Estava eu inventando desculpas para não começar a trabalhar (não vivo do causa::, infelizmente, mas quem sabe um dia…), quando tive a idéia de visitar o ótimo blogue do Comandante James Bond (i.e. MBSantigo Jr), e tive a surpresa de descobrir que, mais uma vez, o Comandante mudou de endereço. Não tem problema – dentre os que conheço, ainda é o melhor redator de blogues: elegeu um objeto inusitado, os temas abordados são interessantes e sobretudo, os textos são muito bem escritos e complementados. O comandante Bond sempre gostou muito de falar de armamento, e fala bem, principalmente porque consegue a proeza de colocar bom humor num assunto que pode ser tudo, menos bem humorado. Esta característica sempre me desperta uma vontade danada de comentar os postos específicos, e, desta feita, encontrei dois deles. Não que discorde do conteúdo, mas porque fico achando que poderia, quem sabe, acrescentar alguma coisa (é inveja, mesmo – quem quiser dar uma olhada, clique aqui e aqui, leia o texto e, em seguida, vá até os comentários). O fato é que, procurando dados para complementar meus comentários, acabei dando de cara com um que achei extremamente interessnte. Pois é – passo ao assunto, com o devido reconhecimento do comandante Bond::
É fato que a União Soviética foi, durante as décadas posteriores à 2ª GM, foi a maior produtora de armas do mundo. Os EUA ficavam em segundo lugar, mas não exatamente porque abominem as armas e amem a paz, mas porque seus aliados, notadamente Inglaterra (terceirona) e Alemanha (a partir dos anos 1960, quarta, com honras), as produziam em quantidades mais do que suficientes. A URSS, ao contrário: tinha de equipar seus mais de três milhões de militares e mais de um milhão de policiais militarizados, e suprir boa parte das necessidades dos cerca de dois milhões de militares de seus aliados do Pacto de Varsóvia.
A questão é que, desde antes da guerra, os planejadores soviéticos, seguindo as diretrizes emanadas da ditadura stalinista, colocaram muita ênfase na indústria militar. Não é por outro motivo que, em 1939, os soviéticos tinham mais tanques, peças de artilharia e aeronaves do que qualquer outro país, inclusive a Alemanha. Por sinal, a Alemanha não seria termo de comparação – as FFAA soviéticas eram três vezes maiores do que as alemãs.
Foi o planejamento centralizado, implantado no final dos anos 1920, que permitiu, através do direcionamento dos recursos disponíveis, fortalecer certos ramos da produção em detrimento de outros, e certas regiões, em detrimento de outras. Numa economia capitalista, as demandas do mercado indicam para onde se voltam os investimentos e a competição determina o dinamismo econômico; numa economia socialista, os investimentos são decididos de antemão, segundo o que seriam, na opinião dos planejadores, as necessidades da sociedade como um todo. A “coletivização da agricultura”, uma espécie de reforma agrária feita à ponta de baioneta, é um exemplo radical de como funcionou essa coisa. A reorganização da agricultura liberou, em cinco anos, recursos que se encontravam presos, de forma arcaica e improdutiva, nas inumeráveis propriedades pertencentes a milhões de camponesses, que não tinham sido atingidos pela Revolução de 1917 e ainda continuavam numa economia de base capitalista e especulativa. Isso significou que terras cultiváveis, gado, fontes de água, áreas potencialmente produtoras de madeira e minerios, foram desapropriadas, e a mão-de-obra excedente, desalojada pela racionalização da produção agrícola, extrativista e minerária, foi deslocada para outros setores da produção, notadamente a indústria. Esses recursos entraram no circuito econômico repentinamente, e permitiram um notável surto econômico. Por outro lado, e ao mesmo tempo, esse processo provocou uma verdadeira epidemia de fome em regiões que, apesar da miséria endêmica, não conheciam a escassez de comida. Os “Planos Quinquenais”, que aconteceram junto a esse processo, estabeleceram metas de produção, que eram pensadas paralelamente às metas econômicas.
Deu certo? Deu: em uma década, o PIB sovietico cresceu mais de cem por cento. O dinamismo soviético impressionou até mesmo grandes capitalistas norte-americanos e europeus. Por outro lado, o Estado determinava tudo (o que mais tarde revelou-se um problema), inclusive como seriam direcionados os investimentos públicos. A guerra enfrentada entre 1918 e 1920, que envolveu inclusive a participação de tropas estrangeiras, e vencida pelo recriado Exército Vermelho, organizado por Trotsky e por alguns oficiais militares convertidos ao socialismo, convenceu os novos governantes que, antes de qualquer coisa, a URSS precisaria de armas, e que não as conseguiria do exterior. Assim, desde antes da implantação dos “Planos Quinquenais”, foi posta grande ênfase naquilo que, hoje em dia, chamamos “indústria de defesa”. Depois da 2ª GM, a URSS, com grandes planos expansionistas, não chegou a desmobilizar suas enormes FFAA, até pelo contrário. O setor militar foi reforçado, e, em decorrência disto, também outros setores relacionados, particularmente a pesquisa básica, a pesquisa aplicada, as universidades e os laboratórios especializados. A vantagem inicial soviética na corrida espacial, por exemplo, deveu-se à pesquisa desenvolvida para conseguir vetores funcionais que levassem até o território norte-americano as bombas nucleares conseguidas no início dos anos 1950. Os lançamentos de satélites e de “cosmonaves” conduzindo animais e, pouco depois, homens, deveram-se aos testes com sistemas que permitissem calcular de modo eficaz as trajetórias e pontos de impacto dos vetores, bem como monitorá-los e influir nas diversas fases do vôo. Ou seja: a corrida espacial é um produto da corrida armamentista que caracterizou a Guerra Fria. A superioridade inicial dos soviéticos devia-se a necessidades militares prementes, as quais os norte-americanos, inicialmente, pensavam não ser preocupação.
O fato é que a sociedade soviética era, bem mais que as ocidentais, uma sociedade altamente centralizada e burocratizada – quer dizer, a aplicação das decisões implicava numa capilaridade perversa (a expressão é do teórico alemão oriental Rudolf Bahro, no livro Crítica ao Sorex – Socialismo Realmente Existente). Segundo esse teórico, que conseguiu a proeza de ser dissidente nas duas Alemanhas, numa ordem dominada pelo aparato do estado e do partido, que monopoliza todo o poder, e que sufoca a vitalidade da ordem econômica e social, por sufocar a prática política, a posse dos meios de produção significou, simplesmente, seu controle pela máquina do estado. Dizendo de outra maneira, o planejamento centralizado poderia até ser eficiente para certos aspectos da organização econômica, mas não chegou a resolver certos nós da economia propriamente dita.
Um desses nós é que, no capitalismo, a competição determina o dinamismo econômico: as indústrias querem, em última análise, lucrar, e, independente das explicações teóricas, na prática isto só acontece se os produtos forem vendidos. A inovação acaba sendo fator determinante no processo como um todo, pois possibilita melhores produtos para enfrentar a competição. Na sociedade socialista, em princípio, o Estado seria o dono de tudo, o que tornaria quase desnecessária a competição. Existia, é claro, um “mercado socialista”, balizado – pelo menos segundo os teóricos socialistas – pelas reais necessidades da sociedade. Na prática, o que aconteceu, de fato, é que o “planejamento socialista” criou uma burocracia gigantesca, cuja função última era manter o poder político. Boa parte desse enorme conjunto de funcionários acabava por duplicar (quando pouco…) o trabalho das outras partes, e gerava, no processo, enorme ineficiência. Não é que faltasse recursos – estes existiam, até em boas quantidades, mas eram mal distribuídos ao paradoxo; não é que a mão de obra fosse de baixa qualidade – o problema era a política de “pleno emprego socialista”, que impedia o gerenciamento eficaz do trabalho; não é que os produtos fossem mal concebidos – o problema é que entre a prancheta e a fábrica, o processo era de tal forma complexo, confuso e desorganizado que acabava sendo mais simples colocar um satélite em órbita do que produzir bicicletas de boa qualidade.
Tudo acabava na dura realidade de que os países socialistas – URSS à frente – apesar dos feitos no campo social, não conseguiam nem chegar perto dos padrões econômicos do Ocidente, embora tivessem igualado e, em certos casos, até superado os ocidentais em áreas como a educação, as ciências puras, certos ramos da medicina, da produção agrícola, e por aí vai. Uma questão discutida até a exaustão entre os comunistas de todo o mundo era o motivo da União Soviética não conseguir igualar a qualidade de vida dos países capitalistas em coisas simples como, por exemplo, a distribuição de bens de consumo. As explicações por vezes chegavam a ser pueris – “na URSS as pessoas são mais conscientes da necessidade de fazer sacrifícios” ou “na URSS todos tem suas necessidades resolvidas, de modo que não sobra muito para os gastos conspícuos e suntuários”. O fato que não podia ser amplamente debatido é que o ambiente de liberdade não apenas incentivava a competitividade como a criatividade. No Ocidente, não eram apenas os artistas que podiam fazer o que bem entendessem, mas também os pensadores e cientistas. Na URSS, a partir do stalinismo, o estado se metia a determinar até mesmo o que era “arte socialista”, e chegaram a absurdos como tentar estabelecer a existência de uma “biologia dialética”, em oposição à uma “biologia burguesa”. O fato é que nem todo mundo se dispunha a achar aceitável o horrível “realismo socialista” ou tentar encontrar a dialética na natureza, e daí, milhões de pessoas tornavam-se pouco confiáveis aos olhos dos detentores do poder. O resultado é que o estado desconfiava de tudo e a sociedade era estritamente vigiada. Após a desestalinização da era Khrushchev (1953-1964), certas bobagens, embora não admitidas oficialmente, passaram ser toleradas, como o contrabando de músicas dos Beatles – que eram extremamente populares entre a juventude soviética -, o uso de calças blue-jeans fabricadas a partir de macacões distribuídos aos operários e a leitura de histórias em quadrinhos francesas e alemãs. Mas os aspectos falhos do socialismo não podiam ser debatidos, pois perigava de se chegar até os nós do regime, tais como o excesso de centralismo, a burocracia como entrave ao planejamento e a má organização econômica como razão para a incapacidade distributiva. A ideologia, veiculada através do aparelho de estado acabava por explicar tudo. Claro que havia ideologia na sociedade ocidental, mas esta transitava dentro de limites bem mais estreitos que na União Soviética e o amplo debate, por vezes autofágico, tornava mais difícil o controle da opinião – e da criatividade.
A ineficiência soviética manifestava-se até mesmo nas áreas do mais alto interese do estado. Um dos ramos da indústria que, internamente, era menos ineficiente era a indústria de defesa. Durante a 2ª GM, a URSS deu uma demonstração de vontade coletiva e determinação que certamente será difícil de encontrar em outros eventos, ao longo da história. Por outro lado, é sempre preciso esclarecer que, não fosse o apoio dos aliados, notadamente dos EUA, a URSS provavelmente teria sucumbido. Mas o apoio aliado se deu principalmente em termos de alimentos, matérias primas e insumos (por exemplo, enorme quantidade de gasolina de aviação e lubrificantes de vários tipos, bem como produtos químicos diversos foram cedidos à União Soviética ao longo da guerra). Os equipamentos bélicos (tanques, aeronaves, armas pesadas e individuais, munição) e outros equipamentos foram fabricados pela indústria soviética, cuja eficiência e capacidade de improvisação tornaram-se quase lendários. Terminada a guerra, as forças soviéticas tinham um efetivo de aproximadamente 15 milhões de homens e mulheres (e crianças, já que adolescentes de até 13 anos foram convocados), mas estavam também equipadas com 40.000 tanques, 80.000 veículos blindados de todos os tipos, 100.000 canhões de todos os tipos, 700.000 veículos não protegidos, cerca de 30.000 aeronaves de todos os tipos, aproximadamente 300 belonaves de primeira linha (dentre as quais 150 submarinos) e 2.000 outros navios de uso militar. Os especialistas concordam que oitenta por cento desta quantidade saiu de linhas de produção soviéticas. Outras fontes dizem que boa parte dos caminhões e outros veículos não protegidos foi também fornecida pelos EUA. O importante, no caso, é que quando as hostilidades se encerraram, praticamente os únicos setores da produção soviética que estavam plenamente organizados eram aqueles voltados para suprir as necessidades militares. Existiam instalações industriais gigantescas, organizadas segundo um processo semelhante ao fordismo, denominado “stakhanovismo“, capazes de produzir em escala comparável a do Ocidente. Um exemplo espetacular é a cidade de Chelyabinsk, sítio de inúmeras indústrias metal-mecânicas e químicas instaladas nos anos 1930. A partir de 1941, a lugar começou a receber as plantas industriais responsáveis pela produção do tanque médio T34, e rapidamente as indústrias locais voltaram-se para atender exclusivamente ao fabrico do blindado, que, durante toda a guerra, chegou a números de quase 50.000 unidades.
Uma dessas fábricas gigantes é a IZH, também conhecida como “Izhmash”. Situada na cidade de Izhevsky, esta indústria metal-mecânica foi fundada em 1807 e estatizada em 1928. Sempre associada à fabricação de armas leves, Izhmash tornou-se, durante a 2ª GM, a principal fornecedora de armamento individual para os expercitos da URSS. na segunda metade dos anos 1940, com as submetralhadoras descontinuadas, a empresa voltou-se totalmente para a produção do fuzil de assalto Kalashnikov AK47 e todas as suas variantes. Calcula-se que, dos 80 milhões de AKs existentes (algumas fontes falam em 100 milhões), algo em torno de 55 milhões tenha saído das linhas da IZH. Desde a guerra do Vietnã, essa arma encontra-se nas mãos de praticamente todos os combatentes de guerrilha e milicianos do mundo, além, claro, de milhões de combatentes e policiais regulares (causa:: já publicou um longo estudo sobre essa venerável família de armas de infantaria).
Qual a razão da existência de tantos AKs? Segundo especialistas da própria Rússia, o temor perene de uma guerra com o Ocidente, principalmente a partir dos anos 1950, fez com que a URSS investisse na indústria de defesa enorme quantidade de recursos. Depois do fim da 2ª GM, enquanto o Ocidente, em particular a Europa, procurava desmobilizar rapidamente suas FFAA, a URSS manteve as dela, como forma inclusive de manter quietas as populações dos países, em sua esfera de influência, tornados socialistas. Desde o período stalinista, as forças armadas soviéticas, por qualquer padrão, eram, mesmo em tempo de paz, gigantescas. Em caso de guerra – guerra que, segundo as lideranças, era sempre iminente – o país deveria ser capaz de mobilizar rapidamente milhões de reservistas, o que significava dar-lhes armas e equipamentos muito rapidamente. Foi assim que a produção de equipamento bélico cresceu de modo exponencial. Um motivo que deu argumentos às lideranças comunistas foi a Guerra da Coréia. Embora os chineses tenham se saído bastante bem em garantir a sobrevivência do regime norte-coreano, pareceu claro que apenas uma grande quantidade de tropas mobilizadas rapidamente e se deslocando em alta velocidade poderia compensar a arrasadora superioridade aérea do Ocidente. Ainda assim, a vantagem chinesa, conseguida conseguida através da rápida intervenção de mais de 300.000 “voluntários” através da fronteira, dependeu de um fluxo constante de armas e munições, inclusive várias centenas de aeronaves inicialmente pilotadas por soviéticos depois, por chineses. A quase totalidade das armas era proveniente dos enormes estoques que tinham “sobrado” da “Grande Guerra Patriótica” (como o soviéticos chamavam a 2ª GM): submetralhadoras PPSh, tanques T34, canhões ZIS-3 de emprego geral, foguetes Katyusha montados em caminhões GAZ. Tal procedimento não deve provocar estranheza, porque os EUA fizeram exatamente a mesma coisa: lutaram com os estoques de armas estocadas desde a 2ª GM. Apenas a partir da metade do conflito algumas novidades foram sendo introduzidas. Só que as novidades soviéticas dificilmente chegavam aos seus aliados orientais, em função da desconfiança que sempre atravessou as relações sino-soviéticas.
Como já vimos aqui mesmo no causa::, o AK47 surgiu em 1947 mas levou pelo menos dez anos até chegar às mãos das forças regulares em números consideráveis. A partir de 1956, a produção começou a crescer, conforme a arma passou a equipar as FFAA dos países satélites, geralmente produzidas pela própria indústria local. Ainda assim, ao longo de trinta anos, uma quantidade astronômica saía da Izhmash, boa parte da qual acabou em depósitos. Esses depósitos foram parcialmente esvaziados ao longo da Guerra do Vietnã – ao contrário do que parece, a maioria das armas utilizadas pelo Vietnã do Norte era de origem soviética, e não chinesa. Bem antes de 1974, quando começou a difusão do AK74, as armas estocadas já eram distribuídas para exércitos de países do Terceiro Mundo, nos quais a URSS buscava influência. Assim, todas as nações do Oriente Médio receberam grandes quantidades do fuzil soviético e algumas delas, como o Egito se tornaram capazes de produzir cópias autóctones; a Índia recebeu enormes quantidades, e depois passou a fabricá-las localmente; Bangladesh poderia não ter lá muita comida para seus 140 milhões de habitantes, mas tinha muitos AKs fornecidos pela URSS e pela Índia; Iraque, Sudão, Nigéria, Angola, Moçambique, Rodésia, Iran, etc., etc., beberam todos nas enorme capacidade soviética de produzir AKs de todos os tipos. Os movimentos insurrecionais também, mas a maior parte das armas soviéticas que lhes chegavam era fornecida através de traficantes, que constituiam uma espécie de versão eficiente da tal “capilaridade perversa”.
Com a crise da URSS, o fim da política de disputa global com os EUA e a crise econômica que comprometeu todos os ramos do estado soviético, a Rússia já não tinha nem disposição nem recursos para financiar exércitos e movimentos insurrecionais pelo mundo. Ainda assim, os AK, fossem 47 ou 74 continuaram chegando em grandes quantidades aos interessados. Por outro lado, a incapacidade russa em subsidiar as vendas as fez cair notavelmente, isto somando-se ao fato de que o ex-bloco soviético também começou a desovar seus próprios estoques. Como a Izhmash não parou de produzir AK74 (o modelo 47 teve sua produção muito reduzida a partir dos anos 1980, mantida apenas uma linha voltada para exportação), a Rússia continuou a comprá-los. O que faz sentido, já que, na época, as armas de infantaria eram praticamente o único produto da IZH, que também produzia (e continua) outras armas militares, armas esportivas, carros e motocicletas. O fato é que a perda do mercado cativo da União Soviética criou enormes problemas para a empresa, e a Rússia continuou com os subsídios da época do comunismo.
O problema é que a Rússia não podia dar-se ao luxo de deixá-la falir ou ser comprada, a preço de banana, pela diretoria, como aconteceu por exemplo, com a indústria petrolífera e parte – a parte boa, lógico – da indústria química e da indústria mecânica). Izhmash, acredite se quiser, é agora praticamente a única fábrica de armas de infantaria da Rússia, pois as “filiais” que eram mantidas nas ex-repúblicas – por motivos exclusivamente políticos – passaram à propriedade dos novos governos. A ineficiência do processo mostrou, então, sua face real: não havia planejamento e a direção da empresa insistia em manter a linha AK em produção sem levar em consideração a redução da demanda. A produção era mantida artificialmente alta, pois fossem quais fossem os números, as FFAA e as forças policiais as compravam, por determinação do governo. Para piorar as coisas, o AK74 e suas variantes se mostravam ultrapassados desde os anos 1980. Diante da demanda das FFAA por uma nova arma, a empresa insistia em apresentar modelos que não passavam de variantes da família AK, que eram sistematicamente recusados pelas forças armadas.
No momento, a IZH está trabalhando em uma nova versão do AK, destinada a substituir todas as anteriores – esta seria denominada AK12. Segundo a empresa, os testes de campo, em unidades operacionais do exército de da marinha russos deverão se iniciar antes do fim do corrente ano. A questão é que Ministério da Defesa da Rússia tem mostrado muito pouco interesse pela nova arma, exatamente em função do fato de que se trata de uma maquiagem sobre o velho AK74 – a versão do AK para o cartucho 5.45X39 mm, que já acumula 38 anos de serviços. Embora a empresa – que atravessa sérias dificuldades desde os anos 1990 – afirme que se trata de um novo armamento, adaptado às demandas das modernas forças armadas e do moderno campo de batalha, projetada sem abandonar as qualidades que tornaram a família AK sinônimo de fuzil de assalto, especialistas têm dito que, de fato, se trata de um projeto muito parecido com o do AN94 Nikonov, um aperfeiçoamento do AK74 projetado nos anos 1980 por um engenheiro da própria IZH, e que acabou distribuído apenas para forças especiais. O que parecia eficiência era, um planejamento cronicamente ineficaz arraigado por todo o estado soviético. Além do “caso Nikonov”, houve também a maluquice do AEK.
Trata-se do fuzil de assalto AEK971, desenvolvido pela empresa Usina de Fabricação de Máquinas Kovrov, ligada ao ateliê engenheiro S.I. Koksharov. A arma foi desenhada para participar do concurso “Abakan”, no final dos anos 1980, vencido pelo Nikonov. Apesar de ter sido desqualificado, o AEK971, que, de fato, já estava em produção, foi oferecido às forças policiais e para exportação. No início do século 21, pequenos lotes foram fabricados por encomenda do Ministério dos Negócios Interiores, que tinha suas próprias tropas, um grupo de forças especiais (Spetsnaz) especializadas em lidar com distúrbios civis, que teve importante papel em garantir o governo Gorbatshev, quando da tentativa de derruba-lo. A arma não “colou” de jeito nenhum, e quando a Krokov foi reestruturada, em 2006, deixando de fabricar produtos militares, o AEK acabou de vez, por não ter compradores nem usuários. Embora o governo tenha ordenado que o maquinário usado para a produção militar fosse transferido para outra empresa, na mesma cidade, a diretoria da AEK, tendo “adquirido” a fábrica, recusou-se a executar a transferência, sob a alegação que se tratava de patrimônio privado. O AEK, como não podeia deixar d ser, era outro clone maquiado do AK74.
O fato é que se fala cada vez mais, nos círculos profissionais de defesa da Rússia, na necessidade de um fuzil de assalto totalmente novo. Como o sistema Future soldier já está sendo discutido lá, tanto quanto nos EUA, França, Alemanha, Inglaterra e até mesmo no Brasil, a questão do armamento individual torna-se premente. Mas o que fazer com as quantidades oceânicas de AKs em depósito? Planejadores do Exército declararam, ano passado, que a quantidade de AK74 era “mais de dez vezes superior às necesidades das forças armadas e policiais pelos próximos anos”, citaram números de 17 milhões de exemplares. Em função desse excesso, e do desenvolvimento, em curso de uma nova arma individual, que deverá substituir todo o armamento das FFAA russas, a aquisição de unidades novas de fábrica foi interrompida, por determinação do Chefe do estado Maior Geral das FFAA russas, general de exército Nikolai Makarov. Por enquanto, a “nova” arma é o AK200, que não passa de outra versão do AK74, com algumas novidades visando fazê-la parecer mais moderna, e já pensando na provável recusa do AK12::