não contar (vale à pena ler o texto do excelente blogue Poder Aéreo; se você lê inglês, os dados desta matéria do LA Times são muito esclarecedores). Mas os atrasos do JSF não durarão para sempre: “Eu acredito que o programa está entrando nos trilhos. Este programa nunca foi tão conturbado como muitos críticos tem pensado. Eu acho que ele apenas progrediu de forma mais suave que outros programas de desenvolvimento de caças, com uma possível exceção do F-16”, diz o especialista norte-americano Loren Thompson. Se você lê inglês, será esclarecedor um texto desse tal de Thompson, que aponta os problemas atualmente enfrentados pela Boeing e as tentativas que esta empresa está fazendo para entrar pela porta dos fundos no programa JSF. Quanto à generosidade da Boeing, não se sabe com o governo norte-americano irá se posicionar, no fim das contas. Transferência de tecnologia crítica depende não de um, mas de uma série de acordos de construção extremamente complexa, e não basta o executivo “garantir” que Congresso dos EUA não colocará entraves.

Por mais delirante que eu seja (e não sou pouco…), não imagino que minhas fontes sobre o assunto sejam melhores do que as do MP – não são. MP certamente sabe de tudo o que foi posto acima, e até mais, dados os contatos que deve ter entre a imprensa estrangeira. Ele também  tem, certamente, todas as condições de ter uma descrição precisa do incidente envolvendo a venda de aeronaves AL-X “Super Tucano” à Venezuela, desnecessária demonstração de arrogância do governo dos EUA, acontecida em 2005 (aliás, bastaria uma pesquisa rápida na Internet). Ele saberia que em torno de 50 por cento dos componentes do excelente aviãozinho da Embraer são de tecnologia ou fabricação dos EUA. A começar pelo turbopropulsor Pratt & Whitney Canadá PT6A 68C, controlado por um sistema digital FADEC, todo o embarque de tecnologia tem origem norte-americana. A única coisa que não pode ter criado problemas é o radar… O Brasil tem tecnologia de radar aeromóvel? Não, mas até as pedras sabem que o Super Tucano não tem radar (uma descrição bastante detalhada do EMB314  aqui). Uma longa digressão de Merval sobre o aspecto formal da questão cai no campo da opinião. De qualquer maneira, me parece que uma afirmação por escrito da secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton sobre as “garantias” do Departamento de Estado para a transferência de “toda a informação relevante e a tecnologia necessária” é ambígua o suficiente para não significar nada. Merval parece achar o contrário, mas até aí, tudo bem: opinião e nariz, eu tenho, ele também. Mas a experiência é, neste caso, pedagógica: não foram poucas as vezes em que os EUA vetaram a compra de armamento atualizado pelo Brasil. É preciso lembrar que, nos anos 1930, o governo norte-americano relutou até onde pôde em apoiar a modernização das forças armadas brasileiras? E quando, após a guerra, a FAB pretendia adquirir jatos, os EUA recusaram-se a fornecê-los; vinte anos passados, novamente decidiu o “grande irmão” que não precisávamos de armamento atualizado, e que o ferro-velho cedido ao país através dos programas de ajuda militar (como os F80 e TF33, nos anos 1960, quando a FAB quis adquirir aeronaves modernas) seria suficiente para um país “pacífico”.

Assuntos militares são assuntos sumamente técnicos. Não se pode tratá-los em termos exclusivamente políticos – e se você não for especialista, tem de recorrer a um. Está certo que Merval não confie nas fontes nacionais, mas que elas existem, existem. Poderia, por exemplo, ter consultado algum jornalista especializado, como Ricardo Bonalume Neto, Nelson During (editor do ótimo site especializado DefesaNet) ou Claudio Lucchesi (editor da indispensável revista “Asas”); poderia ter ouvido alguém do Laboratório de Estudos do Tempo Presente, do professor Francisco Carlos Teixeira da Silva. Mas não: MP resolveu consultar o pesquisador Expedito Carlos Stephani Bastos “coordenador dos estudos de defesa da Universidade Federal de Juiz de Fora”. Certo – as universidades federais dedicam muita pesquisa, em nível avançado (pesquisadores seniores orientando teses de mestrado e doutorado), a temas militares, como desdobramento da História, Ciência Política e Relações Internacionais. Ao examinar o site do instituto da UFJF, o “Centro de Pesquisas Estratégicas Paulino Soares de Sousa”, que “tem por finalidade canalizar iniciativas no terreno das pesquisas”, observa-se que esse instituto não figura na área de pós-graduação da UFJF e tampouco tem pesquisas em andamento – o que, por sinal, faz sentido, visto que não tem doutores, doutorandos ou mestrandos. Trata-se de uma coletânea de artigos de autoria do próprio “coordenador”. Sem querer ser implicante, parece-me pouco.

Conheço bem o trabalho de Expedito Stephani, que, em minha opinião, é uma referência quando o assunto se trata de blindados no Exército Brasileiro, mas nunca soube que fosse especialista em aviação.  Então, ou o F/A18 é um tanque e eu não sabia, ou o Expedito saiu de seu campo e escorregou feio. De outra forma, fica difícil um pesquisador domingueiro como eu entender como um especialista em blindados arrumou expertise para afirmar, de forma peremptória, que “considera o F-18 da Boeing o melhor dos três que disputam a licitação … o mais próximo de nossa realidade…” E também afirma que “como estará em produção pelo menos até 2017 …  sem dúvida que terá grande facilidade em peças de reposição.” Não sendo um amador Expedito sabe que quando um país compra uma aeronave (ou qualquer tipo de armamento), entram no contrato pacotes de sobressalentes, inclusive motores completos, aviônicos e peças estruturais. Esse não seria o problema. Além do mais, pacotes desse tipo não são totalmente fechados, e o país tem certa liberdade de escolher parte dos equipamentos e armas da aeronave.

Reside aí uma vantagem adicional da tal transferência de tecnologia: permite que certas peças passem a ser fabricadas ou, principalmente, consertadas no país. Isso permite que todo o ciclo de manutenção seja executado internamente, sem que seja necessário recorrer ao fornecedor original nem a terceiros países. A Marinha passou anos sofrendo com a compra de “caixas pretas” norte-americanas e inglesas, até que resolveu apelar para os submarinos de projeto alemão. Ainda assim, partes do projeto não foram repassadas, e a manutenção é feita por técnicos alemães, principalmente de sistemas eletrônicos. Esse é o motivo pelo qual os projetos de modernização de meia vida de material flutuante incorporam produtos concebidos internamente, ainda que não sejam “estado da arte”.

É muito provável, então, que parte das declarações do pesquisador juiz-de-forano tenha sido truncada. Ele não pode ter afirmado, por exemplo, que os F/A18 por ser um avião naval, poderá também operar a partir do navio-aeródromo “São Paulo”. De onde Expedito Stephani terá tirado tal informação é uma boa pergunta, pois implica que ele conseguiu dados de engenharia sobre a capacidade estrutural do “São Paulo”, ex-“Foch” da Marinha francesa. Mesmo “domingueiros” como eu sabem que não basta estar um porta-aviões, tal como o barquinho de Roberto Menescal, a navegar, no macio azul do mar, para qualquer avião decolar dele ou pousar nele. Cerca de dois anos atrás, quando era dado como quase certo que o Brasil iria dar preferência aos Rafale, o blogue “Poder Naval” levantou a possibilidade do uso naval desse avião. Um ex-piloto da Força Aérea Francesa, representando a Dassault, citou testes realizados com o Rafale no então “Foch”, e desconversou: “Se no futuro a Dassault for contactada pela MB a companhia está disposta a iniciar entendimentos para a melhor adaptação do Rafale às condições do São Paulo”. Só por curiosidade: conveses de NAe´s são projetados para um estresse máximo, que é a “pancada” que a aeronave dá nele, durante o pouso. Como esses navios são projetados para duração de uns 40 anos, pelo menos, a tecnologia aeronáutica muda, e os ditos têm de ser reformados periodicamente. O peso máximo de decolagem do Rafale é de 24.500 kg, sendo que pouco mais da metade disso aí é “carga útil”, ou seja, o peso que não faz parte estrutural da aeronave; o de um F/A18, de 29.900 kg. Um Dassault-Breguet *Super-Etandart, caça naval que operou no “Foch”, pesa, na decolagem, 12500 kg; um Douglas A4K *Skyhawk (o tipo que atualmente equipa a aviação de asa fixa da Marinha Brasileira), 11.100 kg. A utilização de qualquer das novas aeronaves provavelmente exigiria reformas estruturais no convôo e substituição das catapultas do “São Paulo”. Os “Rafale” franceses e os F/A18 operam a partir de navios-aeródromos muito maiores do que o nosso, cujo deslocamento, carregado, é de pouco menos de 33.000 toneladas. O NAe nuclear francês Charles De Gaulle, que opera uma versão naval do Rafale desloca, totalmente carregado, cerca de 45000 toneladas. Os NAe nucleares norte-americanos têm deslocamento médio de 70.000 toneladas. É certo que a Marinha tem planos de, ainda nesta década, iniciar a construção de um novo NAe no próprio país (são especulações sobre as quais ainda não existem dados consistentes), mas certamente é cedo para determinar o tipo de aeronave a ser operada. Expedito Stephani tem razão quando diz que a unificação da cadeia logística é uma grande vantagem, tanto do ponto de vista operacional quanto logístico. Mas essa é uma tendência mundial, e sua implementação é possível seja lá qual o modelo de aeronave escolhida.

Outro ponto curioso das declarações do pesquisador é sobre não ter sido possível revitalizar os Mirage III. Para fazer tal afirmação, Expedito deve ter tido acesso a informações precisas sobre o assunto – eu nunca soube que tal ação tenha sido sequer considerada, visto que o problema real é que os Mirage tinham esgotado seu tempo de vida útil. Como os assíduos de causa:: já sabem, a própria França fez um projeto para revitalizar os Mirage pasquistaneses, que estão voando até hoje. Possível, então, era. Talvez não fosse economicamente viável, o que é outra história. A bem sucedida modernização dos F5E não aconteceu por serem aquelas aeronaves de origem norte-americana, mas por uma decisão política que também foi explicada aqui no blogue. Outra afirmação estapafúrdia é a de que a empresa norte-americana Sikorsky teria, nos anos 1980, “cedido” tecnologia de usinagem química a pedido do Ministério da Aeronáutica. A tecnologia de usinagem química, que permite a fabricação de peças em materiais compostos, não é nenhum segredo – transita de um país para outro, e foi provavelmente comprada da empresa norte-americana. O ponto de viragem da Embraer – é outra coisa que até as pedras sabem – foi o projeto do AMX, nos anos 1980. Graças à participação de engenheiros brasileiros, a Embraer absorveu conhecimentos sobre desenho de estruturas aeronáuticas que permitiram, posteriormente, desenvolver os jatos regionais EMB145 e a série dos E-Jets – e partes destes foram aproveitados de outros projetos. O processo de implantação de indústrias de alta tecnologia é sempre um processo cumulativo, ou seja, leva muitos anos e implica em acesso a dados de pesquisa teórica e aplicada, existência de um parque industrial consolidado, e por aí vai. Ao contrário do que afirma o pesquisador, o Brasil já possui “capacidade de absorção” (gostaria de saber do que isso se trata, exatamente…) para receber tecnologia avançada – não é à toa que nossos engenheiros estão na África do Sul trabalhando junto à Denel – suponho que “absorvendo tecnologia”. Resta saber quais dessas tecnologias os norte-americanos estarão realmente dispostos a nos deixar “absorver”.

Enfim, Merval parece ter procurado cuidadosamente alguém que dissesse o que ele queria ouvir – no todo ou em parte. O resultado de sua obsessão  antigoverno é que ou pagou mico ouvindo um exercício de “achologia” de alguém que não entende em profundidade do assunto ou fez um pesquisador sério pagar mico, truncando suas afirmações.

Para terminar logo esse capítulo, eu, sem ser pesquisador nem nada, e apenas “domingueiro” assumido, diria que o problema não é o Brasil adquirir produtos norte-americanos, franceses ou suecos. Se o produto norte-americano for o JSF, eu apoiarei totalmente a insistência do Merval. O problema é o Brasil ceder à pressão do lobby político dos EUA e comprar ferro-velho zero quilômetro, contribuindo para manter empregos de alta qualidade nos EUA. Querem tanto o Super Hornet? Pois bem: o tempo de vida do F/A18 tem prazo de validade. Porque, então, não esperar alguns anos e comprar a aeronave de segunda mão? Sairá, provavelmente, por menos da metade do preço e irá dar o mesmo. Claro, virá extripado dos aviônicos estado da arte, mas poderemos aplicar nele um programa de modernização, utilizando um projeto supimpa da Embraer com o apoio de Israel – acreditem, não estou sendo irônico. Melhor ainda: porque não começar em investir na fabricação de uma aeronave de combate nacional? Não seria difícil implementar o projeto do próprio F5MBR, de modo a construir um caça multifuncional de quarta geração, dotado de aviônicos e armamento no estado da arte. Se o Irã conseguiu fazer algo semelhante, com apoio chinês, nós teríamos condições de lavar a égua, e já construímos as parcerias certas. Ao contrário do que diz MP, não é uma questão de “desconfiança”, mas de confiança no futuro de nosso país::

O projeto FX: a mais longa novela já escrita no Brasil

E causa:: volta das férias cheio de gás. Os assuntos possíveis para divertir os nove ou dez assíduos são muitos, e senti vontade quase incontrolável de comentar as recentes revoluções no Oriente Médio, que têm obrigado os norte-americanos a sentidas (como sempre…) autocríticas e os israelenses a declarações ridículas. Mas esta vou passar, visto que a Internet está cheia de análises muito melhores do que eu prórpio sou capaz. Assim, optei por um assunto bam mais fascinante para nós brasileiros: o reequipamento da FAB. Outro dia me dei conta que a discussão começou em… 1991. Caramba, eu ainda tinha cabelo! Assim, passei a levantar o assunto, e o resultado segue abaixo. Porteriormente, novos capítulos destrincharão a história. Por ora, recomendo aos interessados a leitura deste post, colocado aqui mesmo no blogue, pouco  tempo atrás::

No final do século passado a FAB tinha um problema sério nas mãos: a vida útil de seu principal vetor de combate, o Dassault Mirage IIIEBR estava no fim. O F-103 (como era chamado aqui) teria sair de operação em no máximo dez anos (por volta de 2005). Dadas as características do avião, qualquer possibilidade de modernização resultaria contraproducente, ainda que fosse possível uma iniciativa assim, pois havia antecedentes: um programa realizado pela África do Sul[i] e outro, elaborado na própria França2[ii].

Mas a FAB pensava em uma aeronave que pudesse dar ao país capacidade de superioridade aérea sobre o território nacional nos próximos 30/40 anos, levando em consideração as mudanças que se observavam no combate aéreo, que a mera modernização de um vetor antigo não satisfaria. Os grupos de trabalho da Força projetavam a necessidade de adquirir uma nova aeronave por volta de 1998-1999. Diversos órgãos da FAB se envolveram na concepção do projeto, coordenados pela “Comissão Projeto Aeronave de Combate” (COPAC).

A COPAC começou a elaborar os “Requisitos Operacionais Preliminares” (ROP) do que viria, anos depois, a ser o Programa FX ainda no governo de Fernando Collor de Mello, no final de 1991. Assim surgiu o formulário denominado “Requisitos Técnicos, Logísticos e Industriais Preliminares”, primeiro esboço da aeronave de caça biturbina que substituiria, por volta do final do século 20, os Mirage.

Ainda não chegaram a ser divulgados os documentos resultantes dessa primeira fase, mas certamente foram analisadas todas as alternativas concebíveis. Estas devem ter incluído quatro hipóteses: 1. a possibilidade de projetar e fabricar uma aeronave “indígena”; 2. a associação a um programa já em andamento (como aconteceu com o AMX); 3. a compra de um “pacote” estrangeiro para fabricação local; 4. a aquisição de um tipo já existente.

Todas as três primeiras opções devem ter sido descartadas logo. O custo teria sido alto e os prazos, muito longos. Um projeto desse tipo implica na existência de capacitação local em áreas científicas e tecnológicas de ponta. De fato, seria possível capacitar cientistas das universidades e engenheiros do parque industrial local, mas isso levaria entre vinte e trinta anos. Uma alternativa possível seria contratar técnicos no exterior (em meados dos anos 1960 isso foi feito com o Bandeirantes), mas os países capacitados geralmente não cedem profissionais ligados à indústria militar.

A associação a um projeto em andamento também teria se mostrado problemática, já que não havia um projeto de caça em andamento que atendesse aos requisitos da FAB. De qualquer forma, a fabricação local deve ter sido considerada proibitiva, embora não impossível. O problema maior é que os itens mais complexos – aviônicos, motores e armamentos – teriam de ser importados, o que subordinaria o Brasil a uma potência estrangeira. A experiência da parceria com os italianos da Alenia-Aermacchi, que tinha resultado, no fim dos anos 1980, no AMX (A1, na notação da FAB), deixara péssima impressão tanto nos militares quanto na indústria nacional. Já a compra de um “pacote” fechado seria possível – países como Israel, China e Canadá já tinham, em épocas diversas apelado para tal solução – mas, esta implicava em dois problemas: primeiro, dificilmente algum país venderia o projeto de uma aeronave de última geração e, segundo, a questão dos aviônicos, motores e armamento continuaria sem solução. 

A compra de uma aeronave pronta revelou-se a alternativa mais viável, desde que fosse garantido um nível razoavelmente alto de transferência de tecnologia, pelo menos no que tange à célula (o “casco” da aeronave, incluindo fuselagem, asas, empenagem, cabina, estrutura interna, trens de aterrissagem e sistemas de acionamento e controle – servomotores, atuadores, freios, etc.), bem como os processos industriais inerentes. Os elementos mais complexos implicariam em acordos bilaterais e a transferência de tecnologia seria, nesse caso, provavelmente lenta e, em muitos momentos, entravada por acordos de consulta e restrição. Mas permitiria, a médio e longo prazos, um salto qualitativo gigantesco para o país. Este tinha sido o principal ganho do projeto AMX.

Um dos conceitos mais interessantes do projeto era a padronização do equipamento, visando tornar uniforme todo o ciclo de manutenção. Desde os anos 1970, a FAB tinha seus principais vetores de combate fornecidos por dois países com filosofias bastante diferentes no que tange ao combate aéreo e ao desenho de aeronaves: a França e os EUA. A recusa dos EUA em fornecer aeronaves de última geração à América Latina (para “não fomentar o armamentismo na região”) levou o Brasil a adquirir um modelo europeu. Poucos anos depois, os EUA ofereceram ao Brasil um pacote completo, tendo como vetor o F5E, um caça tático “econômico” de capacidade bastante limitada, mas capaz de atender aos requisitos da FAB. O objetivo, naquela época (1972), era prover a Força de capacidade tática (de ataque ao solo) e interceptação eficaz a curta distância. Embora o F5E tenha oferecido uma alternativa razoável, de preço mais em conta do que o Mirage 5 oferecido pela França, o resultado foi que a FAB viu-se às voltas com duas aeronaves inteiramente diferentes, em termos de aviônica, motores e armamento, o que obrigou, na prática, a criação de duas linhas de manutenção com toda a infra-estrutura. Assim, era prevista a aquisição de um lote inicial variando de 16 a 24 células e, nos 15 anos seguintes, de um número não menor do que 50 outras unidades, levando-se em conta que cada unidade de primeira linha da FAB inclui não menos que 18 aeronaves.

A proposta da FAB (que basicamente continua a mesma até hoje) foi apresentada em 1994. A aeronave deveria ter características multi-role (operações ar-ar, ar-solo e ar-mar com mísseis ar-ar de curto e médio alcances, ar-solo, ar-mar, bombas e foguetes);  motorização a reação, capacidade de cruzeiro e pós-combustão. Os instrumentos de bordo (aviônicos) teriam de prover cada aeronave com capacidade de navegação autônoma e possibilidade de operações diurnas, noturnas e “qualquer tempo”. O radar de bordo teria de ser “multímodo” (radares capazes de engajar diversos alvos ao mesmo tempo tanto no ar quanto no solo) coerente com o armamento transportado. Com instrumentos adequados às tarefas, deverá ser capaz de realizar missões de reconhecimento e missões de supressão de defesa aérea. Os armamentos não devem estar restritos à aquisição em uma única fonte, e os que serão integrados não poderão ter restrição de fornecimento pelo fabricante. A empresa fornecedora é responsável por garantir a integração armamento-plataforma.
Os requisitos do novo vetor tinham sido elaborados a partir de uma visão ampla, de caráter orgânico, do que é a Força Aérea Brasileira. Essa visão leva em consideração as características da política externa brasileira, as relações com os vizinhos, numa perspectiva de longo prazo, as capacidades militares desses vizinhos e as características de infra-estrutura da FAB, dentre centenas de outras variantes. Esse levantamento, geralmente feito por grupos de trabalhos coordenados por oficiais de estado-maior, com grande participação de consultores civis altamente especializados, resulta num estudo conceitual, que identifica as necessidades operacionais e idealiza o avião que atende as necessidades específicas da FAB, sem remeter-se a nenhum tipo em particular.

O passo seguinte, a consulta informal ao parque aeronáutico mundial foi iniciada em 1994-1995. As principais empresas foram convidadas a “registrar interesse”, após o recebimento e análise de um documento formal apresentado pela FAB, que descrevia a “aeronave conceitual”.
Responderam ao convite da FAB a então McDonnell-Douglas (depois adquirida pela Boeing), que propôs o exame do F/A18C/D “Hornet”[iii] e a MAPO, da Rússia, com uma versão de última geração do MiG29. Os fabricantes do F16A/B e do Mirage 2000 fizeram contatos informais, que não foram levados em conta pela FAB.

Embora os requisitos da “aeronave conceitual” estivessem aprovados, o pequeno número de concorrentes fez com que a COPAC tomasse a decisão de incluir a possibilidade de exame de aeronaves monoturbina, idéia descartada na primeira fase do estudo. Um dos motivos da alteração era a antipatia das autoridades militares pelo MiG29, considerado obsoleto; o outro era bastante prosaico: pilotos da FAB consultados manifestaram simpatia pelo F16, que já tinha sido voado por muitos deles, nos cursos de treinamento oferecidos a estrangeiros pela Força Aérea dos EUA. A alteração do ROP pareceu surtir efeito, pois vários outros concorrentes atenderam ao “convite” da FAB: a Lockheed-Martin, com o F16, a Dassault com Mirage 2000-5 e a Saab, com o JAS-39 “Gripen”.

Em 1998-1999 o projeto deu origem ao “Programa FX”, integrado ao Projeto Fênix. Este se tratava de um plano de reequipamento amplo da FAB, elaborado por determinação do governo de Fernando Henrique Cardoso. Em 1998 a Sukhoi apresentou o Su27SK. O governo norte-americano, no mesmo ano, permitiu que a Lockheed-Martin oferecesse uma versão mais moderna do F16, a C/D “lote 50” e que a Boeing apresentasse a versão E/F do F/A18 (na verdade, quase um novo avião). Foi o suficiente para que os outros governos permitissem que suas empresas oferecessem as últimas versões de suas principais aeronaves: a Sukhoi apresentou um upgrade recente do Su27, o Su30K e a MAPO, o Mig29SMT; no ano seguinte, os suecos da SAAB ofereceram uma versão muito melhorada do Gripen, a JAS39C e a francesa Dassault o Mirage 2000-5 Mk2. Em 2000 a Sukhoi apresentou seu mais recente produto, o Su35, com um pacote de armamentos de última geração.

A documentação que acompanhava a resposta aos “convites” foi examinada de forma exaustiva, o que incluía exame de bibliografia especializada, consultas aos operadores estrangeiros de cada um dos concorrentes e entrevistas com especialistas brasileiros e estrangeiros. Essa metodologia é lenta e desgastante, mas necessária, visto que o dossiê dos fabricantes só fala bem do próprio produto. O movimento seguinte foi a emissão de um pedido formal para que os proponentes apresentassem uma oferta acrescentada de projeto financeiro, que apresentaria um panorama preciso de quanto o país precisaria investir, em termos de recursos. A esta altura, o projeto teve de ser novamente adaptado, já que o governo federal em 2000, aprovou o Programa de Fortalecimento do Controle do Espaço Aéreo Brasileiro (PFCEAB)[iv], que substituiu o Plano Fênix. Os estudos de viabilidade da aquisição dos novos vetores entraram em estado de suspensão e só seriam retomados no ano seguinte.
A execução do Programa FX mostrou-se mais problemática do que imaginavam os militares. O principal entrave era o custo final, inicialmente projetado para não menos do que 1,2 bilhão de dólares, com a necessidade de investimentos iniciais de pelo menos 700 milhões. O Poder Executivo, envolvido em sucessivas crises econômicas e às voltas com a possibilidade real de novo surto inflacionário, nesta altura não demonstrava real interesse em implementá-lo, e a cada consulta da FAB reagia com evasivas, a principal das quais “a necessidade de maior debate com a sociedade”. Diante da premência da situação, o Estado-maior da Aeronáutica apresentou um plano “alternativo”, em 2001. Com a crescente obsolescência do equipamento, que ameaçava tornar a FAB inoperante em menos de cinco anos, foi proposta a modernização dos F5E. Esse projeto, denominado “F5M”, deveria executado pela Embraer, com o apoio de Israel, e dotaria a força de uma aeronave com características de quarta geração (a geração do Mirage 2000, do F18 e do F16). Sobretudo, o projeto “F5M” foi uma forma encontrada pela FAB de diminuir o número de aeronaves previstas para o Programa FX, reduzidas para 12 unidades, destinadas a substituir os Mirage III baseados em Anápolis.

Nessa mesma época começou a ser cogitado o adiamento de todo o Programa FX para o próximo governo. Não era uma idéia sem sentido: os sucessivos embaraços do programa acabaram por colocar em tela um fator não previsto dez anos antes: o surgimento de uma nova geração de aeronaves, que, nos países centrais havia destinado boa parte dos concorrentes apresentados ao Brasil à desativação, em meados da década ou pouco depois. As novas aeronaves eram previstas para um teatro de operação estendido, no qual atuariam vetores trocando informações digitais em tempo real, entre si e com centros remotos de controle. Os pilotos teriam controle apenas parcial das aeronaves, sendo supervisionados por computadores de alto desempenho e operando armamentos “inteligentes”. Por volta de 2000 estavam entrando em serviço aeronaves não existentes dez anos antes: o francês Rafale, o multinacional Typhoon, o russo Su-35U e o F-35 JSF, planejado nos EUA para substituir o F16 nos países da OTAN e na própria USAF.

A FAB teria então alguns anos a mais para designar um “sistema de armas” realmente capaz de prover suas necessidades até meados do novo século. Acreditavam os planejadores brasileiros que, por volta de 2005, essas aeronaves estariam em serviço em seus países e a Força poderia avaliar as vantagens, desvantagens e possibilidades de desenvolvimento de cada uma delas. A solução, então, seria adquirir uma aeronave “de segunda mão”, para substituir os Mirage III, cuja modernização nem chegou a ser cogitada. O bom desenvolvimento do Projeto “F5M” abriu a possibilidade da aquisição de novo lote de células, amplamente disponíveis no mercado internacional a preço de sucata, e modernizá-las para o novo padrão. Essa idéia, por sinal, já tinha sido proposta para substituir os AT-26 Xavante que, em Fortaleza, serviam para treinar pilotos de combate.

O resultado é que, ainda em 2001, um novo “convite” foi expedido pela FAB às empresas interessadas em entrar na concorrência do Projeto FX. Cerca de um mês depois, o governo federal determinou que os custos do projeto fossem modificados para baixo, o que fez diversas empresas desistirem de participar. Boeing, EADS e Dassault tinham produtos cujo preço unitário girava entre 110 e 130 milhões de dólares, e o governo havia declarado que não estava disposto a gastar mais de 700 milhões com 12 a 16 unidades. A Boeing insistiu em manter sua proposta e a francesa Dassault apresentou, à última hora, o Mirage 2000 “BR” como “a opção certa para o Brasil”. Os franceses declararam que montariam o avião todo em São Paulo, na Embraer, inclusive fabricando localmente pelo menos 30 por cento dos componentes; também acenaram com a possibilidade de que o país fornecesse unidades eventualmente adquiridas por mercados locais. Também mantiveram as propostas a Lockheed-Martin com o F16C/D lote 50, a sueca Saab com o JAS-39C Gripen, a MAPO com o MiG29SMT e a Rosoboronexport com o Sukhoi Su35U. Essas empresas se declararam capazes de baixar o preço de seus produtos e ofereceram pacotes de financiamento, o mais atrativo dos quais era o dos russos, dispostos a trocar aeronaves por “commodities” brasileiras tais como cereais, carne de boi, de frango, minério e produtos industriais. Se o escolhido fosse o Mig29SMT, havia a possibilidade de fornecer 24 unidades.
As ofertas dos correntes foram avaliadas em todos esses aspectos pela COPAC. O exame preliminar destinava-se a eliminar os concorrentes menos capazes. Neste momento, a Boeing concluiu que não conseguiria fornecer 12 aeronaves ao preço colocado como teto e recolheu sua proposta. A lista final, entretanto, surpreendeu os observadores, visto que era esperado que o Mirage e o Mig29 fossem eliminados, por serem, na época (o final do ano de 2001) claramente obsolescentes. A avaliação técnica da FAB, ainda não oficial (o governo não se manifestou sobre o assunto e deixou os militares praticamente falando sozinhos) apresentou uma classificação na qual o Sukhoi Su35U aparecia como amplamente superior aos demais concorrentes; o Gripen corria um pouco atrás, sendo que a única “desvantagem” deveria ter sido definitiva: tratava-se de um projeto inexistente, que visava transformar o JAS39 em outra aeronave, então chamada de “lote III” (depois viraria o Gripen NG); o Lockheed-Martin F16 “lote50/52” ficou em terceiro: preenchia os requisitos técnicos da FAB, mas levava a ressalva política de que as restrições de exportação do governo dos EUA colocavam no Brasil o selo de “país não-confiável”. A oferta inclui 48 mísseis BVR AMRAAM bem como alguns designadores de alvo.Entretanto, mesmo pagos, esses mísseis e designadores seriam “guardados” nos EUA, que os entregariam quando considerassem adequado; o Mirage 2000 ”BR” e o MiG29SMT ficaram em quarta e quinta colocação – na prática foram dados pela FAB como “sem futuro”.
O interesse dos concorrentes era claro, em função do encolhimento do mercado internacional, ainda bastante abalado pela crise de 1998. As propostas finais foram entregues com validade de dois anos, fato totalmente incomum no mercado de armamento novo, e ainda por cima com ajustes inesperados. O Su35U chegou a cair abaixo do teto (os 12 aviões sairiam por módicos 680 milhões de dólares), e a proposta incluía a construção de um centro de manutenção em São José dos Campos e peças de reposição para doze anos de operação (o que abaixaria o custo de manutenção, maior problema levantado pela FAB). A “sócia” brasileira dos russos, a Avibras, seria capacitada a manter célula, turbinas, aviônicos (cuja escolha seria deixada a critério dos operadores brasileiros) e radares. Os russos também se comprometeram a fazer a integração do software de bordo para incluir o armamento escolhido pelos brasileiros. Uma inteligente campanha de marketing, que incluiu viagens de dezenas de jornalistas brasileiros à Moscou e vôos de demonstração em território brasileiro tornou a aeronave russa o “pule de dez” da concorrência.

De fato, com exceção da proposta norte-americana (que depois seria modificada), as outras não foram menos estapafúrdias, com os franceses oferecendo toda a tecnologia ao Brasil e sociedade no projeto do armamento e os suecos se dizendo dispostos a tornar o Brasil sócio do projeto de um míssil de alta tecnologia que não existia, além de instalar aqui fábricas que forneceriam peças ao avião europeu e, na prática, deixariam dúzias de técnicos sem emprego.

A Comissão de Avaliação, formada por setenta especialistas militares e civis da FAB não era assim tão trouxa, e adotou critérios bastante rigorosos para a avaliação das propostas. A negociação para compra dos novos caças se estendeu por dois anos, com o governo federal claramente “cozinhando” todo mundo em fogo baixo. Com a eleição de Lula, o presidente Fernando Henrique Cardoso achou “ético” transferir o abacaxi para seu sucessor. Empossado, Lula paralisou o processo, declarando que o dinheiro seria usado no programa “Fome Zero”, e encarregando a Comissão de elaborar novo projeto.

Notas notáveis para serem notadas e anotadas…


[i]  O programa sul-africano começou a ser desenvolvido na primeira metade dos anos 1980, em função do embargo internacional de armas levantado contra o regime racista local. . O programa sul-africano, realizado com recursos próprios e apoio israelense resultou no Cheetah E e, posteriormente, no Cheetah C. As duas versões resultaram em células “seminovas” visto que, dadas as condições locais de uso, cerca de 50 por cento da estrutura e 100 por cento dos aviônicos foram trocados. (entregue em 1986) O apoio israelense resultou na qualificação da então Atlas Aircraft Corporation (atualmente Denel Aerospace). Embora os norte-americanos tivessem “olhado para o lado” com relação ao processo, a posição dos EUA levou a que diversas características do projeto israelense tivessem sido mudadas, a principal das quais a manutenção das turbinas originais francesas. Nas diversas versões israelenses do Mirage foi prevista a troca (Nesher/ Dagger) e trocado, de fato (Kfir) o grupo propulsor por produtos de origem norte-americana.

[ii] O projeto denominado ROSE (acrônimo de Retrofit Of Strike Element, ou seja, “Reconstrução de Elementos de Ataque”), foi elaborado pela empresa francesa SAGEM, voltado para os caças Mirage III e 5-50 da Força Aérea do Paquistão. Elaborado em 1992, o ROSE revelou-se um projeto caro, embora desse aos então obsoletos Mirage capacidades semelhantes às de um Mirage M2000 ou de um F16. Alcançou aproximadamente 60 aeronaves em serviço na PAF e envolveu uma ampla revisão estrutural, troca total dos aviônicos e incorporação de um radar FIAR Griffo F e de novos computadores de bordo, que tornaram a aeronave capaz de receber mísseis BVR. Foram instalados um probe para reabastecmento aéreo e lançadores de CHAFF/FLARE (meios de defesa ativa contra mísseis). O projeto ROSE é muito semelhante ao que foi realizado pela Embraer nos F5E/F.

[iii] O desenvolvimento dessa aeronave remonta a 1973. A situação econômica dos EUA, na época, fez com que o Congresso consultasse a Marinha sobre a conveniência de adotar uma aeronave mais barata que os então recentes F14, cujo custo de operação era considerado estratosférico. Os estudos da Marinha apontaram na direção não da substituição do “Tomcat”, então considerado, com razão, o melhor caça de superioridade aérea do mundo, mas na substituição de diversos tipos em serviço (A4 Skyhawk, A7 Corsair II, F4 Phantom) por uma única aeronave, capaz de complementar o F14 em tarefas de menor dificuldade, como ataque ao solo, escolta armada e reconhecimento. Apesar da implicância dos aviadores navais, a Marinha recebeu ordens de examinar as aeronaves que competiam, na Força Aérea, em um programa denominado “Caça Leve” (LWF), o General Dynamics YF16 e o Northrop YF17. O YF16 foi considerado inadequado para operações em navios-aeródromos; o YF17, que perdeu a competição por ser considerado uma versão menor do F15 Eagle, chamou atenção da Marinha devido ao fato de ser equipado com duas turbinas, fator considerado indispensável para uso naval. O projeto teve, entretanto, de ser todo redesenhado pois a aeronave tinha várias características que a tornavam inadequada ao combate aéreo com base em navios. Com a aquisição do controle da Northrop pela McDonnel-Douglas, o projeto original, que previa um caça (F18) e uma aeronave de ataque (A18) foi reunido e resultou em uma única aeronave “multifunção”. A aeronave resultante, o F/A18A começou a ser entregue à Marinha e ao Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA em 1984.

[iv] O Programa de Fortalecimento do Controle do Espaço Aéreo Brasileiro foi implantado por diretriz presidencial em 2000, e reunia diversos projetos visando a resolução de problemas que vinham sendo apresentados pelas autoridades da FAB. Previa recursos de diversas categorias, inclusive financeiros e humanos, para a execução da modernização de mais de 400 aeronaves, além da aquisição de outras, novas ou a serem modernizadas e de equipamento de apoio. Em pouco tempo, diversos projetos foram sendo postos debaixo desse autêntico “guarda-chuva furado”, inclusive a aquisição de meios ativos para implementação do SIVAM (aeronaves leves AL-X, aeronaves AEW e helicópteros), a modernização dos F-5E, a aquisição de novos transportes médios (projeto CLX), de novas aeronaves de patrulha marítima e, é claro, o projeto FX. O fato é que, conforme o tempo passava a FAB percebeu que o programa era uma enrolação que juntava projetos com fontes de recursos existentes a outros cujos recursos não estavam previstos. A adequação dos projetos existentes ao programa acabou atrasando diversos deles, o que pareceu a muitos analistas ser o objetivo real do governo.

causa:: volta ao ponto::Como poderá ser a política de Defesa do próximo governo?::parte3::

Concluiremos neste post a longa e desorganizada reflexão sobre a possível política de defesa do próximo governo. Vale lembrar que diversas ações já foram realizadas – a compra dos submarinos, o exame de sistemas anti-aéreos modernos e aquisição de helicópteros de ataque para a FAB e o EB. Mas, por si só, isto não constitui uma “política de defesa”. O condicionamento, pelo governo brasileiro, da compra de aeronaves à transferência de tecnologia, isto sim, já pode ser pensado como uma política de defesa::

parte3/3A Estratégia Nacional de Defesa, esta sim, é uma política de defesa. O presidente da República  assinou o decreto que oficializou a nova diretiva em 18 de dezembro de 2008, em Brasília. Desde então, as FAs e outros órgãos, federal e estaduais, devem colocar seus planejamentos e ações em sintonia com a END. O objetivo da END é modernizar a estrutura nacional de defesa atuando em três eixos que são chamados “estruturantes” (porque estruturam as políticas, conceitos e ações): reorganização das FAs, reestruturação da indústria brasileira de material de defesa e política de composição dos efetivos das Forças Armadas.

A END já veio tarde. A estratégia anterior era chamada de “Doutrina de Segurança Nacional”, (é interessante observar que “doutrina” pode significar “princípio”, “crença”, ou “conjunto de princípios ou crenças” que tem valor de verdade absoluta para os que o sustentam), mas nunca chegou a ser formalizada em nenhum instrumento específico. De fato, era mais do que uma estratégia de defesa: era um conjunto de diretrizes políticas formuladas para o Estado e a sociedade.

Formulada na Escola Superior de Guerra ao longo dos anos 1950, a DSN tinha por objetivo o planejamento e a direção da segurança nacional articulada ao contexto da Guerra Fria. A questão é que essa doutrina constituiu a base filosófica do golpe militar de 1964. Segundo suas diretrizes, a guerra era entre ideologias e sistemas políticos antagônicos e irreconciliáveis, e o teatro de guerra era transferido para o interior do país. Depois do golpe militar, as FAs foram praticamente transformadas em uma espécie de partido político, e, do ponto de vista das funções constitucionais, em organizações de contra-insurgência e defesa territorial. Pode-se dizer que esses dois aspectos condicionavam a estratégia de defesa nacional a partir do lugar que o país ocupava na “guerra entre as superpotências” de um sistema bipolar. Entretanto, o que se observa (quem não tiver observado ainda pode ler os posts anteriores…) é que o posicionamento em uma “guerra global” – que, dentre outras iniciativas, fez o país participar da invasão da República Dominicana, em 1965, apoiar irrestritamente o regime filofascista português e sua política colonial e o regime racista sul-africano – não eliminava pontos específicos de atrito com os interesses da superpotência dominante. Durante todo a duração do regime militar, a organização das FAs foi condicionada por essa contradição.

As transformações sofridas pelo Estado brasileiro, desde o período da redemocratização, em meados da década de 1980 não chegaram a incorporar um debate pró-ativo em torno da atribuição fundamental do Estado que é prover a segurança e defesa do território nacional, de seus cidadãos e dos interesses nacionais, seja onde tais ações de façam necessárias. Essa obrigação constitucional se coloca quando os meios ditos “pacíficos” se esgotam, ou diante de uma agressão que ameace a soberania ou integridade nacionais. Entretanto, com o fim do regime militar, a desativação paulatina da “Doutrina de Segurança Nacional” não correspondeu à uma política de defesa clara. É possível que o contexto de crise econômica e política quase permanentes, na época, possam explicar a inoperância e descaso dos atores políticos e da sociedade civil organizada. Em certos momentos, setores da sociedade chegavam a manifestar hostilidade mal-disfarçada diante das FAs, confundindo, de modo um tanto equivocado e frequentemente intencional, a instituição permanente, parte constituinte do Estado brasileiro desde sua criação em 1822, com as ações de setores militares historicamente contextualizados: os que tomaram o controle do processo político a partir de 1964.

A END pretende trazer a sociedade civil ao debate sobre a defesa nacional, o que implica em passar a considerar que esta esfera é responsabilidade coletiva, embora sua implementação fique a cargo de setores altamente especializados (as FAs, as forças auxiliares, as forças de reserva e a indústria de defesa, para citar alguns exemplos). Segundo os especialistas que, a partir do Ministério da Defesa, conceberam a END, as ações que incidam sobre a defesa nacional devem se alinhar os objetivos nacionais, o primeiro dos quais é o desenvolvimento harmônico e continuado do país e de sua sociedade. Isso implica que a capacidade do país em se defender liga-se à existência não apenas de setores altamente especializados, mas à uma crescente autonomia de meios e possibilidades, especialmente a geração de pesquisas científicas e tecnológicas que nos tornem independentes de fontes externas, científicas, técnicas e industriais, tanto em atividades civis quanto em militares.

A END não resultará, de imediato, em conjunto de forças armadas singulares das proporções esperadas para um país que aspira o papel de potência. Essa é uma primeira discussão que deveria ser amplamente travada nos setores especializados do Estado e da sociedade organizada: qual é o tamanho que devem ter as FAs brasileiras?

A questão acima é condicionada por outra, mais geral: armamento de ponta é coisa cara em todos os sentidos, e mantê-lo operacional, mais ainda. Implica no provimento contínuo de recursos humanos e infra-estrutura. A guerra atual embarca um monte de tecnologia – podemos dizer que ela é baseada na tecnologia. Um exame não muito atento das campanhas do Golfo e das intervenções multinacionais nos Balcãs, ao longo das duas década anteriores, mostra a futilidade de opor forças militares desprovidas de equipamento atualizado à forças que disponham deles. Mas não é só isto.

De outra forma: não é só uma questão de dinheiro. A guerra, hoje em dia, contempla aspectos cada vez mais complexos e difíceis de projetar e operacionalizar. Basta que citemos a tal “Guerra em Rede” de que tanto se fala. Se entendermos “rede” como um sistema de circulação de informações, que soma infra-estrutura, pessoal qualificado para operação e demandas de usuários, poderemos encontrar os antecedentes dessa forma de lutar na 2ª GM. Foi quando a extensão do teatro e a necessidade de coordenar estruturas gigantescas e multifacetadas adensou a utilização de comunicações em vários níveis, abrangendo desde o teatro tático até o teatro estratégico e ligando a retaguarda à frente de batalha. Desde então, esse adensamento não parou de aumentar. As características estratégicas que passaram a conformar o conflito, particularmente a partir da segunda metade dos anos 1950, exigem levantamento, análise e troca permanentes de informações mundiais. Hoje em dia, essa atividade acontece no chamado “tempo real”, e articula satélites, aeronaves tripuladas ou não, estações terrestres fixas e móveis, o armamento e seus vetores e equipamentos miniaturizados carregados pelos combatentes junto ao corpo. A guerra eletrônica é uma realidade e tornou abissal a diferença – e as possibilidades de sucesso – dos combatentes.

A última guerra convencional entre países de tradição ocidental – a Guerra das Malvinas – mostrou que a época da bravura suicida, tipo “danem-se os torpedos” realmente já era. Ficou no passado.

Como fica o Brasil nisso? A Guerra das Malvinas é um bom termo de comparação. A ditadura militar argentina, em crise, tentou criar um fato que soldasse a nação em torno de seu projeto político. Como tinha um viés militarista que não se observou no equivalente brasileiro, os generais assassinos do Prata fizeram generosas compras de armamento no EUA e na Europa. Tinham razões estratégicas para isto – problemas não resolvidos com o Chile e mal-resolvidos com o Brasil (na época, o principal era o caso de Itaipu, visto como iniciativa expansionista brasileira), além da própria pendência das Malvinas, esta secular. Mas, sobretudo, um tipo de formação histórica diversa da brasileira tornava a relação entre o governo e as forças armadas particular e bem diversa, se comparada ao Brasil, ainda que o país também estivesse posicionado na “guerra entre os sistemas antagônicos” e esta fosse a justificativa para o comportamento psicopata dos militares, na “frente interna”.

No aspecto militar, na época, uma comparação inicial entre meios disponíveis (equipamento e pessoal) colocaria os argentinos muito adiante do Brasil. Aprofundada essa comparação, podemos dizer que a diferença não seria assim tão grande: enfrentando uma potência militar média, nenhum dos dois países poderia vencer. A questão central não estava propriamente no volume militar, mas na diferença das capacidades das forças envolvidas. Um aspecto notável da campanha das Malvinas, que talvez não tenha sido notado pelo público em geral, mas o foi pelos militares, é que a força-tarefa britânica atuava a milhares de quilômetros de suas bases, e tendo de respeitar o fato de que se tratava de um conflito de baixa intensidade num momento em que, formalmente, não havia hostilidades abertas de grande porte. A falta de apoio à pendência argentina pelos EUA, foi compensado pelo apoio que recebeu da URSS (que monitorou a força naval britânica por meio de satélites de reconhecimento e repassou as informações ao comando argentino) e de países menores que tinham diferenças com os norte-americanos: boa parte dos mísseis que tanto fizeram sucesso durante a guerra foi cedida, graciosamente, pelo ditador radical da Líbia. E o Brasil não se recusou a emprestar aos “hermanos” um par de P-95, o “Bandeirulha”. E o que é esse equipamento de nome assim, digamos… esquisito?

Não precisamos nos aprofundar muito: é a versão do C-95 “Bandeirante” para patrulhamento marítimo. O “Bandeirulha” ocupou uma (das) lacuna(s) criada(s) na FAB nos anos 1970 – a desativação dos Neptune P-15. Equipado com aparelhagem de radar banda X, essa aeronave é capaz de cobrir cerca de cem milhas de mar em varredura circular de velocidade variável integrada a sistema de navegação inercial. Podia identificar e controlar tráfego marítimo e tinha certa capacidade de interdição, embora só tivesse capacidade de operar armamento “burro” – foguetes não-dirigidos e cargas de profundidade. Ou seja – não era perfeito, mas marcava uma diferença com relação à Argentina: a capacidade de desenvolver, adaptar e aperfeiçoar sistemas de armas relativamente modernos (um bom artigo sobre o assunto aqui).

De fato, a indústria brasileira, apoiada com recursos financeiros, e, principalmente, pelas universidades e laboratórios de pesquisa aplicada mantidos pelo governo, desenvolveu, de modo um tanto lento, mas seguro, desde os anos posteriores à 2ª GM, certa capacidade de projetar e produzir equipamentos de boa qualidade. A Embraer é o melhor exemplo dessa filosofia. A Empresa Brasileira de Aeronáutica S/A foi criada em 1969, durante o governo Costa e Silva. Suas origens remontam aos anos 1940, e se plantam nos projetos nacionalistas dos militares brasileiros, de constituir uma base industrial avançada no país, apoiada pelos institutos criados por iniciativa do governo, o ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e o CTA (Centro Tecnológico da Aeronáutica), ambos no estado de São Paulo (um excelente artigo sobre a história da indústria aeronáutica brasileira, aqui).

Essa linha ainda é perfeitamente discernível no país, embora tenha tido avanços e recuos, ao longo do tempo. Funciona segundo uma política de manter “ilhas de excelência” (o ITA, o CTA, o IME, os institutos de física teórica e engenharia das universidades federais e estaduais e algumas indústrias subsidiadas pelo governo federal, como a EMBRAER, Mectron e Avibrás) capazes de conceituar e implementar projetos inovativos e desenvolver tais projetos para mercado. Essa política pode parecer ideal para um país de desenvolvimento tardio e dependente, mas tem a desvantagem de subordinar-se aos humores do Estado e estar à mercê das crises econômicas e políticas.

 Entretanto, nos últimos anos, desde a “privatização” da Embraer (entre aspas visto serem os donos da empresa, principalmente, fundos de pensão de grandes estatais), o ramo tem mostrado novo fôlego, voltado para o mercado internacional de aviação civil e para projetos que ofereçam certa segurança de encontrar mercado. Do ponto de vista econômico, não deixa de ser uma política sensata, dada a alta competitividade que caracteriza essa área, no mundo inteiro. Por outro lado, tal política compromete os projetos exclusivamente militares e talvez explique o fato de que, desde o fim dos governos militares e do projeto binacional AM-X, as autoridades parecem ter desistido de projetos militares avançados, já que o Tucano e seu derivado, o projeto AL-X (“aeronave de ataque leve”, o Super Tucano) não são aeronaves militares tecnologicamente “topo de linha” – e sua maior qualidade reside exatamente neste ponto.

Já os projetos para a força terrestre e para a marinha são ainda mais complicados, por dependerem quase exclusivamente de investimento estatal, inclusive no que diz respeito à indústria e ao mercado. Nos anos 1990, o Brasil desistiu da estratégia de ser um player no mercado internacional de armamento barato e rústico, adequado a cenários de baixa tecnologia e baixa intensidade. Depois de chegar, durante alguns anos, entre as décadas de 1970 e 1980, a ser um dos maiores exportadores de armamento do Ocidente, nosso país, surpreendentemente abriu mão dessa posição e deixou o parque industrial de defesa definhar até praticamente desaparecer.

Algum dia, alguém vai escrever um “livraço” (quem sabe eletrônico…) sobre essa fase da política de defesa de nosso país. Atualmente, algumas pistas podem ser encontradas dispersas pela Internet. E esse “livraço” certamente terá alguns capítulos dedicados à algumas empresas, dentre elas – e talvez principalmente –, a Engesa e a Avibrás. Foi uma fase em que a presença brasileira no mercado internacional de armas foi brilhante, e chegou a gerar alguns bilhões de dólares em recursos trazidos do mercado internacional, o que não é pouca coisa, diante do panorama de crise da época. Não deixa de ser interessante a observação (embora, em minha opinião, incompleta por ignorar o pano-de-fundo político) do engenheiro Reginaldo Bacchi: “Os prejuízos contabilizados com o final da história [da Engesa e do desenvolvimento do MBT EET1 “Osório”]foram irrecuperáveis. Uma empresa detentora de tecnologia de ponta e mão-de-obra de altíssimo nível, capaz de fazer um trabalho excepcional, como o Osório (no qual investiu tudo), acabaria liquidada. A indústria ainda chegou a receber ajuda financeira do governo, por conta de contractos que tinha com a Força Terrestre. Mas, nessa altura, o volume das suas dívidas era algo gigantesco e só um contrato como o pretendido com a Arábia Saudita a salvaria da falência. Com o fim da ENGESA, o Exército Brasileiro ficou sem um carro de combate nacional comparável aos melhores existentes lá fora. Havia, inclusive, entendimentos para um acréscimo de 10% no preço final do veículo para que, a cada dez unidades exportadas para os sauditas, uma pudesse ser financiada para o Brasil, hoje um país importador de blindados em segunda mão.” (a íntegra do artigo aqui). O que é notável, apesar do que diz Bacchi, um grande especialista no assunto, é a absoluta falta de apoio do governo, que se recusava inclusive a comprar os produtos da indústria nacional.  Talvez tenha sido este o motivo mais objetivo para a quebra do parque industrial de defesa, mas não só: a partir dos anos 1990, a um certo afã de conseguir lugar de agente ativo na comunidade de nações ocidentais também colaborou, e muito. Essa participação era buscada com a política de alinhamento, adotada desde o governo Collor, e que chegou ao ponto culminante com a “autonomia pela participação”, base da política externa do período FHC. Esse tipo de política implicava em que o país não faria nada que pudesse representar qualquer possibilidade de atrito com os EUA e com as nações do “Primeiro Mundo” – ainda que essa política representasse abrir mão de certos aspectos da soberania nacional (um artigo sobre o tema aqui mesmo, no causa::).

A reestruturação econômica iniciada no governo-tampão de Itamar Franco e levada ao limite durante os mandatos FHC também cobrou seu preço. E, para falar nesse assunto, nada melhor do que dar uma espiada no processo de renovação do equipamento da FAB.  Para começar, voltemos ao “projeto Fênix”. Trata-se de um programa bastante representativo sobre o que os intelectuais ligados aos governo FHC pensavam das FAs: muitas vezes, pareciam achar (e provavelmente achavam mesmo…) que o país não precisava delas.

Entretanto, o estado em que as forças militares se encontravam em meados dos anos 1980 (a época da redemocratização) não era propriamente produto de uma “conspiração contra os militares” ou do “revanchismo da esquerda”, coisas de que se falava com certa constância, mas que nada tinham com o assunto “defesa”. Dos motivos de fato, o principal era a aparentemente interminável crise econômica – num país tido como “pacífico”, com um povo “cordial”, forças e equipamentos militares parecem (ainda hoje) ter como única utilidade desfilar em paradas e, assim, são sempre relegados ao último plano; também ajudou a política de alinhamento automático com os EUA, da época da Guerra Fria, e que persistiu particularmente nos governos Collor e FHC. A falta de uma estratégia geral de defesa elaborada tendo em conta os objetivos nacionais parece ter decorrido daí. Por volta do ano 2000, um documento elaborado pela MB falava claramente que conflitos internacionais eram “pouco prováveis”. Esse estudo chegou a admitir que a MB não teria capacidade sequer para intervir com sucesso em um conflito regional convencional e teria dificuldades em um conflito limitado, como por exemplo, incursões extraterritoriais de pequena escala ou que envolvessem intervenções contra guerra de guerrilhas. O problema, para a MB, como para as outras forças singulares, era, como sempre, de custos (mais sobre o assunto, aqui).

O programa “Fênix” parecia ser influenciado por todos esses desvios, e a mais outros. Era milionário, envolvia saltos tecnológicos consideráveis, mas estava longe de resolver os problemas da FAB – parecia que sequer era levado muito a sério pelo governo e era ignorado pela sociedade. A projeção de orçamento da época gerou muita ironia: o então comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro-do-ar Carlos de Almeida Baptista, afirmou que a “sociedade” (o Palácio do Planalto – a frase tinha como motivo o fato de que o governo sempre respondia aos pedidos de verbas da corporação com a afirmação de que o assunto deveria ser debatido com “a sociedade”) deveria decidir logo se a FAB devia acabar de vez ou se modernizar. FHC respondeu de forma surpreendente (visto em retrospectiva, talvez nem tanto…): assinou um “Programa de Reaparelhamento da Força Aérea”, avaliado em 3,4 bilhões de dólares, para ser implementado ao longo de oito anos (2000-2007). No dia seguinte, comunicou ao Ministério da Defesa o valor sofreria cortes. Até mesmo o orçamento anual foi contingenciado.

A partir de então, programas setoriais começaram a ser implementados – e frequentemente sofriam descontinuidade: CL-X (aenonaves de transporte, completado com a aquisição de 12 unidades do excelente transporte tático CASA C-105 “Amazonas”), P-X (patrulhamento marítimo, que resultou na aquisição de 12 unidades do Lockheed P3, que até hoje gera controvérsias), F-X (este todo mundo sabe o que é… Um exercício interessante é tentar ler este artigo de causa:: e depois compará-lo com este excelente estudo especializado). Algum apoio à indústria nacional também era dado através da estatal financiadora FINEP. Entretanto, a obsolescência dos meios tornava-se uma ameaça concreta à capacidade da FAB em cumprir sua missão constitucional, como continua sendo. Mas de alguns anos para cá, já é possível observar algumas mudanças significativas de procedimento do governo.

A primeira e mais geral dessas mudanças tem relação com o advento da END, que cria um contexto potencialmente favorável para o desenvolvimento das FAs nacionais; também deve se levar em consideração que os tempos são diferentes, e o ambiente democrático consolidado coloca os militares em outro patamar de profissionalização e participação na vida do país. É neste sentido que a END fornece uma base doutrinária razoável, sobre a qual podem se desenvolver as matrizes estratégicas específicas e as ações necessárias.

Dessas matrizes, a parceria com a França está dentre as mais significativas. Primeiro porque os franceses nunca foram atores totalmente adaptados ao roteiro estabelecido pelos diretores norte-americanos, e já chegaram, nos anos 1960, a romper com a NATO. A França, desde os anos 1950, sempre deixou clara a intenção de colocar em primeiro lugar os interesses nacionais, em detrimento inclusive da aliança européia. Apesar do contexto atualmente diverso, a alta competitividade da indústria mundial de armamento, diante de um cenário internacional diverso daquele observado na Guerra Fria, colocam a necessidade de conquistar mercados a qualquer custo. Certamente a decisão brasileira, conduzida por Lula em iniciar negociações para comprar armamento – submarinos, navios de superfície, aeronaves e helicópteros – indica a tendência brasileira em não subordinar totalmente nossa posição política aos interesses norte-americanos. E Brasil e França, ao contrário do que possa parecer, têm interesses estratégicos comuns na América Latina (se você lê um pouco de francês, esse texto aqui dá uma interessante visão do assunto).

Lula parece disposto a tirar proveito desse quadro para conquistar algumas vantagens estratégicas, tendo em tela as diretrizes da END. A preferência pela compra aos franceses, deverá, finalmente, dotar a FAB de 36 aeronaves de primeira linha: os Dassault Rafale F-3.

A questão, que se arrasta desde o final da década de 1990, vai ter de ser resolvida no próximo ano, em função de questões políticas. As militares já são bem conhecidas: a defesa aérea brasileira baseia-se, no momento, em vetores totalmente defasados. Um número insuficiente de interceptadores Mirage 2000 C, comprados de segunda mão da França, cuja vida útil está no final, e aproximadamente 60 aeronaves F5E, que passaram, nos últimos anos, por um programa de modernização totalmente elaborado pela indústria aeronáutica nacional, com apoio da indústria israelense. Embora o programa, que gerou aeronaves que passaram a ser denominadas F5EMBR, tenha sido considerado muito bem sucedido, é uma solução de transição imaginada pelo comando da Aeronáutica ainda nos anos 1990, em função do estado dos meios da força.

O compromisso francês de transferência plena de tecnologia aeronáutica de ponta é, nesse sentido, um dos principais aspectos, senão o principal, do acordo. Este, se bem conduzido, pode tornar o Brasil praticamente autônomo na construção de aeronaves de última geração e uma espécie de sócio preferencial dos franceses na venda de produtos aeronáuticos para a América do Sul – embora dificilmente o país tenha condições de desenvolver um projeto próprio nos próximos 20 anos. Talvez a demora da resolução da negociação tenha como explicação o fato de que dificilmente a França transferiria toda a tecnologia, e as iniciativas brasileiras, uma vez fechado o acordo, têm de estar minimamente articulada aos interesses franceses .

A história é mais-ou-menos conhecida desde 2009, quando brasileiros e franceses fecharam a parceria para a construção dos submarinos (assunto amplamente discutido aqui no causa::). A venda dos caças é ainda mais importante, para consolidar a presença da aeronave francesa no mercado internacional. Em função deste objetivo, e para conquistar o mercado brasileiro (fala-se na aquisição, nos próximos dez anos, de outras 36 unidades – ou mais), é que o governo francês estaria disposto a autorizar a transferência de tecnologia. A Dassault se juntaria a uma empresa brasileira (certamente a EMBRAER, da qual é sócia minoritária) para capacitar a indústria local a fabricar algo em torno de sessenta por cento da aeronave. Parece pouco? Não é – no longo prazo, esse processo tornaria a indústria nacional apta a projetar aeronaves militares de alta tecnologia. 

Diante do pacote de bondades francês, o governo brasileiro aventou a possibilidade de que a preferência, no caso do programa FX-2, fosse dada também a eles. As outras empresas envolvidas na fase final da concorrência, a norte-americana Boeing e a sueca Saab reagiram.  A empresa de Seattle oferecia o Fa-18 Super Hornet, uma aeronave excelente e ainda por cima bem mais barata que o Rafale. O FA-18 tem a vantagem adicional de ser totalmente operacional e já com experiência de utilização em cenários de combate, inclusive no que diz respeito ao armamento e sistemas embarcados. O Rafale, apesar de estar em operação na Armée de l`Air (Força Aérea Francesa) e Aeronavale (Arma Aérea da Esquadra Francesa) , ainda se encontra  em desenvolvimento – o que pode ser uma vantagem, visto que é quase uma promessa de vida operacional prolongada.

Os americanos, diante de um contrato desse tamanho, cederiam tecnologia de ponta ao Brasil, que pinta como concorrente regional, nos próximos anos?  Meses atrás, o presidente da Boeing declarou à imprensa brasileira que o Congresso americano teria autorizado a transferência de tecnologia quase sem restrições. Os atritos recentes com o governo dos EUA e experiências anteriores fazem os brasileiros torcerem o nariz para as promessas dos EUA. No início de 2005, quando o programa F-X estava quase sendo arquivado pelo governo, e falava-se na aquisição de aeronaves usadas, circulou a notícia, nunca confirmada, de que o governo norte-americano teria oferecendo à Brasilia a aquisição de dezenas de caças F-16A usados, dos estoques da USAF, e um projeto de modernização de meia-vida (MLU), que lhes daria a configuração de um F-16C Block 50. Falou-se inclusive na montagem de uma planta industrial no Brasil, em associação com empresas nacionais. O problema teriam sido as restrições quanto a mísseis BVR (beyond visual range – de longo alcance), fornecimento de códigos-fonte dos softwares embarcados e restrições à incorporação de sistemas de outras origens que não os EUA.

Os suecos apresentavam o Gripen NG (de Next Generation), desenvolvimento do JAS-39 Gripen, aeronave projetada para o teatro norte-europeu (os suecos não se envolvem, por lei, em conflitos estrangeiros). Com as dificuldades em colocar a aeronave no mercado, uma versão pensada para outros cenários, muito melhorada, foi concebida. O problema é que boa parte dos sistemas – inclusive o radar multimodo – ainda está em desenvolvimento (o que, como foi dito, pode ser uma vantagem). Mas o Gripen apresenta uma dificuldade adicional: o projeto incorpora grande quantidade de componentes projetados pela indústria militar dos EUA, principalmente a planta de potência, o turbofan Volvo Aero RM12, versão fabricada sob licença do General Eletric F414-400. Os norte-americanos nunca foram pródigos em ceder tecnologia de uso militar a outros países, mesmo países europeus, o que significa que a tecnologia originada lá deve estar amarrada por acordos de restrição.

Em ambos os casos, existe então a grande possibilidade de que a FAB acabe tendo de comprar uma “caixa-preta”. Uma solução desse tipo não interessa em nada ao Brasil, e seria totalmente lesiva a nossos interesses. A FAB vem desenvolvendo, com recursos próprios e algum apoio israelense, um sistema de enlace de dados (datalink) tático denominado SISCENDA (Sistema de Comunicações por Enlaces Digitais da Aeronáutica), que será compatível, futuramente, com sistemas semelhantes da MB e do EB. Para adaptação aos padrões dos sistemas de origem estrangeira, é preciso que os códigos-fontes dos softwares dos sistemas de bordo sejam cedidos junto com a aeronave – e isso os norte-americanos não farão de jeito nenhum. A adaptação teria de ser feita por técnicos dos EUA – o que nos colocaria diante de outro “projeto SIVAM”, só que piorado. Também existe o míssil ar-ar que está sendo desenvolvido em parceria com a África do Sul, e que certamente terá de funcionar com o novo caça. Aí a situação talvez ficasse ainda pior, por envolver um terceiro país – é muito pouco provável que a África do Sul esteja disposta a entregar seus segredos industriais e militares aos EUA.

Este é o panorama geral. É muito provável que os pilotos brasileiros, considerados entre os melhores em atividade, estejam, por volta de 2014, pilotando uma aeronave topo de linha. É possível que, nessa época, ou pouco depois, o governo brasileiro se decida a comprar mais outro lote, principalmente se a capacitação da indústria brasileira de material aeronáutico funcionar a contento. Ao lado de outros equipamentos militares de ponta, e doutrinas adequadas ao uso, é possível que o país esteja, afinal, dotado de forças armadas capazes de enfrentar possíveis necessidades de defesa do território, do espaço aéreo e dos interesses nacionais. Parece que teremos, a curto prazo, um futuro excitante. Mas… Sabe-se lá…::

causa:: volta ao ponto::Como poderá ser a política de Defesa do próximo governo?::parte2::

Como será a política de Defesa do próximo governo? Boa pergunta. Para responde-la, acho que temos de considerar, como feito na parte 1, que uma política de Defesa tem que se basear no que são considerados os interesses nacionais, num determinado momento, e como a visão desses interesses muda segundo uma série de fatores, e pode gerar equívocos de não-pequenas consequências. Em certo momento, “tudo que é bom para os EUA é bom para o Brasil”. Refletiram os assíduos sobre esta frase lapidar, emitida por um dos campeões da “Revolução” de 1964?  Vamos então à mais considerações sobre o tema…::

parte2A querela do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, contra o pano-de-fundo de uma tentativa (frustrada) dos EUA se reinventarem como líder do “mundo livre” acabou mostrando que essa máxima estava desatualizada. Pareceu então claro, naquele momento, que os interesses nacionais brasileiros estavam em pólo oposto aos interesses nacionais dos EUA. Uma das heranças dessa disputa foi um programa nuclear civil, de resultados discutíveis e uma versão menor, militar, mantida, por razões óbvias, em segredo de estado. Objetivo? Óbvio – construir um artefato nuclear de pequena potência. Alvos para esse artefato? Não haviam propriamente alvos, porque, depois da Guerra da Coréia, ninguém pensa seriamente em detonar bombas atômicas (bem, tirante, talvez os iranianos, mas essa é outra história, que não cabe aqui). Os argentinos, que também chegaram a desenvolver um programa desses, e que tinham diferenças estratégicas consideráveis com o Brasil, eram vagamente citados. O fato é que a bomba brasileira era vista mais como possível instrumento político do que propriamente como arma militar – até porque uma coisa é construir um artefato nuclear e outra, muito diferente, é conseguir meios eficazes de lançá-lo. A bomba A é uma arma estratégica, por excelência. Só foi usada uma vez, como consequência de consideraões políticas e estratégicas. Na época (o decênio entre os meados anos 1970 e 1980), artefatos nucleares plantados no nariz dos ICBMs que os transportariam até os alvos eram parte de um jogo político pesado. Segundo alguns analistas, os militares brasileiros não queriam ter uma bomba, mas indicar ao mundo que podiam fazer uma.

O programa nuclear militar foi desmontado no governo Collor, sem que esse recuo tivesse significado alguma vantagem de fato para o país, na arena internacional. Em 1998, durante o governo FHC, a adesão brasileira ao Tratado de Não-proliferação Nuclear (TNP) é outra decisão considerada controversa, no sentido de se saber se foi uma decisão acertada, mesmo que se leve em conta a posição pacífica do país na arena internacional. A manutenção de programas bastante reduzidos de pesquisa nuclear visava prover o país de conhecimento científico capaz de prover certa autonomia, em caso de necessidade. A adesão ao TNP, embora deva ser considerada uma política legítima, pareceu ter visado, desde Collor, a busca por compensações econômicas (por exemplo, tratamento preferencial por parte do sistema financeiro internacional), e com FHC, aquilo que Celso Laffer chamou “autonomia pela participação”, ou seja, a inserção brasileira no sistema internacional de segurança, sob comando dos EUA (um bom artigo sobre o tema, aqui). Os críticos da decisão apontam para o fato de estar, a partir da 1998,  condicionado o país a não desenvolver armas nucleares, mas também a um grau bastante alto de ingerência externa em nossos assuntos – e essas críticas parecem fazer algum sentido, visto as pressões sofridas pelo programa de enriquecimento de urânio e de aperfeiçoamento de um reator naval. Os críticos chama a atenção para o fato de que o TNP é um acordo internacional que perpetua a assimetria, não apenas militar, mas científica e econômica, com o controle exercido sobre os países não-nucleares correspondendo aos interesses dos países do Conselho de Segurança da ONU – exatamente aqueles que, “legitimamente”, mantêm estoques de explosivo nuclear.

Por sinal, muitas das políticas conduzidas pelo governo FHC pareciam indicar uma opinião interna de que o país não precisava de forças armadas, e que essas deveriam funcionar mais como provedoras da manutenção da integridade territorial – sem que isso significasse capacitação de métodos e recursos.

O problema da FAB parece decorrer dessas política. Tomemos um dos programas de maior amplitude, vindo desde o governo FHC, como desdobramento de políticas de Estado originadas nos anos 1970 – o projeto SIVAM (acrônimo de “Sistema de Vigilância da Amazônia”). Trata-se de um história muito interessante, por mostrar que a falta de políticas consistentes pode acabar comprometendo todas as políticas, mesmo as que não existem ainda. Falamos agora do programa FX-2 (que, no andor do santo, periga virar FX-3).

Desde o governo FHC o reequipamento da FAB tem sido conduzido aos soluços, determinado por fatores um tanto difíceis de entender, mesmo diante da obsolescência de equipamentos considerados vitais – problema que, como veremos adiante, vem desde os anos 1980. De fato, sejamos justos – o problema se estende a todas as forças. No caso da Força Aérea, a coisa fica mais evidente em função do jogo pesado das grandes empresas, que dependem (talvez com a exceção dos EUA, da Alemanha e – por incrível que possa parecer – da Rússia) de vendas externas para consolidar a viabilidade de seus programas de defesa. A indústria aeroespacial implica em enorme aporte de investimentos, pois é atividade que agrega tecnologia de forma capilar, alcançando centenas de ramos altamente especializados da cadeia produtiva, com grau relativamente lento e baixo de retorno. Por exemplo: a pesquisa de materiais para a indústria aeroespacial implica em resultados que se aplicarão apenas à indústria aeroespacial (por exemplo, as “peles” de titânio e células cerâmicas usadas em aviões de combate servem, no máximo, para aeronaves orbitais e satélites). A indústria naval, em comparação à aeroespacial, ainda é uma indústria de aporte tecnológico baixo, cujos métodos remetem à primeira metade do século 20. Belonaves e os sistemas que vetoram evoluem mais lentamente – muito embora isto não queira dizer que se trate de tecnologia simples, barata ou fácil de conseguir – vide o caso dos submarinos (aqui, aqui e aqui… mesmo, no causa::).

Assim, os investimentos feitos na indústria aeronáutica, como, de modo geral, os investimentos em Defesa, são em boa parte, políticas de Estado (um ótimo exemplo dos resultados dessas políticas, quando bem planejadas e conduzidas, aqui). O Estado estabelece as prioridades, levanta e distribuí os recursos e supervisiona os resultados, pois a organização industrial de caráter capitalista tem cada vez menos capacidade de bancar sozinha o desenvolvimento continuado de tecnologias de ponta. Basta observar o projeto KC390: só decolou de fato quando o governo federal o comprou – literalmente – da EMBRAER. A partir dessa mudança de rumo, acontecida em abril de 2009, puderam ser negociadas, com maior desenvoltura e tranqüilidade parcerias internacionais que ampliaram as possibilidades de aporte de recursos e tecnologia ao projeto.

O projeto KC390 é uma iniciativa que colocará nossa indústria de defesa em novo patamar. Trata-se de um produto militar baseado na cadeia tecnológica e industrial iniciada a partir da decisão, tomada em meados dos anos 1970, de substituir as aeronaves de ataque disponíveis da FAB – os chamados “caças táticos” (um ótimo artigo sobre o tema, aqui). Pode-se dizer que as origens da pujante indústria aeroespacial brasileira atual se encontram nessa iniciativa, que foi ponto de convergência de diversas outras, tomadas desde os anos 1950.

É interessante observar como funcionavam os programas de reaparelhamento das FA, no período FHC – o mais próximo que pudemos encontrar de uma “política de defesa”. Ao invés de diretrizes conceituais gerais para cada uma das forças, com um orçamento proposto e projeção de realização de médio e longo prazos – metodologia herdada do período militar –, passaram a ser estabelecidos programas específicos a partir de um programa geral, com orçamentos “de fantasia” e prazos “estimados” – ou seja, com a realização lançada às calendas gregas. Na Marinha, discutia-se ora a adequação de projetar navios com base na aquisição e adaptação de projetos estrangeiros, ora em aquisições “de oportunidade” de navios de “segunda mão”; para o EB, debates intermináveis sobre “o caráter da guerra moderna” e do “papel das forças armadas num regime democrático” resultaram em discussões conceituais ridículas (como o uso dos efetivos do EB como polícia e o aumento da idade para passagem dos oficiais de carreira à reserva remunerada) e decepcionantes aquisições de equipamento desativado, baseadas em considerações estapafúrdias, como a compra simultânea de dois tipos de blindados pesados, ignorando totalmente os aspectos da cadeia operacional e logística.

Deve-se admitir que a situação já era meio confusa desde o final do governo Sarney – quando a crise econômica e o contexto internacional provocaram, dentre outras conseqüências, a quase extinção da indústria nacional de defesa. Tornou-se ainda mais confusa no governo Lula, com a interrupção “para exame e avaliação”, dos programas iniciados durante o período FHC.  No caso da FAB, o Programa de Reaparelhamento era uma versão atualizada de um programa elaborado em 1996 e denominado (de modo um tanto irônico) de “Fênix”.

Nesse plano, era prevista a aquisição de aernaves novas e principalmente (claro…), de segunda mão, que seriam modernizadas. Na prática, o “Fênix” ao invés de “reviver”, botou fogo nos projetos da FAB – apenas um contrato, já em andamento foi mantido: a atualização de algumas dos cargueiros Hércules para o padrão C-130H e aquisição de outras dez “células” de segunda mão (“mas em excelente estado de conservação”), da Itália. Os C-130, usados em transportes pesado não realizados pela aviação comercial, eram muito necessários em função das demandas geradas pelo programa “menina dos olhos” do governo FHC: o SIVAM (Sistema de Vigilância da Amazônia), iniciado em 1997. Tratava-se de uma atualização, extremamente necessária, do sistema de controle do espaço aéreo, que, no Brasil, entrou na “idade moderna” com a implantação do projeto “DACTA” (Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo), implantado a partir de 1972 com base em equipamentos franceses (o chamado “CINDACTA” – sendo o “CIN” acrônimo de “controle integrado”). Esse projeto, extremamente ambicioso, visava, no período de 20 anos, colocar todo o espaço aéreo sob vigilância e controle, capaz monitorar todo o tráfego aéreo e acionar providências militares sempre que necessário, inclusive contra a violação do espaço aéreo nacional, aí incluídas as tais “águas territoriais” (sobre o tema, causa:: recomenda a leitura deste excelente artigo, publicado na não menos excelente revista da UNIFA). O problema é que os dois CINDACTAS projetados não cobriam a Amazônia, que, na época do regime militar, não era vista como prioridade estratégica. O CINDACTA I foi ativado em 1973, e abrangia apenas parte do espaço aéreo – um quadrilátero que abrangia partes das regiões Sudeste e Centro-Oeste; em 1985 foi ativado o CINDACTA II, abrangendo a Região Sul e em 1988, o CINDACTA III, com base em Recife, desdobramento de oportunidade do projeto do segundo sistema. A discussão sobre a importância estratégica, para o país, da região amazônica e das fronteiras internacionais correspondentes começou a tomar corpo a partir de 1980/85, quando se constatou que o espaço aéreo de uma área de três milhões de quilômetros quadrados era “um branco”. Tomou força com o aumento do interesse internacional sobre a região, motivado por questões ecológicas  – e, aparentemente, um “troll” alimentado pela imprensa internacional e entusiasticamente replicado pela imprensa nacional. Só que as correntes de opinião interna, aparte o fato de concordarem com a opinião geral sobre a importância da região, não pareciam saber direito o que fazer com ela.

Em 1986 apareceu o primeiro projeto para intervenção sobre a região, o “Calha Norte”. Este projeto destinava-se a controlar de forma mais ativa os cerca de 6.000 quilômetros de fronteiras do norte do país. A idéia era a intensificação da presença das FAs, da Funai e da Polícia Federal na região, tomando como base territorial os afluentes a norte dos rios Amazonas e Solimões (daí o nome “Calha Norte”).

O “Calha Norte” levou o EB a olhar com cuidado uma região que nunca tinha estado em seu horizonte operacional – embora já estivessem disponíveis, desde os anos 1960, doutrina, pessoal, recursos e equipamentos de guerra na selva, embora criados para fins de contra-insurgência. As primeiras providências, com a instalação de “Pelotões de Fronteira”, mostraram a profundidade do problema, mas o projeto “Calha Norte” e a colocação da Amazônia no centro do planejamento estratégico de Estado estão na origem da Estratégia de Defesa Nacional.

Já o SIVAM decorreu da constatação das enormes deficiências no que tange ao controle da região. Começou a ser concebido em 1990, sob responsabilidade da então Secretaria de Assuntos Estratégicos, e tornou-se operacional em 1997. A SAE, formada basicamente pelos recursos herdados do SNI, constatou a necessidade de um sistema continuado de vigilância e proteção territorial que marcasse a presença do Estado e de seus agentes na região. Mas, curiosamente, o exame de programas realizados até então de levantamento de dados levou também à constatação da baixa confiabilidade dos dados sobre a Amazônia. Baseado no que existia, até mesmo um planejamento de médio prazo era impossível, quanto mais de longo. O mais surpreendente (e até hoje se discute como isso aconteceu…) é que a própria Secretaria concluiu que o sistema não poderia ser exclusivamente militar, mas deveria integrar as agências que levantassem e utilizassem informações sobre a região. Sugeriu um projeto amplo, abrangendo os ministérios da Justiça, Meio Ambiente, Saúde, Transporte e Ciência e Tecnologia, além das FAs.

O projeto foi recebido com certo entusiasmo e muita controvérsia. Sua concepção final parecia não levar em conta o aspecto de integração intergovernamental levantado pela SAE nos anos anteriores. Não parecia considerar as demandas apresentadas e a dinâmica de trabalho apresentados pelos órgãos envolvidos, por adotar uma estratégia centralizadora e concentradora. Essa opção chegava a desconsiderar os resultados obtidos em duas décadas de programas realizados por diversas instituições brasileiras responsáveis por prover informações científicas e técnicas (tipo a Embrapa, o IBGE, a Sudam e o Ibama) pondo de lado como “ineficazes” as ferramentas de sensoriamento e computacionais para obtenção e tratamento da informação – como projeto RADAM (Radar da Amazônia).

A questão está dentro da concepção estratégica adotada pelo governo FHC, em sua decisão de fazer o país aderir ao “Ocidente”: as instituições nacionais abririam mão dos próprios recursos, tornando-se operadoras de sistemas exógenos (e pior – controlados do exterior) de processamento e armazenamento de dados, em certos casos recomeçando o que já estava sendo feito. Além disso, a concepção de infra-estrutura adotada pelo SIVAM trabalhava com “caixas pretas” de requisitos feitos por empresas européias e norte-americanas, a serem atendidos pelas instituições brasileiras, que passavam a ser tratadas como “usuários”. Ou seja: cientistas e engenheiros com conhecimentos discutíveis sobre a região e mesmo sobre o país, isolados nos EUA ou na França, desenvolveriam soluções que atendessem aos problemas estratégicos e ambientais da Amazônia. Por fim, um dos conceitos mais estapafúrdios: a pressuposição de que a tecnologia de sensoriamento e monitoramento responderia questões relativas a biodiversidade e poluição dos rios na região (por exemplo), quando estava sendo pensada apenas para resolver questões de caráter militar e de segurança – aquelas colocadas desde o planejamento inicial do Calha Norte.

Um dos pontos “interessantes” dessa história toda, e que coloca o SIVAM dentro da concepção política da época é o caso Raytheon – vale à pena das uma olhadinha nele.

A Raytheon é uma mega-empresa bem conhecida no ramo: “sistemas eletrônicos de defesa”. Em 1995 foi divulgada informação, pelo Parlamento Europeu, que empresas norte-americanas teriam se valido de recursos de espionagem industrial superar grupos europeus em concorrências. Entre essas empresas estava a Raytheon, considerada na ponta da disputa, com a francesa Thomson CSF. O objetivo? A infra-estrutura do SIVAM. O governo norte-americano teria colocodo recursos militares (satélites de reconhecimento e estações de escuta, capazes, em conjunto, de interceptar comunicações eletrônicas nacionais e internacionais). A denúncia foi reforçada pela imprensa, que divulgou gravações de conversas, feitas pela Polícia Federal, entre o representante da Raytheon no Brasil e um funcionário público brasileiro, supostamente encarregado de transferir informações privilegiadas para a empresa dos EUA. O episódio gerou a instalação de uma CPI, que acabou arquivada em junho de 2002 por “falta de provas”. O relatório do voto em separado do deputado petista Arlindo Chinaglia foi um primor: “Há questões que a CPI deixou de analisar, como os indícios de que o projeto não leva em conta os interesses nacionais”.

O fato é que a implantação do SIVAM mostrou as deficiências da FAB. A questão dos cargueiros militares é uma delas; a necessidade de aeronaves de comando e controle, outra; a inexistência de aeronaves adequadas a tarefas de interceptação de aeronaves não-autorizadas, mais outra; a necessidade de helicópteros militares para intervenções de deslocamento rápido, mais outra. Uma “amazônia de problemas”, dos quais o controle do espaço aéreo era apenas um aspecto. Continuaremos o assunto, que, à esta altura, já deve estar divertindo os assíduos…::

Drops para o fim de semana::Declínio?.. Provavelmente…

Seção 8ª das Normas de uso do Pavilhão dos EUA: "O pavilhão nacional nunca deverá ser hasteado com o campo da união para baixo, a não ser em casos de séria desgraça ou em que as vidas e propriedades se encontrem sob grave ameaça."

O redator:: tem andado bastante assoberbado, de modo que o blogue das boas causas passa por mais um período de vacas magras. Entretanto, para não perder a simpatia dos oito ou nove leitores, causa:: publica um texto bastante interessante, pirateado (estamos na Grande Rede, afinal…) do Washington Post (quem manda eles disponibilizarem a edição completa?..). Foi publicado na coluna, assinada pelo jornalista Robert McCartney, no domingo, 4 de julho. Para quem não lembra, é o feriadão em que os norte-americanos comemoraram 244 anos da fundação do país, o Independence Day. O texto de McCartney chama atenção pelo pessimismo intrínseco, mas também pela dose de auto-indulgência que vaza por todas as letras. Por algum motivo, a conclusão lembrou ao redator:: a cena final do filme “O franco-atirador”, de Michael Cimino – um grande filme sobre a história recente dos EUA. O que uma coisa pode ter com a outra? Bem… Leiam o texto, vejam o filme. Para a parte, “leiam o texto”, aqui vai uma tradução (possivelmente capenga…) feita às pressas pelo próprio redator. causa:: pede, pois a indulgência de seus cultíssimos e cosmopolitas leitores::

O país está em declínio? Provavelmente, mas um salto adiante é possível.

O feriado nacional mais patriótico (o da independência) me trouxe uma pergunta: os EUA estão em declínio? Não estou sozinho nessa divagação. Gastaria uma semana para ler todos os livros e artigos sobre o tema, publicados nos últimos anos. Muitos comparam nossa sociedade ao Império Romano. O título de um livro expõe o tema de forma resumida: Nós somos Roma?” (Nota do redator:: – fui procurar esse livro e até pensei em comprar, mas… Tenho melhores usos para 32 dólares. Para quem tiver curiosidade – e paciência para ler em inglês, uma resenha aqui)

É uma situação incomum para os americanos. A história do país tem sido, em geral, de expansão e ascendênc. Após a Segunda Guerra Mundial, éramos uma superpotência; quando a URSS entrou em colapso, nos tornamos a única superpotência.

Três fatos explicam nosso tropeço. Um é a ascensão da China, vista como um concorrente para nos substituir no topo. Outro é a crise de 2008, que prejudicou a confiança no nosso modelo de economia de livre mercado. O terceiro é a percepção de que o país não é capaz de lidar com seus maires desafios: déficit orçametário, desemprego, vício em petróleo, imigração e deterioração da infraestrutura.

Para responder é necessário dividir a pergunta em duas partes. Estamos em declínio em relação a outros países? E estamos em declínio em termos absolutos?

Em força militar, por exemplo, os EUA estão inquestionavelmente no topo. Nossos gastos excedem o dos dez países que mais investem em defesa e nossa tecnologia não tem igual.

O governo Bush nos custou a boa vontade no exterior. Também complica quando uma instituição amerinana, Wall Street, era o principal acusado no pior desmoronamento financeiro global em sete décadas.

Pelo lado bom, Barack Obama é bem visto no exterior. A democracia e a liberdade americana ainda inspiram estrangeiros. A cultura popular americana, de Hollywood ao Facebook ainda é dominante.

Um campo em que perdemos espaço foi na economia. Em parte porque o restante do mundo, especialmente a Ásia, está nos alcançando. O problema é que a ecnomia global é desequilibrada. A globalização, que defendemos, levou à exportção de milhões de empregos americanos. Isso significa que estamos administrando déficits comerciais. O país está dividido entre duas escolhas dolorosas> Devemos gastar mais para combater o desemprego? Ou devemos conter o déficit do governo?

Essas incertezas levam à outra metade da da questão: estamos em declínio em termos absolutos? A nossa cultura política está tão emperrada qie somos incapazes de lidar com antigos problemas? As provas, no momento, sugerem que a resposta é “sim”. Considerando três problemas:

1. O vazamento no Golfo do Méxiconos fez lembrar de nossa dependência de petróleo, mas não há movimentos para substituir nossos hábitos energéticos.

2. Todos lamentam a violação das leis de imigração, mas nossos líderesnão chegam a um acordo que poderia fornecer a mistura de anistia gradual, sanções a empregadores e um programa de trabalhador visitante.

3. A infraestrutura está se deterioriando, de estradas a linhas de metrô. Mas a população não quer pagar mais para resolver o problema.

Na raiz do impasse está a profunda discordância entre progressistas e conservadores sobre o t amanho e o papel do governo. Para acabar com isso, é necessário um grande compromisso. Como condição para elevar os fundos públicos, os progressistas precisam mostrar que sabem usar o dinheiro sabiamente. Conservadores devem demonstrar que se preocupam com o bem comum.

Então, a resposta à pergunta: sim, os EUA estão em declínio, principalmente porque deixamos nossa economia e cultura política se deteriorarem. Mas ainda podemos reverter o quadro. Precisamos retomar a visão e a coragem do nosso primeiro governo nacional. Com isso, os EUA podem retomar a ascensão que têm experimentado desde 1776.

Muito bem… É um texto pessimista por apontar algumas questões que não têm volta. Talvez a parte política seja assunto mais do gosto de nosso colega NPTO – por sinal, o texto parece ao redator:: exemplo acabado de “na ´teoria a prática é outra”… Alguns pontos, entretanto, saltam à vista, e, já que causa:: tem bosquejado o assunto – grande estratégia – vejamos… Por exemplo, é fato que os EUA continuam a maior potência militar do planeta, e isso tão cedo não mudará. Por outro lado, desde a Segunda Guerra Mundial, não conseguem vencer guerrinhas bestas como a do Vietnam e do Afeganistão (que, se prestarmos atenção à mídia, está se configurando como mais um fiasco monumental). O estilo de guerra dos EUA é como o estilo de vida dos EUA: perdulário, dependente de combustível e pouco disposto ao sacrifício. Exércitos viciados em apoio aéreo e alta tecnologia que desaprenderam o verdadeiro espírito da guerra – quer se queira, quer não – de que falavam gente como Grant, Custer e Patton: “tripas e glória”. Parece que as “tripas” e a “glória” estão agora do outro lado, e a “alta tecnologia” serve apenas para massacrar civis, vez por outra. 

A Guerra Fria, diriam alguns… A Guerra Fria não conta. Não foi “guerra”, propriamente dita, mas um movimento de política internacional que levou os EUA ao início do ciclo de déficits que vêm até hoje, e que lhe tiraram a paz (para usar um trocadilho muito ao gosto de Wiston Churchill). A tendência à “desmaterialização” da econômia a que se refere o colunista foi um desses movimentos – tornar o capitalismo mais eficiente significou desmontar o estado de bem-estar social que vigorou nos EUA e na Europa Ocidental desde 1950. Ninguém pensou em buscar uma sociedade solidária e auto-sustentável, mas em criar condições para que o espírito de predação e autofagia pudesse novamente vigorar. O redator:: se pergunta se não estaria na capacidade do estado em suprir as necessidades de seus cidadãos, a verdadeira “força” do Ocidente, e não residiria aí sua capacidade de mobilização internacional. Explica-se, então, a incapacidade não apenas dos EUA, mas  da economia ocidental (afinal, a Europa também está virando geléia, não está?..) em lidar com o problema do modelo de expansão econômica, que implica em lidar com a questão do tal “mercado” (na verdade, o sindicato de parasitas que domina a cena política), do desemprego, das matrizes energéticas e da economia industrial. Certamente um monte de sábios resmungará, de forma complacente: não é assim tão simples. De fato, mas não significa que não hajam alternativas. Faltou, no texto incrivelmente auto-indulgente de MsCartney, pelo menos indicar que a verdadeira coragem talvez esteja em admitir que o tempo de “donos do mundo”, para os EUA, possivelmente acabou::