Cultura material militar::As primeiras armas de fogo da infantaria::

As armas portáteis surgiram quase ao mesmo tempo que os primeiros canhões. Mas “portátil” era apenas maneira de dizer: lá pelo ano 1300 da era cristã, eram, de fato, pequenos canhões fixados na ponta de um forte bastão de madeira ou de ferro, que podiam ser transportados de um lado para outro com maior facilidade, principalmente nas muralhas dos castelos – tanto que aparecem, com freqüência, denominadas “canhões de muralha” ou “de parapeito”.

 De resto, não diferiam muito dos outros canhões:  carregados pela boca (de “antecarga”, no jargão dos especialistas), o interior do tubo era liso, o que tornava o tiro muito pouco preciso. A carga de pólvora era socada no interior do tubo, e sobre ela colocada um bucha de estopa, que se destinava a potencializar a explosão. Essas primitivas armas de fogo tinham um orifício perfurado na extremidade posterior, chamado “luz”, através do qual eram despejada certa quantidade de pólvora e, no momento do disparo, pressionado um bastão aceso, que incendiava a pólvora e iniciava a explosão. Com uma dose de sorte, o jato de gás lançava a bala – inicialmente feita de pedra e, pouco depois, de metal – na direção do alvo. Após o disparo, era necessário esperar certo tempo para que o interior do tubo esfriasse. Em função da baixa qualidade de pólvora, os tubos precisavam ser constantemente limpos, o que tinha de acontecer após no máximo uns dez disparos.

A partir de meados do século 15 começaram a surgir, na Europa Central, armas menores, mais leves, de antecarga, cujos longos canos de metal forjado eram fixados sobre uma armação de madeira.  O sistema de disparo, chamado “fecho”, surgiu conforme o tamanho e o peso da arma diminuíram o suficiente para permitir que o tiro fosse realizado a partir do ombro o atirador. Este tinha de “mirar” (em português, esse verbo vem do espanhol mirar, ou seja “olhar”) o alvo pressionando o rosto contra a extremidade anterior da armação de madeira sobre a qual o cano era fixado, ao mesmo tempo que pressionava o bastão incandescente no interior da “luz”. Essa armação de madeira tinha, inicialmente, forma semelhante a de uma bengala, com um gancho na extremidade posterior, em alemão hake. Sobre essa armação era montado o canhão, büchse. A contração das palavras deu origem ao substantivo hakenbüchse, que passou ao francês antigo como haquebuse, depois arquebuse, e se tornou a portuguesa “arcabuz” (em inglês, arquebus ou harkbus). Esses “canhões de arco” foram as primeiras armas de fogo realmente portáteis. Com o tempo, modificariam o campo de batalha de forma irreversível.

Arcabuz centro europeu (Suhl, atual Alemanha Central), final do século 16. O fecho de mecha é acionado por gatilho.

Tratava-se de uma arma baixa velocidade de boca, utilizada contra tropas equipadas com sistemas de proteção individual chamados “armaduras de infante”. Esse tipo de proteção, uma armadura mais leve e delgada, feita de aço e couro, começou a se tornar comum nos campos de batalha por volta do início do século 15. Beneficiando-se de novas técnicas de metalurgia e novas ligas de metal, esse tipo de armadura era totalmente capaz de parar um tiro de arcabuz, desde que a distância não fosse pequena. Nessa distância, a arma de fogo penetrava até mesmo as armaduras da cavalaria pesada, que, nessa época, já estava em decadência. O resultado foi que a armadura pesada (chamada “de placas”, pois cobria inteiramente o corpo do cavaleiro com placas de metal) começou a ser abandonada, tanto pela cavalaria quanto pela infantaria, até que, no final do século 17, quase não se viam mais armaduras em campo.

Essas primeiras armas de fogo ainda tinham muitas limitações. O mecanismo de disparo, o “fecho” (em inglês lock), era composto por uma peça em formato de “S” (por esse motivo chamada de “serpentina”) fixada na armação de madeira porum eixo móvel. Movida pelo atirador, essa peça aproximava a mecha (match) da luz. Uma novidade introduzida no final do século 14 era um ressalto, semelhante a uma pequena pia, que envolvia a “luz”. Essa peça passou a ser chamada de “caçoleta” (em inglês, flashpan). Dentro era colocada uma quantidade de pólvora chamada “escorva”. A mecha, nessas armas, era literalmente um pavio de algodão embebido em alguma substância de queima lenta que, por isso, não apagava, mas era suscetível à chuva e à umidade, além de, por motivos óbvios, ser muito visível à noite – situações que podiam deixar o atirador na mão. Além do mais, o choque da peça que mantinha o pavio no lugar com a “luz” geralmente apagava a brasa, que tinha de ser novamente acendida após o tiro. Em meados do século 15, sistemas de molas e travas passaram a permitir que um simples toque de dedo (bem, não tão simples – a coisa era muito dura) acionasse a peça e colocasse no lugar.

Pistola de origem singalesa, século 18. O fecho de mecha é perfeitamente visível, inclusive com a mecha em posição.

Esse aperfeiçoamento facilitou a pontaria da arma, uma vez que diminuiu o número de movimentos necessários para o disparo: o atirador não tinha mais de mover o braço. A caçoleta também acabou afetada pelo novo sistema: por volta do final do século 16, começaram a ser introduzidos nas armas uma espécie de “tampa” que mantinha a pólvora isolada da brasa até o momento do disparo. Conforme o atirador acionava o gatilho, a serpentina , liberada, era lançada para frente. A pancada empurrava a tampa e expunha a escorva. Essa foi a origem do “fecho de pressão” (snaplock), que seria aperfeiçoado e se manteria como processo dominante ao longo de mais de três séculos.

O problema é que levava um instante entre a ignição da escorva e a ignição da carga de pólvora no interior do cano. Esse intervalo de tempo comprometia a precisão do tiro e condicionava a tática, que, a partir do século 16, buscava a concentração de fogo. Levaria certo tempo para ser resolvido.

A partir de meados do século 16, começaram a aparecer novos mecanismos de fecho. O “fecho de rodete”, um mecanismo semelhante ao dos modernos isqueiros, mas muito mais complexo, foi um deles, e é notável. Um mecanismo de corda acionado pelo atiraador tracionava uma mola presa a uma roda de superfície áspera, na lateral da arma. Sobre a roda, uma pedra de pirita fixada em uma braçadeira móvel (que passou a ser chamada de “cão”, ou, em inglês, cock – “galo”talvez devido ao formato) era mantida sobre a roda, sem tocá-la. Quando o atirador acionava o gatilho, a roda começava a girar ao mesmo tempo que a braçadeira se soltava, colocando a pedra de pirita numa distância suficiente para ser friccionada pela roda. As fagulhas resultantes incendiavam a escorva e faziam a arma disparar. O sistema era eficaz, embora difícil de fazer, caro e muito sujeito a defeitos. Chegou a ser distribuído para tropas de cavalaria, ao longo do século 17, pois podia ser facilmente operado sobre um cavalo. Mas era uma arma de luxo, de fabricação cara e demorada.

Pistola alemã de fecho de rodete, provavelmente do final do século 16, estilo de arma de cavalaria (notável pelo desenho da coronha). Os detalhes do mecanismo são bem visiveis, embora a pedra de pirita não esteja no lugar.

O fecho de rodete, embora não tivesse tido vida longa, deu início a uma inovação que seria marcante: o uso da pederneira. Isso significa, genericamente, a utilização de uma pedra para gerar faíscas. De fato, o sistema de rodete não era verdadeiramente “de pederneira”, apesar de utilizar o princípio da fricção para gerar faíscas. Os sistemas de pederneira verdadeiros utilizavam o princípio do “fecho de pressão” (snaplock): o cão, que passou a ter forma de “meio S”, era mantido em posição após ser puxado para trás pelo atirador, por um sistema de molas e trava. Ficava preso ao “gatilho” (do espanhol gatillo – “pescoço longo”; em inglês, trigger), e quando este era pressionado, solvava uma mola de pressão que o lançava violentamente para frente. O resultado desse movimento era o choque com uma peça vertical, de metal rugoso, que integrava-se à tampa da caçoleta. Uma pedra presa ao cão produzia fagulhas, que incendiavam a escorva. Esse sistema começou a aparecer por volta de meados do século 16. O desenvolvimento iria levar algum tempo, e podemos dividi-lo em três sistemas distintos: chenapan, miquelete e flintlock. Todos utilizam o “fecho de pressão” e uma pedra de pederneira (silex pirômaco – em inglês, flint) para produzir as faíscas. Esses sim, são “de pederneira”.

O sistema chenapan foi o primeiro a surgir. A palavra chenapan, usada na Espanha, Itália e França, é uma variação de snaphance, que, segundo é aceito pela maioria dos especialistas, deriva do alemão schnapphahn, “galo bicador”. O funcionamento segue, com variações de desenho, o processo do “fecho de pressão”. As peças do sistema são mantidas no lugar por molas de pressão que ficam encaixadas no interior do fecho. A versão miquelete é basicamente igual, mas o mecanismo de molas ficava na parte exterior do fecho. O miquelete apareceu na Espanha, no final do século 16.

No final do século 16, a maioria dos exércitos nacionais e das forças armadas autorizadas estavam dotadas parcialmente com armas do tipo descrito acima. Embora centenas de variações sejam descritas, a partir de bibliografia e de artefatos conservados em museus, o sistema se manteria suas características básicas até a primeira metade do século 19.

O fecho de pederneira (flintlock, em inglês) propriamente dito, guarda semelhanças com os dois sistemas descritos acima. O aperfeiçoamento mais notável era no desenho da chapa seladora da caçoleta, que se tornou menor e mais eficiente na função de isolar a escorva do exterior. Esse novo desenho, característico dos mosquetes Brown Bess do exército inglês e do Charleville francês, evitava a perda de pólvora quando a arma estivesse em movimento.

Armas de pederneira eram geralmente de antecarga, embora, ao longo dos séculos 17 e 18 tenham surgido exemplares carregados pela culatra (de “retrocarga”). O baixo nível das técnicas metalúrgicas e de forjaria, entretanto, tornava a vedação da câmara um problema de difícil solução, tornando o tiro ainda mais ineficaz. Outro problema era a imprecisão. As armas disparavam projetis redondos, feitos de uma liga de chumbo e estanho. O alcance era pequeno, algo da ordem de 400 metros. Os problemas eram diversos, a começar pela baixa potência da pólvora negra. Os canos de alma lisa tornavam a trajetória imprevisível, com uma tendência à deflecção. Essas duas ordens de problemas só seriam resolvidas com a introdução de pólvoras químicas, que explodiam mais rapidamente e de forma mais estável. A estabilidade da trajetória já tinha uma solução proposta desde o final do século 15 – o raiamento do cano. A idéia parece que já tinha ocorrido a diversos armeiros centro-europeus, mas, outra vez, as técnicas de metalurgia tornavam o processo complicado e caro. Tudo isso teria de esperar até que a segunda fase da Revolução Industrial revolucionasse a indústria::

Um rapaz (das Forças Especiais) às Terças::

É um bom jogo, esse. Está dando pra ver um dos caras na foto, não é? Mas existem três deles. Dá pra encontrar, na lata, primeira olhadinha? Sem ter de examinar com algum cuidado? Experimente e, depois, conte aqui para o redator: difícil de acreditar, não é? A foto foi publicada na capa do “Jornal da Infantaria”, de fevereiro de 1944, e mostra três snipers durante testes com padrões disruptivos de camuflagem, em um campo de provas do Exército dos EUA, em Nevada. O exército norte-americano tomou contato com a camuflagem através dos alemães, que, no início da guerra, já a utilizavam de forma mais-ou-menos generalizada. Peças de uniforme e de equipamento (como, por exemplo, os Zeltbahnen, ponchos que podiam ser usados como  tendas) nos padrões *Splittermuster (“padrão lascado”) e *Sumpfmuster (“padrão-pântano”) remontavam a 1931 e foram adotados em 1932 tanto pelo exército quanto pela infantaria da Luftwaffe. Conforme a guerra avançava, a disseminação de tecidos sintéticos na confecção de uniformes e peças de equipamento em tecido tornou ainda mais comuns os padrões de camuflagem. A questão é que os norte-americanos não simpatizavam com os padrões camuflados, e só a contragosto resolveram avaliar padrões disruptivos. Em 1942, o Exército dos EUA distribuiu um uniforme camuflado reversível, para uso nas selvas do Teatro do Pacífico: um dos lados tinha um padrão de formas irregulares arredondadas, em tons predominantemente verdes, o outro, em tons de marrom. Segundo fontes da época, o padrão marrom reproduzia o traje geralmente usado por caçadores de patos, e foi chamado, por este motivo Duck Pattern.  Os fuzileiros navais, que também receberam o traje, não o avaliaram bem. Relatórios apontavam que o padrão era muito eficaz para indivíduos estáticos, mas tinha efeito contrário quando usado em movimento. O Exército logo desistiu do uso de tais uniformes; os fuzileiros o mantiveram para a cobertura de capacete, que se tornou bastante característico do uniforme do USMC na 2a GM. É provável que a avaliação de campanha dos padrões camuflados tenha levado a testes de padrões como os da foto. Em campanha, o uniforme verde-oliva predominou até a Guerra do Vietnam, quando os padrôes camuflados começaram a ser adotados de forma mais ampla, primeiro por forças especiais, depois pela infantaria.::

Cultura material militar::Princípios básicos do tiro, em linguagem que até um militar entende::

Piadinha sem graça do redator… De fato, os militares, independente do posto, estão entre os profissionais cuja formação, além de rigorosa, é contínua. A imagem que a sociedade tem da profissão militar vem das características das corporações, baseadas nos princípios da hierarquia e da disciplina. Mas, se o objetivo aqui não é propriamente fazer piada com os militares, e nem a apologia deles, talvez o tema seja interessante para uma outra postagem. O assunto do dia (ou da noite – causa:: nunca tem horário…) mas falar sobre um dos processos básicos com os quais eles (e muitos outros profissionais) lidam: o tiro. Afinal, o tiro é como o amor: todo mundo acha que sabe o que é, até o momento de colocar em palavras. Mas os sete leitores (contadinhos…), a esta altura, já devem ter percebido que o objetivo de causa:: não é explicar o amor – pois explicar o tiro é infinitamente mais fácil…::

Segundo os dicionários, “tiro” é o ato ou efeito de tirar, atirar ou arremessar alguma coisa. Quando se fala em “tiro”, está-se falando em arremessar um projetil, ou seja, qualquer corpo lançado por impulsão súbita em função de alguma força aplicada a ele. Nesse processo, a existência de um alvo (o que é visado pelo arremesso) não é uma pré-condição, mas geralmente o uso da palavra traz, implícita, a existência de um objetivo visado pelo arremesso do projetil.

Arremessar projéteis é uma das ações mais antigas praticadas pelo homem. Já foi  dito que significa impulsionar um corpo. Explicando de modo mais preciso, trata-se de conseguir, através da aplicação de energia cinética sobre um corpo inerte, implementar a energia potencial existente nele. Isso equivale a dizer que a velocidade impressa ao corpo pela impulsão (pelo “tiro”), somada ao peso desse corpo, o torna teoricamente capaz de superar obstáculos situados ao longo da trajetória percorrida, sendo o principal deles a reação física de outro corpo situado em algum ponto do trajeto. Ou seja: atire uma pedra em um passarinho, e essa o derruba se o somatório da energia impressa a ela mais aquela contida nela for maior que a energia gerada pelo passarinho ao voar (ou pousado, ação em que também é gerada energia). Quanto maior a velocidade, maior a energia gerada pelo corpo em movimento (qualquer um que já levou um encontrão de um sujeito pesado correndo por uma calçada sabe do que estamos falando aqui…).

Ao longo de sua existência como inventor de processos e construtor de artefatos, o homem buscou aperfeiçoar instrumentos que aplicam e potencializam o princípio do arremesso. Mas até o momento em que a pólvora foi inventada, os meios disponíveis de arremessar conseguiam transferir quantidade relativamente pequena de energia para o projétil. A pólvora permitiu, pela primeira vez, uma forma mais-ou-menos controlada de explosão, ou seja, de uma súbita e grande liberação de energia, sob a forma de altas temperaturas, produção de gases e conseqüente aumento de volume. A energia transferida, por exemplo, para uma flecha, é gerada, em princípio, nos processos vitais do arqueiro e concentrada através do arco, mas é limitada pelos diversos momentos de perda: parte dela é usada pelo próprio arqueiro, parte se perde no arco, parte na corda, e assim por diante. A única forma de aumentar a energia transferida seria aumentar o tamanho do sistema atirador, para que este possa transferir mais energia para o projetil. É o caso, por exemplo, de um trabuco, uma espécie de catapulta enorme, geralmente associada à Idade Média (embora elas existissem desde a Antiguidade Clássica): o sistema transfere a própria energia potencial, mais a dos operadores, através de meios que somam as duas quantidades num resultado suficiente para tirar uma pedra bem grande (de até duzentos quilos) da inércia. É claro que, na trajetória até o alvo, parte da energia imprimida ao projetil se perderá, mas outra quantidade será somada pela velocidade impressa pela gravidade atuando durante a queda.  

Até aqui estamos falando de meios puramente mecânicos de gerar energia. A forma de aumentar a transferência é aumentar a velocidade com que se dá a mesma, até gerar um processo chamado de “explosão”.

Geralmente, quando se fala em explosão, se pensa em “explosivo”, ou seja, um produto químico. Entretanto, uma explosão pode ser provocada por meios puramente mecânicos – por exemplo, o rompimento de um balão de borracha, quando se põe ar demais dentro dele. O excesso de ar e a incapacidade das paredes em se expandir provocam o rompimento e a liberação súbita, em velocidade, do gás preso lá dentro. Por sinal, o sentido original do verbo latino explodere é exatamente esse: designa o ato de expulsar ruidosamente, romper. Na explosão do balão, não existe processo químico envolvido, a velocidade de saída do ar é produto do aumento do volume, da pressão, e a incapacidade da borracha em opor resistência à energia resultante desses fatores, energia que, em última análise, é transferida pelo soprador. A explosão de um balão desses não chega a provocar dano porque a maior parte da energia é perdida em romper a parede de borracha e sobra pouca para provocar ondas de pressão no ambiente externo.

Com um explosivo químico é diferente. Na explosão desses compostos, a energia resulta da reação interna que desagrega as moléculas e transforma o estado sólido em estado gasoso. No aumento de volume que se observa então, a perda de muito menor. A energia cinética provocada pela mudança de volume provoca ondas de pressão ao redor do local onde ocorre. Quanto maior a velocidade da onda, mais violentos são os resultados (mais dados sobre o processo aqui).

A pólvora, durante muito tempo o único explosivo químico amplamente disponível, foi inventada na China, provavelmente por volta do século 9. Seu uso militar começa a ser registrado em manuscritos do século 10, como forma de implementar o arremesso de projéteis. A pólvora usada nessa época (e durante os oitocentos anos seguintes) era a chamada “pólvora negra”, mistura de minerais facilmente obtidos no meio ambiente ou por processos de transformação simples: nitrato de sódio (NaNO3 conhecido como salitre) ou nitrato de potássio (KNO3, outra forma de salitre), enxofre (S) e carvão (geralmente vegetal, provendo carbono). A proporção de cada um desses minerais varia, mas em geral situa-se sempre na medida de duas partes de enxofre, três de carvão e quinze de enxofre, o que dá mais-ou-menos 74,5 por cento, 11,5 por cento e 13,5 por cento de cada um desses materiais.

Não se sabe como os chineses tiveram a idéia de usar pólvora para impulsionar projéteis, mas é possível que esse uso tenha resultado da observação do efeito de fogos de artifício, arte muito difundida na China e na Índia. Segundo manuscritos antigos, é do século 10 a colocação de certa quantidade de pólvora em um bambu fechado numa das extremidades, e uma pedra na outra. O processo não funcionava muito bem porque a tendência era que o bambu rebentasse sem lançar adiante o projetil.

De qualquer forma, a idéia básica das armas de fogo já está presente nesse processo: um tubo com uma extremidade fechada e outra aberta. A extremidade fechada precisa ter um orifício que ligue a câmara interior ao exterior. Na câmara dentro do tubo coloca-se certa quantidade de pólvora e, próximo da extremidade aberta, um projetil, que pode ser qualquer coisa que caiba no espaço existente dentro do tubo sem obstruí-lo totalmente. No orifício será inserido um material (pano, corda ou coisa do gênero) que queime, de modo a atingir a pólvora. Quando essa inflama, queima rapidamente produzindo grande quantidade de gás que, por sua vez, gera grande pressão, que tende a se espalhar de modo desigual pela câmara, devido a resistência menor oposta pela área parcialmente obstruída pelo projetil e pelo ambiente externo (a atmosfera que entra pelo tubo). O resultado é a impulsão do projetil, lançado para a frente numa trajetória que se estenderá até que as forças em oposição esgotem a energia gerada pela expansão do gás – nesse momento, o projetil irá literamente cair no chão – ou ser interrompida por um obstáculo.

O processo parece simples – e é, até certo ponto – mas envolve uma série de fatores que se somam até torná-lo extremamente complexo. Começa com o fato de que a eficiência do tiro está diretamente ligada à eficiência do propelente (vamos passar a chamar a pólvora assim…), ou seja, a maneira como ele entra em combustão e explode. A velocidade da queima, que converte a mistura sólida em gás não pode ser nem muito rápida nem muito lenta: se for muito rápida, a geração de gás será menor, o que implica perda de energia; se for muito lenta, a expansão do gás também será, o que implica, do mesmo jeito, em perda de energia.

A pólvora negra é um composto bastante estável e fácil de manusear. O processo de fabricação sempre foi mais-ou-menos o mesmo: os componentes, reunidos nas proporções corretas, são triturados em moinhos de roda, nos quais enormes rolos de pedra ou (atualmente) metal, muito pesados, misturam os elementos até que tomem a forma de um pó fino. De tempos em tempos, a coisa tem de ser mascerada (misturada com água) para evitar a desagregação da mistura e o perigo de explosão espontânea, que não é pequeno. A granulação é obtida depois da secagem e de um processo de peneiragem, que uniformiza os grãos. Em seguida, um processo de agitação, em um recipiente em forma de caixa, “vitrifica” os grãos, deixando-os com uma aparência brilhante.

A velocidade de queima depende da granulação, e, a depender do tempo e da forma de mistura e peneiragem, os grânulos terão tamanho e formato diversos, e com base nesses tamanhos é obtida combustão mais rápida ou mais lenta e menor ou maior geração de gás.  Quanto mais homogênea for a queima, mais eficiente será o processo de geração de gás. Mas esse processo só foi totalmente controlado com a invenção das pólvoras químicas, no século 19.

A eficiência da queima e da geração de gases, por si só, não resolve os diversos problemas físicos do tiro. Desde a invenção dos primeiros canhões, armeiros e atiradores perceberam que o projetil, uma vez disparado, tendia a assumir uma trajetória irregular. O motivo é simples, e o problema resultante ainda não foi totalmente resolvido: o meio ambiente, ao longo da trajetória, opõe diversas formas de resistência ao avanço do projetil. No início, a solução foi tornar o projetil esférico, de modo a diminuir a oposição do ar. (Aqui é bom lembrar que os primeiros canhões, tanto no Oriente quanto no Ocidente, disparavam balas de pedra, material mais fácil de ser trabalhado, mas que tinha inúmeras desvantagens, a começar pela baixa dureza e pelo peso limitado.) O disparo fazia com que o projetil assumisse um movimento de rotação axial aleatório, que dependia de fatores imprevisíveis. Além do mais, a arte do tiro, ao longo de muito tempo, foi uma prática empírica. Ninguém sabia exatamente quais eram os fatores e padrões a serem seguidos. Por exemplo, a quantidade de pólvora a ser usada era desconhecida, e cada artilheiro seguia a própria intuição. Dá para imaginar a freqüência com que ocorriam acidentes de tiro. Principalmente porque a artilharia surgiu em um ambiente tecnológico bastante primitivo. Na Europa os primeiros canhões, surgidos no final do século 13, eram tubos forjados. A técnica de forja e a qualidade do metal resultavam num produto, para dizer pouco, não-confiável, que estourava com certa facilidade. Demoraria algum tempo até que fossem aperfeiçoados os processos de fabricação de tubos (que passaram a ser fabricados em bronze, por uma técnica de fundição que produzia peças sem costuras, ou seja, sem pontos fracos). Por sinal, o desenvolvimento das armas de fogo seria bastante lento – basta dizer que os sistemas variaram muito pouco, passando à forma moderna apenas na segunda metade do século 19. Inovações realmente revolucionárias iriam modificar as armas de fogo, grandes e pequenas: os novos materiais, baseados no ferro produzido em siderúrgicas, os novos desenhos, tanto de canos como de mecanismos de culatra, os novos desenhos de projéteis, de formato ogival, e os novos propolentes.

Será nosso próximo assunto.::

Uma moça (em uniforme) às Terças::

Reserva do Exército da Bélgica em treinamento. É estranho que uma lourinha tão bonitinha (bem, o redator supõe que seja loura e seja bonitinha – vamos dar um desconto à imaginação…) tenha exagerado desse jeito na maquiagem, mas, acreditem – faz sentido. Certo que os belgas sempre gostaram de padrões de camuflagem esquisitos – notem a cobertura do capacete e a jaqueta da gracinha. Trata-se de um padrão local belga, disruptivo, denominado pelo  Índice Internacional de Padrões de Camuflagem de jigsaw puzzle pattern m/56 (em português, “padrão quebra-cabeça” – notem que parece mesmo um quebra-cabeças). Mas de lascar mesmo é a maquiagem da lourinha… Maquiagem?.. Não deixa de ser, embora os milicos a tratem por “tinta facial“. É uma espécie de pasta a prova d´água, neutra, sem odor e hipo-alergênica, desenvolvida a partir dos anos 1960 pelo Centro de Pesquisas Médicas e Comando de Material do Exército dos EUA, em Fort Detrick, Maryland, em conjunto com o Centro de Pesquisa, Desenvolvimento e Engenharia de Sistemas para Soldados do Exército dos EUA, em Natick, Massachussets. Essa pasta, disponível em tons de  verde, marrom e branco, destina-se a minimizar o brilho natural da pele. É muito usada entre membros de forças especiais e forças de elite e ultimamente se tornou moda também entre artistas de vanguarda e praticantes de luta-livre… Como disse o redator, faz sentido…::

Tecnologia naval::Elektroboot e seus sucessores::Parte4

 Podemos todos detestar os nazistas – mesmo quem tem pedra na cabeça, no lugar de cérebro, detesta. Mas com a engenharia alemã é outra coisa – todos temos certa tendência em apreciar as armas alemãs da 2a GM (as atuais também são bem interessantes…). Em muitos casos, é exagero, mas em outros, os produtos da inventividade e da organização científica alemãs ainda marcam nossa época. E não é só o redator fanático por tecnologia militar que acha… Não estamos falando do Elektroboot? Pois então leiam a parte 4, em seguida::
 
 
 
 

USSPICKEREL

O SS 524 "Pickerel" em treinamento de emersão de emergência, 1952. É notável a semelhança do casco com o desenho dos "Tipo XXI".

 

parte4Nos anos que se seguiram à guerra, o desenho de submarinos foi totalmente revolucionado pelo contacto das principais marinhas aliadas com o Tipo XXI. Das 113 unidades que estavam prontas para incorporação em maio de 1945, e que não foram afundadas pelas tripulações, duas foram transferidas para os EUA, quatro para a URSS (embora existam suspeitas de que o número tenha sido maior), uma para a Inglaterra e uma para a França.

Os exemplares incorporados pela Marinha dos EUA foram exaustivamente examinados e testados entre 1946 e 1949. Os destroços de um desses submarinos foram encontrados recentemente, ao largo da Flórida, onde foi afundado pelos norte-americanos, após o fim do programa, num teste de armas anti-submarino.

O exame das duas unidades levou à conclusão de que toda a frota de submarinos da Marinha dos EUA estava ultrapassada (o *USS Wahoo, comissionado em julho de 1943, típico “submarino de esquadra” norte-americano). Um programa de construção foi proposto, mas como existiam quase duas centenas de unidades construídas nos três anos anteriores, as autoridades navais optaram por modernizar as que estivessem em melhor estado. O primeiro programa foi a instalação de um equipamento equivalente ao esnorquel alemão, para testes, no USS Irex (classe Tench, construído em 1944), em 1947.     

O programa Greater Underwater Propulsion Power (GUPPY – o “y” não quer dizer nada, mas fazia o acrônimo combinar com o nome de um peixinho decorativo muito popular nos EUA…) era muito mais amplo. Foi estabelecido como alternativa de menor custo para modernizar parte dos barcos da força norte-americana de submarinos, os mais modernos, das classes Gato, Balao e Tench. O programa GUPPY acabou resultando em diversas fases. O GUPPY I dotou os barcos selecionados com esnorquel; eliminou a maioria das partes desnecessárias das “obras mortas” (passadiços e instrumentos na  torre, canhões, mastros e outros elementos da coberta); melhorou o desenho das “obras vivas”, de modo a dar maior uniformidade ao casco externo, tornando-o tão hidrodinâmico quanto possível (o *USS Odax, lançado em abril de 1945, cuja conversão completou-se em 1947, depois transferida para a Marinha Brasileira. Observe-se a vela tipo “Eletric Boat”, depois substituídas pelo tipo “Portsmouth” em todas as unidades). Também foram feitas melhorias na motorização, acrescentadas novas baterias e novos equipamentos eletrônicos.

A instalação de novas baterias esteve entre as principais modificações. Quatro unidades acumuladoras (baterias), compostas por 504 células, cada uma delas capaz de sustentar proximadamente 25 por cento a mais de carga que os tipos anteriores, melhoraram significativamente o desempenho subaquático do navio. Entretanto, essas novas baterias tinham um sério problema de durabilidade, além de provocarem problemas ambientais. Apesar dessa desvantagem, o ganho geral mostrou-se compensador: os barcos remodelados chegavam a alcançar 17-18 nós (30-33 km/h) submersos. Um total de 50 unidades foram convertidas.

A segunda parte do programa deu origem à classe Guppy II. Essa era basicamente igual à classe Guppy I, exceto em alguns detalhes da vela, que foi redesenhada para acomodar novos mastros de combate que alojavam os sistemas de admissão de ar e exaustão de gases do esnorquel e as antenas dos equipamentos eletrônicos. Os barcos da série Guppy II tiveram melhorias na motorização, que possibilitavam melhor desempenho, e novos equipamentos eletrônicos, inclusive unidades de radar de última geração. Um total de 24 unidades foi convertido.

Um problema com o programa GUPPY II era o preço – os submarinos veteranos da 2a GM tinham de ser praticamente reconstruídos. O programa GUPPY IA, lançado em 1951, foi uma tentativa de baixar o custo da conversão. O programa GUPPY IIA, lançado em 1954, redesenhou certas partes do casco externo, de modo a melhorar o desempenho subaquático. A essa altura, os engenheiros da Marinha e da indústria tinham descoberto que não adiantava melhorar a motorização se a parte hidrodinâmica também não fosse muito melhorada. Essa derivação do programa instalou uma vela totalmente redesenhada, uma nova proa, e motores iguais aos dos GUPPY II. Mudanças na arquitetura interna permitiram a instalação de novos equipamentos eletrônicos, unidades de refrigeração e condicionadores de ar. A aparência externa da série IIA era, à primeira vista, semelhante à II.

Em meados dos anos 1950, alguns barcos da classe GUPPY IA foram convertidos para a série GUPPY IB, destinados à transferência para marinhas aliadas. Os equipamentos eletrônicos de última geração foram substituídos por “modelos de exportação” muito simplificados, mas, de resto, eram iguais aos IA. Por sinal, esse era um problema que começava a ser observado pelos projetistas: a grande quantidade de equipamento eletrônico que, pelos meados dos anos 1950 começou a ser incorporada aos navios de guerra, em geral, e aos submarinos, em particular. No caso dos submarinos, a questão era particularmente séria, porque os controles de direção, equipamentos de sonar e de direção de tiro computadorizado tomavam muito espaço e consumiam energia extra. Entre 1959 e 1963, até mesmo unidades já convertidas para o padrão GUPPY II tiveram de voltar para a doca seca, para serem cortados e aumentados em uns 4 metros na área da sala de controle. Nesse novo espaço, foram instalados os novo equipamentos de sonar e de direção de tiro. Essas novas unidades tornaram-se a série GUPPY III.

Até o programa GUPPY II e suas variantes, um dos problemas não resolvidos eram as baterias, que não apenas atravancavam o espaço interno como criavam desconforto  ambiental. Em 1959, o programa GUPPY III buscava, dentre outros aperfeiçoamentos, resolver esse problema. Os engenheiros navais optaram por alongar uma das unidades assim como retirar um dos motores diesel, situado à vante da belonave e considerado desnecessário. Desse modo foram criados novos espaços internos, o que possibilitou alterações que, provinham maior área para equipamentos eletrônicos e para a tripulação. Todos as unidades do padrão II foram convertidos para o padrão III.

Os GUPPY III ficaram em atividade até o final dos anos 1970. É interessante observar que, após o programa GUPPY, foram construídos nos EUA os SSK (submarinos convencionais, no jargão da Marinha norte-americana) da classe *Tang, da qual seis unidades, que incorporavam os desenvolvimentos do programa GUPPY, tiveram suas quilhas batidas entre 1946 e 1948, e foram lançadas no início dos anos 1950. Foram os últimos submarinos convencionais que saíram de um estaleiro norte-americano. Desde 1963, quando o programa de conversão completou-se, os EUA desistiram de, de SSK), optando por uma força totalmente composta por submarinos nucleares::

Tecnologia naval::Elektroboote e seus sucessores::Parte3

E eis que já era tempo! Finalmente chegam aos sete leitores (contadinhos…) de causa:: as partes finais da série sobre as origens dos modernos submarinos. Com esta série, o redator pretende fornecer elementos para aumentar a cultura submarinística dos sete leitores, de forma que qualquer um deles possa dar esclarecimentos aos redatores da imprensa escrita, falada e televisada. E se (como é muito provável) o assunto acabar esquecido, diante dos melhores temas para se falar mal do governo, pelo menos servirá para umas duas ou três horas de diversão… Divirtam-se, pois!::

parte3O submarino Tipo XXI, denominado, por seus projetistas, de Elektroboot (“barco elétrico”) é o avô de todos os submarinos atuais. Boa parte dos conceitos usados por todas as nações atualmente fabricantes de submarinos surgiram desse projeto, elaborado a partir da primavera de 1943. Em princípio, o conjunto de ações tinha um objetivo muito simples: devolver à Alemanha a superioridade que sua arma submarina tinha conquistado de 1940 até o início de 1942, e havia perdido fragorosamente.

O Tipo XXI é descendente de um projeto que tinha se arrastado durante anos, com resultados irregulares: o submarino Tipo XVIII. Tratava-se de uma unidade que estava sendo projetada em torno de uma turbina em desenvolvimento pela companhia do engenheiro Helmuth Walter (a mesma que projetou os motor-foguete do caça Me163 Komet). Esse novo tipo de submarino, quando em combate, seria movido por uma turbina de alto desempenho, acionada a peróxido de hidrogênio (que os alemães chamavam de Perhydrol), que lhe possibilitaria alcançar altas velocidades subaquáticas. Como a turbina não alcançou os resultados esperados, a equipe de Walter imaginou a possibilidade de obter oxigênio para mover seus motores diesel a partir da decomposição do Perhydrol, de forma a carregar baterias dos motores elétricos sob a água. A lentidão do desenvolvimento e os problemas observados no projeto, diante das perdas sofridas pelos submarinos entre o final de 1942 e o início de 1943 apontaram a necessidade de outra abordagem (uma explicação sobre os princípios desse projeto aqui).

Para que o desempenho subaquático esperado para o “Tipo XVIII” fosse realmente alcançado, um novo desenho de casco, baseado em nova filosofia foi imaginado: torná-lo altamente hidrodinâmico, planejado para permanecer submerso durante muito tempo sem chegar a ter a manobrabilidade comprometida pelas características híbridas dos “torpedeiros submarinos”.  

Dois engenheiros, Schürer e Bröking, tiveram a idéia de aproveitar os enormes tanques nos quais ficaria, no modelo proposto, o Perhydrol, para alojar baterias. O caso é que, no desenho proposto para o modelo Walter, um outro casco de pressão tinha sido acrescentado ao convencional, de modo a proporcionar armazenagem segura para o combustível altamente instável. O resultado era um casco de cujas seções lembravam um “oito”, feito em chapas de aproximadamente 3 centímetros de espessura, em liga de aço-alumínio, e que podia suportar mergulhos de até 280 metros. A parte inferior do “oito” constituiu uma enorme sala de baterias. Com as células extras acrescentadas, o desempenho do submarino crescia de forma exponencial.

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Seção de um "Tipo XXI" sendo transportada para a montagem. É notável a forma de "oito" do casco de pressão. Também é notável a solução hidrodinâmica do casco externo.

O desenho do novo vaso de guerra completou-se em junho de 1943. Os engenheiros acreditavam que poderia estar pronto para o serviço ativo por volta do inverno de 1944.

Era um desenho concebido para ser um “submarino verdadeiro” (aqui, uma impressionante animação digital pelo artista Jessi Hardin, caso você tenha o Adobe Flashplayer instalado), cujo campo de manobra seria as profundezas do Atlântico. Os conceitos incorporados eram não-convencionais, a começar pelo desempenho, muito além de qualquer coisa disponível, fosse pela Alemanha, fosse por seus inimigos: acreditava-se que a velocidade submersa poderia chegar a 18 nós (33,3 km/h), sob a água, maior do que na superfície, de 12 nós (22,2 km/h). Equipamentos de condicionamento e purificação de ar, chuveiros de água doce e lâmpadas de luz ultra-violeta, incorporados ao projeto, mostravam que o tipo tinha sido pensado para permanecer muito mais tempo submerso do que qualquer outro modelo existente: em certas condições o Tipo XXI podia permanecer até 11 dias sob a água, depois desses emergindo apenas por períodos muito curtos, de até cinco horas, ou usando o tubo esnorquel por tempo equivalente, para recarregar baterias.

Era no desenho do casco, totalmente limpo, sem quaisquer apêndices que não fossem absolutamente necessários, que as características de “submarino” apareciam claramente. Até mesmo os hidroplanos de proa podia ser recolhidos quando não estivesse em uso; não haviam canhões nos conveses e as baterias AAe de 20 mm eram montadas em torres de controle remoto incorporadas à vela. Equipamentos que tinham de se estender para operar (esnorquel, antenas e periscópios) se recolhiam para dentro da vela. Até mesmo esta parte teve seu desenho modificado: ao invés do posto de vigia tradicional, situado no alto daquela estrutura, uma espécie de convés aberto para o exterior, três pequenas aberturas eram fechadas por escotilhas, abrindo-se apenas quando necessário. Essas características “limpas” do desenho também resultavam numa assinatura de sonar mais discreta, e em um desempenho hidrodinâmico silencioso, o que tornava o Tipo XXI muito mais difícil de detectar do que os outros submarinos até então disponíveis.

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O U2540, atualmente em exposição no Museu Marítimo de Bremerhaven. As linhas limpas do casco interno anunciam a nova tendência para o desenho de submarinos.

O Tipo XXI incorporava equipamentos eletrônicos inovadores, inclusive um sonar ativo/passivo capaz de identificar e seguir diversos alvos. Montado na roda-de-proa, esse novo tipo de sonar permitia o lançamento de torpedos sem ter contato visual com o alvo, a partir de uma profundidade de até cinqüenta metros. Essa era outra característica que tornava essa classe de submarinos diversa de todas as outras existentes até então. Novos sistemas constituídos por carregadores automatizados de torpedos tornavam possível o lançamento de seis salvas (até seis torpedos em cada salva) em cerca de vinte minutos. Nos modelos anteriores, recarregar um único tubo podia tomar dez minutos, o que tornava o Tipo XXI muito mais ágil do que seus antecessores, tanto para atacar quanto para desengajar-se do combate. O desenho interno aumentou a capacidade de alojar torpedos de 14, no Tipo VIIC, para 23 unidades.

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Concepção artística de um submarino Tipo XXI submerso. Observe-se a protuberância na roda-de-proa, onde está instalado o moderníssimo sonar ativo-passivo Nibelungen. O trabalho é do artista digital Jessi Hardin.

A situação desesperada da arma submarina, em 1943, tornou o projeto a mais alta prioridade para a Marinha de Guerra, mas os outros tipos disponíveis continuaram sendo produzidos, notadamente os tipos VIIC e IXC, visto que não havia nada para substituí-los. Para acelerar os prazos de entrega, a técnica de construção do novo submarino foi modificada com base nos métodos usados na indústria de automóveis e de aeronaves. Oito seções modulares eram fabricadas em diferentes plantas industriais e, depois de transportadas por hidrovia, eram montadas num estaleiro. Esperavam os engenheiros que, com essa providência, poderiam explorar melhor as capacidades de cada unidade industrial, com a vantagem adicional de tornar mais difícil para os bombardeios aliados influir na produção. As dificuldades de alocação de material e mão-de-obra, combinadas com prazos irrealísticos e providências adicionais temerárias (como a eliminação de testes estáticos e da construção de protótipos) criaram diversos problemas, que se somaram aqueles que derivavam da originalidade do projeto. O novo método de construção não ajudou: fabricadas de maneira apressada, as seções modulares, depois de prontas, não atendiam aos padrões estabelecidos para o projeto. Em alguns casos, nem sequer chegavam a se adaptar direito umas às outras. Essa situação, combinada com a confusão estabelecida pelos bombardeios aliados – que, nessa época, tinham se tornando um problema real – acabou por criar gargalos industriais e logísticos de superação complicada, e atrasar todo o processo. O lançamento da primeira unidade deveria acontecer em maio de 1944, como comemoração da Marinha pelo aniversário de Hitler. Aconteceu, mas foi, no mínimo, um fiasco: o submarino foi mantido flutuando por bóias e rapidamente recolocado em doca seca, para ajustes e reparos. As unidades seguintes apresentaram problemas sérios na soldagem do casco de pressão e dos tanques de lastro, e tiveram de ser praticamente reconstruídas. Na prática, a pressa em completar o projeto fez o ano de 1944 ser perdido e as primeiras unidades aprovadas para serviço ativo foram entregues à Marinha em abril de 1945. Além do mais, os massivos bombardeios aliados freqüentemente danificavam as plantas industriais e os estaleiros, e chegaram até mesmo a destruir unidades prontas. Problemas adicionais foram provocados, curiosamente, pelo sucesso obtido nos testes de mar: a velocidade subaquática e a capacidade de lançar torpedos de grande profundidade exigiram o aperfeiçoamento de novas táticas; as diversas inovações da máquina exigiram outros métodos de treinamento, não apenas para as tripulações como para o pessoal de apoio em terra.

Os alemães esperavam que a produção inicial colocasse 300 unidades no mar, por volta de meados de 1944, alcançando 1000 unidades pelo início do ano seguinte. Dos 120 Tipo XXI que estavam em diferentes estágios de construção, no final do mês de abril de 1945, somente dois chegaram a ser mandados para o mar, em patrulha. Ainda que não tivessem entrado em combate, com o fim da guerra os relatórios apresentados pelos comandantes mostraram claramente as qualidades do projeto. Um desses barcos, o U2511 chegou a 600 metros de um cruzador britânico sem ser notado, armou os torpedos, mas no último momento, fez meia volta e regressou à base. Tinha recebido ordens do BdU (Befehlshaber der U-boote – “Comando dos Submarinos”), para suspender as operações. Essa última ação mostrou que, aquela altura, eles certamente não venceriam a guerra, mas seriam uma grande dor-de-cabeça para os aliados::

É um bom dia para pensar::

O historiador P. D. Smith escreveu um livro que foi recentemente traduzido para nosso português, e tem sido a leitura de cabeceira do redator nos últimos dois meses: Os homens do fim do mundo. Leitura um tanto pesada, mas esclarecedora aobre as relações entre guerra e ciência. E também sobre as relações quase sempre ambíguas dos cientistas com os assuntos da guerra e da política. Sugiro uma olhada cuidadosa não só aos sete leitores (contadinhos…), mas a todos quanto estejam realmentei interessados em entender um pouco mais sobre os nós de nossa modernidade. Em seguida, uma pequena amostra, selecionada de modo a também comemorar o fim da primeira matança industrial da história, que pudemos comemorar dois dias atrás – 11 de novembro, 1918::

Nenhum tiro foi disparado … um número considerável de russos envenenados pelo gás … jaziam deitados ou retorcidos, em condição lamentável. Senti-me profundamente envergonhado e perturbado. Afinal de contas, também sou culpado por essa tragédia. Otto Hahn, citado por P. D. Smith, p. 112.

Nunca esquecerei o que vi em Ypres, depois do ataque a gás. Homens caídos ao longo de toda a estrada entre Poperinghe e Ypres, exaustos, ofegantes, limpando um muco amarelo de suas bocas, com os rostos azuis e atormentados. Era horroroso, e era tão pouco o que podíamos fazer por eles. Nenhum texto de nenhum livro que eu tenha visto descreve, ou sequer chega perto, do horror daquelas cenas. Você saía daquele lugar com vontade de ir imediatamente ao encontro dos alemães para esganá-los, para que eles pagassem de algum modo pela sua ação diabólica. Melhor a morte súbita do que aquela agonia horrível. G. W. G. Hughes, tenente-coronel, Corpo Médico do Exército Britânico, citado por P. D. Smith, p. 117.

Como se fosse sob um mar verde/ Nos meus sonhos, diante de minha vista impotente/ Ele me procura, engasgado, soluçando e se afogando. Wilfred Owen (poeta-soldado, morto em ação na batalha do rio Sambre, 4 de março de 1918) Dulce et Decorum est, citado por P. D. Smith, p. 115.

Primeiro surpresa; em seguida, medo; depois, quando os primeiros flocos da nuvem os envolveram, deixando-os asfixiados e em agonia por não poder respirar – pânico. Os que conseguiam mover-se tratavam de escapar e de afastar-se, em geral em vão, da nuvem que os seguia inexoravelmente. Samuel Auld, químico, major do exército britânico, autor de um livro clássico sobre armas químicas, descrevendo um ataque com gás de cloro, na Frente Ocidental, em 1915, citado por P. D. Smith, p. 115.

Polícia para quem precisa de Polícia: não é rima nem solução::parte3

E eis que o redator prometeu e cumpriu! (Por incrível que pareça…) A seguir, a conclusão do artigo sobre as polícias brasileiras, com especial carinho às Polícias Militares dos estados brasileiros::

parte3Não é que não existam polícias militarizadas fora do Brasil. De fato, essas corporações também estão presentes em diversos países do mundo, sendo chamadas, genericamente, de “gendarmarias“. Essa instituição remete-se à uma tradição medieval européia, e a raiz da palavra é a expressão do francês arcaico gen d´armes, “gente de armas”. Se trata de corporações policiais cuja organização copia a das militares. Seus integrantes, denominados gendarmes, são policiais militarizados, e suas tarefas são principalmente o policiamento civil, embora em alguns países também cumpram funções de inteligência, guarda de fronteiras, guarda marítima e policiamento interno das forças armadas (lembram-se da feldgendarmerie dos filmes de guerra?.. Se você lê inglês, achará o texto interessante). A principal diferença para as Polícias Militares brasileiras é que, enquanto aquelas são em geral subordinadas à uma autoridade nacional (quase sempre o ministro do interior), no Brasil são corporações estaduais, subordinadas ao governador do estado. 

As Polícias Militares brasileiras não tinham equivalente no período colonial – muito embora algumas dessas corporações encontrem seus antecedentes em tropas de milícias e ordenanças (como, por exemplo, o Regimento de Dragões das Minas, criado no século 18). A primeira corporação militarizada foi a Guarda Real de Polícia da Corte, criada pelo Príncipe Regente D. João em 1809. Em Portugal havia uma corporação equivalente, formada em 1801, que recebeu ordens de permanecer em Lisboa quando da invasão francesa.

O modelo da tropa portuguesa e da equivalente criada no Rio de Janeiro (que a PMRJ reivindica como antecedente direto) foi a  guarda surgida na França em 1791. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão estabelecia que a segurança era direito natural e imprescindível, e os funcionários públicos encarregados de zelar por esse direito deviam servir a todos os cidadãos, e não apenas ao Estado e seus interesses. A tropa criada no Rio de Janeiro, entretanto, tinha nos negros e libertos, ou seja, nas classes mais pobres da sociedade colonial, o objeto de sua ação, pois a aristocracia portuguesa tinha dessas pessoas grande desconfiança. Os efetivos da Guarda eram recrutados entre as tropas de linha, e sua atuação caracterizava-se pela extrema violência. Ao longo da permanência da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, outros corpos policiais foram sendo criados, em Minas Gerais, no Pará, no Maranhão, na Bahia e em Pernambuco. Com excessão de Minas Gerais, onde a corporação não chegou a ser regulamentada, os outros corpos eram baseados no modelo adotado no Rio de Janeiro, constituídos com estrutura baseada na da tropa de linha: corpos de oficiais, estado-maior, companhias de infantes e de cavalaria, todos devidamente uniformizados e armados.

Esses corpos funcionaram de maneira irregular até 1831, quando da abdicação do imperador. Os governos regenciais realizaram reformas significativas nas forças armadas brasileiras, notadamente no exército, corporação que não gozava da confiança das classes políticas em função do estado permanente de indisciplina das tropas. O efetivo foi sendo paulatinamente diminuído, os oficiais (em boa parte estrangeiros), demitidos e os mercenários, dispensados. O Ato Adicional à Constituição de 1824 tentou contornar a situação extinguindo as milícias e ordenanças (tropas temporárias mobilizadas nas províncias, cuja origem remontava ao período colonial)  e criando a Guarda Nacional, espécie de força auxiliar diretamente comandada pela aristocracia terratenente. A Guarda Real de Polícia e seus equivalentes provinciais foram extintos, substituídos pelo Corpo de Guardas Municipais Voluntários. Embora autorizadas a criarem corporações do mesmo tipo, as províncias não estavam obrigadas a isso. Os legislativos locais passaram a fixar, anualmente, por solicitação do Presidente da Província, qual o efetivo das forças policiais – o que não significava que fossem, de fato, contratadas. Esse sistema nunca funcionou plenamente, e as Guardas Municipais foram sendo desmobilizadas, substituídas por Corpos Policiais – tratava-se de  mudança significativa, equivalente, de fato, à reestruturação da corporação, cujo modelo foi o exército. Alguns especialistas na matéria consideram que são esses Corpos, de fato, os antecedentes das PMs estaduais. É possível observar nessas iniciativas certa inspiração liberal (alguns artigos da constituição dos EUA foram copiados), caracterizada na tentativa de mobilizar cidadãos para as tarefas de defesa nacional e segurança pública. Mas o fascíno liberal tinha fôlego curto numa sociedade escravista, e o que havia, de fato, era a desconfiança das classes proprietárias com relação às classes pobres e aos escravos, e da possível predominância política do Rio de Janeiro.

Durante a Guerra do Paraguai, os Corpos Policiais acabaram sendo mobilizados para completar os efetivos de tropas despachadas para a frente de combate. Nessa época, não era incomum que o governo pensasse em desmilitarizar a polícia. O problema maior era a carência de recursos financeiros, obstáculo para a implantação de uma solução desse tipo. A guerra agravou a falta de dinheiro, e em algumas províncias  os Corpos Policiais quase deixaram de existir. No Rio de Janeiro tentou-se a criação, em 1866, de uma força policial civil, a Guarda Urbana. Essa nova corporação deveria atuar junto com o Corpo Policial, que não perderia suas características de força policial composta por um quadro militar, enquanto a nova seria composta por pessoal civil uniformizado. Muito pouco eficiente, essa guarda civil foi praticamente desativada depois de 1883 e extinta, definitivamente, com a Proclamação da República.

Entretanto, o novo regime não apenas manteve os Corpos Policiais como acrescentou-lhes a designação “militar”. Com a promulgação da Constituição de 1891, com sua tendência fortemente federalista, as províncias, transformadas em “Estados da Federação”, passaram a ter o controle pleno dos “Corpos Militares de Polícia” e é dessa época a nomenclatura que passaram a ter, nos estados: “Força Pública”, em São Paulo; “Brigada Militar”, no Rio Grande do Sul; “Regimento de Segurança”, no Paraná – foram alguns dos nomes adotados. Na prática, essas tropas passaram a funcionar como uma espécie de exército local controlado pelo governador, preparado para resistir à possíveis intervenções do governo central. Os estados mais ricos (como São Paulo e Minas Gerais) montaram forças dotadas de armamento militar e recebendo treinamento desnecessário às tarefas policiais cotidianas. A Força Pública do Estado de São Paulo chegou até mesmo a adquirir armamento para a luta de trincheiras, aviação e artilharia anti-aérea (foi a primeira corporação militar no Brasil a contar com tal tipo de arma). Às vésperas da Revolução de 30, era o segundo exército da América Latina, em efetivo, atrás apenas do próprio Exército Brasileiro; já a Força Pública de Minas Gerais contratou um coronel suiço para funcionar como instrutor de operações de guerra. Em 1915, no bojo de uma reforma, o Exército conseguiu que as forças policiais militarizadas dos estados, a começar pela Brigada Militar de Capital e o Corpo de Bombeiros, fossem, em caso de emergência nacional, incorporadas. Embora os militares vissem a militarização das polícias com desconfiança, havia certa unidade de princípios e até afinidade entre as corporações, procurando as polícias militarizadas copiar doutrinas e padrões comportamentais do exército. Isso resultou na emulação da estrutura, com unidades “de infantaria” e “de cavalaria”, batalhões, companhias e pelotões organizados e comandados como na força terrestre e equivalência de postos para oficiais, graduados e praças. Observou-se também a adoção de uniformes de passeio e de serviço iguais aos do exército e a tentativa de se apropriação da tradição militar nacional.

O resultado dessa trajetória foi que, na Revoluções de 1930 os “exércitos estaduais” se posicionaram conforme a tendência observada do governador a que estivessem subordinados. Em São Paulo, imediatamente após a consolidação do novo regime, o Governo Provisório diminuiu drasticamente os efetivos da corporação e apreendeu armamento considerado inadequado. Ainda assim, a Força Pública constituiu o núcleo do exército revolucionário que, durante três meses, resistiu às forças federais – em grande parte também formadas por efetivos policiais mobilizados nos estados.

Tudo isso resultou durante o período, em algum grau de desmobilização das polícias militarizadas estaduais. Certamente, num regime como foi o de Vargas, a polícia iria assumir papel fundamental, passando a lhe caber, além das funções tradicionais de manutenção da ordem pública e controle das classes subalternas, também o monitoramento e controle de grupos políticos dissidentes e possíveis “inimigos do Estado”. Nos primeiros meses de seu governo, Vargas promoveu um expurgo nas polícias civis do Distrito Federal e dos estados. Quadros vistos como de oposição, de pouca confiança ou mesmo como “indiferentes” foram substituídos por pessoal de confiança. Situação de todo inusitada, a polícia do Distrito Federal passou a ser órgão da presidência da República, respondendo diretamente ao ministro da Justiça. As polícias estaduais passaram a se reportar, através dos interventores estaduais, à polícia do Distrito Federal. O objetivo dessas mudanças era criar uma rede nacional de vigilância política, centralizada na capital da República e articulada pela Polícia Civil, que, na prática, transformou-se em polícia política. A inspiração vinha dos serviços de segurança da Alemanha nazista, onde estagiaram diversos policiais brasileiros. A Polícia Militar do Distrito Federal foi, nesse quadro, peça fundamental na articulação de um “esquema militar ” de sustentação do governo, esquema que sobreviveria mesmo após a queda do regime, em 1945. Em 1946 a nova constituição implementou uma reforma parcial da organização policial, devolvendo o controle aos governadores – mas o sistema de polícia política não chegou a ser desativado.

As polícias militares voltaram ao controle civil, após mais de dez anos subordinadas ao Exército. As funções atribuídas à essas corporações se diversificaram bastante, o que implicou no aumento do efetivo e na especialização interna. Durante o regime Vargas, com os efetivos bastante diminuídos, as polícias militares atuavam basicamente nas grandes cidades, como uma espécie de guarda republicana, e no interior, como destacamentos de policiamento independentes. Nas grandes cidades o policiamento de rua era exercido por guardas civis, ramo das polícias civis. Isso resultou em problemas de jurisdição entre as corporações policiais, o que até então nunca tinha sido registrado. 

O golpe militar de 1964, ao implantar um regime discricionário, ampliou o poder das Forças Armadas mas, para estender o controle da sociedade, teve de recorrer ao aparato policial existente. O resultado foi a disseminação da violência policial, com o afrouxamento dos controles sobre a atuação das corporações, controle que já não era, de modo algum, rígido. A extensão do conceito de “segurança nacional” resultou em um estado policial, em que cada órgão, independente do caráter, era visto como “de segurança”. Decorre daí uma série de consqüências estapafúrdias, como a transformação de quartéis de bombeiros em “centros de triagem de presos políticos” (eufemismo para “centro de tortura”), implantação de “divisões de segurança e informações” (na prática, um tipo de polícia política interna dos órgãos públicos) em repartições como a Legião Brasileira de Assistência e a Companhia Brasileira de Armazés Gerais, e a instrução a psiquiatras e psicólogos militares para vigiar seus pacientes. A disseminação de “métodos de abordagem direta” resultou em que praticamente o único método de investigação utilizado era a violência física contra o detido. A “cobrança de resultados” e a independência de ação gozada por membros de serviços de segurança (chamados, na época,  “comunidade de informações”) acabou gerando uma situação de anarquia em todos os níveis e no transbordamento desses métodos para virtualmente todas as esferas de atuação policial.

Nesse contexto, foi reservado à polícia militar o papel de força auxiliar ativa, e não apenas de “reserva de contingência”, como tinha sido até então. As corporações passaram à subordinação do Exército, formalizada em 1967 com a criação da  Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM). A Constituição Federal de 1967 manteve as polícias militares sob controle dos governadores, mas introduziu uma novidade: unificou o aparato policial e extinguiu as guardas civis. Os efetivos dessas foram absorvidos na tropa, que passou a ser responsável pelo patrulhamento ostensivo das cidades – quer dizer, pelo controle do espaço urbano e da circulação de pessoas e bens. A oficialidade PM começou a frequentar cursos especializados em levantamento e análise de informações e de contra-insurgência; a tropa recebeu treinamento de controle de multidões e de combate à ações de guerrilha urbana e rural. 

O comando civil, por sua vez, mostrou-se meramente decorativo, pois cabia ao Ministro do Exército a nomeação dos comandantes das forças policiais. Oficiais do Exército na ativa eram freqüentemente designados para o comando, à revelia dos chefes do executivo local. A política de segurança pública passou a ser elaborada pelas Forças Armadas, com base em seminários realizados na Escola Superior de Guerra. Essas mudanças de conceito geraram distorções que ainda hoje afetam a concepção e condução das ações de segurança pública.

Toda essa situação chegou ao ápice com a transfência para a Justiça Militar da competência de julgar crimes cometidos em serviço. Essa medida, de 1977, foi justificada como decorrência da “situação de guerra” vivida pelo país, que pedia (segundo o regime militar e sua claque política) a “flexibilização” da interpretação das ações realizadas contra inimigos do Estado armados e decididos, e do resultado dessas ações. Rapidamente, essa concepção – em última análise, absoluta liberdade de ação para os elementos em campo – foi incorporada às tarefas policiais propriamente ditas, que passaram a ser vistas como ações de uma guerra interminável contra o crime.

As políticas implementadas pelo regime militar, de “desenvolvimento a qualquer custo”, resultaram em crescente deterioração das condições sociais e urbanas do país, que explodiram nos anos 1980, numa crise econômica e social aparentemente interminável. Nas grandes cidades, um das conseqüências mais visíveis e virulentas foi o ambiente de guerra não declarada, com um nível por vezes absurdo de insegurança e violência. O regime civil reestabelecido em 1985 não demonstrou vontade política de reverter a situação criada ao longo das duas décadas anteriores. Para agravar a situação, durante a Constituinte inaugurada em 1987, as diversas acomodações feitas entre antigos adversários políticos tornados aliados de ocasião criaram distorções que acabaram incorporadas ao texto constitucional. Especialistas concordam que, com relação à segurança pública, a mais séria delas é a manutenção, intocado, do caráter das polícias militares de forças auxiliares e reserva do Exército, aprodundado durante o regime militar. O controle civil, representado pelo comando dos governadores, restabelecido pela Constituição, acabou anulado pela subordinação à lei federal. Os governadores nomeiam os comandantes das polícias, mas estão proibidos de tomar a iniciativa de reestruturar o aparato policial em caráter local. Essa contradição resulta em que o estado de São Paulo continua vendo como “motivo de orgulho” ter um exército de 100.000 efetivos em “guerra contra o crime”.

É essa a situação atual. Claro que reformar a polícia não significará o restabelecimento da ordem urbana. Tem sido constatado, ultimamente, que o problema de fundo é a total falência do modelo de cidade vigente no Brasil, implantado durante o regime militar mas mantido e até estendido ao longo dos últimos 25 anos – o tempo de vigência, em nosso país, do estado de direito. É preciso, antes de mais nada, pensar que talvez nossos paradigmas, de tão obsoletos, não dêem mais resposta alguma a nossos problemas. Mas enquanto não aparece alguém disposto a encarar seriamente o problema, reformar uma polícia militar concebida para ver pobres como inimigos e o meio urbano como campo de batalha talvez seja um começo::

Por sinal, é impossível não citar um ótimo recurso – não apenas de pesquisa, mas de reflexão – para quem esteja interessado no assunto: o blogue surpreendentemente bom, Policiamento inteligente. Ao longo dos dias em que o redator aqui do causa:: pesquisou um tema com o qual não tem lá muita intimidade, bebeu e embededou-se com o texto agradável e erudito do soldado PM Aderivaldo.::

Polícia para quem precisa de Polícia: não é rima nem solução::parte2

O redator jurou pela saúde dos filhos que não tem e pela lisura de nosso políticos, que publicaria a prometida seqüência ainda hoje. Que nossos representantes fiquem honestos não seria má idéia, mas péssima idéia seria, por outro lado, que meia dúzia – de duas ou três… – antigas namoradas do redator aparecessem de repente pedindo testes de DNA. Assim, como não crê o redator em bruxas, etc. etc., aí vai a parte 2, que, espera, trará mais alguns esclarecimentos sobre o assunto “polícia”. Divirtam-se pois os sete leitores (contadinhos…):: 

parte2De um modo geral, o termo “polícia militar” não corresponde à definição corrente que temos dele. Se trata, de fato, de efetivos militares, parte das forças armadas, que exercem o poder de polícia, conforme já esclarecido acima, nos limites institucionais e físicos das forças armadas. Isso significa que às “polícias militares” caberá manter a integridade e a segurança dos membros das forças armadas, das propriedades militares, investigar crimes militares e deter suspeitos desses crimes. No Brasil, esse tipo de polícia é chamado de “Polícia do Exército”, “Polícia Naval” ou Polícia da Aeronáutica”, dependendo da corporação de que estivermos falando.

Mas falar de “polícia militar”, relativamente às forças armadas, não tem nada haver com “justiça militar” – que também existe em quase todos os países que tem forças armadas e alcança os cidadãos incorporados à essas forças, bem como aqueles que, mesmo em situação de civis, tenham cometido crimes tipificados como crimes militares. Nos EUA, por exemplo, os militares estão sob as regras estabelecidas pelo Códico Uniforme de Justiça Militar (UCJMUniform Code of Military Justice), que se aplica a todos os membros de corporações uniformizadas dos Estados Unidos: Exército, Força Aérea, Marinha, Corpo de Fuzileiros Navais. A Guarda Costeira e os membros de serviços civis, como a Administração Nacional de Atmosfera e Oceanos (NOAA) e o Serviço de Saúde Pública (por exemplo), quando operando, por determinação presidencial, militarizados (geralmente acontece em tempo de guerra ou de emergência nacional), também ficam subordinados ao UCJM, assim como os membros da Guarda Nacional dos EUA em período de incorporação e alunos de escolas militares de todas as corporações.

A Justiça Militar dos EUA tem advogados, juízes e promotores militares, mas as punições previstas no Código Uniforme podem, dependendo da gravidade do ilícito, ser de ordem administrativa, determinadas pelo comandante do infrator. Já as medidas penais ficam a cargo das Cortes Marciais, e podem ir de medidas administrativas (admoestação, verbal ou escrita; treinamento adicional; reprimenda e punição não-judicial) até a demissão. Ilícitos mais sérios são enviados aos Tribunais Militares, compostos de  Cortes Sumárias, formadas por oficiais militares, prevendo penas de multa e prisão temporária. As Cortes Especiaìs lidam com crimes de maior gravidade, e são formadas por oficiais especialmente indicados. Essas Cortes podem sentenciar a penas de prisão até um ano e “baixa desonrosa”.

No caso da Grã-Bretanha, as funções de justiça militar são responsabilidade do Juiz-Advogado Geral (em inglês, JAG – Judge Advocate General), um juiz civil indicado pela Coroa Britânica para presidir a justiça militar. Já no caso francês, uma lei de 1982, relativa à instrução e ao julgamento de infrações militares e de segurança do Estado modificou os códigos de procedimento penal e de justiça militares, suprimindo, em tempo de paz, o Alto Tribunal Permanente bem como os tribunais menores das forças armadas. Em tempo de guerra, a juridição militar sobre certos crimes foi mantida. Entretanto, continua existindo um “Código de Justiça Militar”, só que as infrações relacionadas, assim como as infrações comuns cometidas por militares em serviço ativo passaram à competência da justiça comum. Entretanto, existe uma alta corte e tribunais especializados que cuidam da instrução de processos por crimes militares, bem como do julgamento de tais crimes. A acusação, nesses casos, é conduzida por procuradores da República especialmente designados. A Alemanha, depois de 1955, também aboliu as cortes militares em tempo de paz, e os autores de crimes militares cometidos em tempo de serviço são entregues à justiça comum.

No Brasil, a Justiça Militar federal é exercida pelo Superior Tribunal Militar. Essa corte foi criada em 1º de abril de 1808, pelo Príncipe-Regente D. João, com a denominação de Conselho Supremo Militar e de Justiça. Após a proclamação da República, passou a chamar-se Supremo Tribunal Militar e, depois de 1946, assumiu o nome atual. No Brasil os juízes do STM são escolhidos pelo presidente da República entre oficiais-generais das forças armadas, que são a maioria no Tribunal. Cinco dos 15 membros são juízes civis. O exercício do cargo de Ministro do STM é vitalício.

Vemos então que a expressão “polícia militar” nada tem com a “Justiça Militar” e, para complicar as coisas, no Brasil, “Polícia Militar” não tem nada haver com “polícia militar”. Não é que não exista algo semelhante à “Polícia Militar” (brasileira), em outros países. Em geral essa função é exercida por uma instituição também militarizada, chamada genericamente de “Gendarmeria”. Essa palavra se remete à instituições medievais e seu radical é a expressão gen d´armes, ou seja, gente de armas, em francês arcaico. São, de fato  polícias militarizadas, responsáveis por tarefas policiais convencionais, mas consideradas fora do escopo das polícias civis. São estruturadas em uma hierarquia vertical, como nas forças armadas, e, administrativamente, em unidades com tarefas específicas de policiamento e defesa civil. São geralmente vinculadas aos ministérios do interior, e não são consideradas reserva das forças armadas::

Polícia para quem precisa de Polícia: não é rima nem solução::

Semanas atrás falamos muito na Polícia Militar do Rio de Janeiro. Dizendo de forma mais exata, fala-se sempre muito da PM, seja no Rio, seja em qualquer outro estado brasileiro. As PMs são parte da vida urbana moderna, em nosso país. Deveriam ser uma das instituições de estruturação do cotidiano das cidades – e, se pensarmos bem, de fato, são, pois sua presença alcança a ubiqüidade: estão em todos os lugares ao mesmo tempo. Certo, os sete leitores já perceberam – o redator está sendo deliberadamente exagerado, e se um dos sete tiver vocação para piadista, certamente responderá: “em todos os lugares menos naqueles em que precisamos”. Mas como este blogue-recurso de pesquisa não está aqui para adiantar o lado de ninguém – nem mesmo dos sete leitores (contadinhos…), é hora da pergunta: os caros leitores sabem exatamente no que se constituí uma “polícia militar”? Ou até melhor: os caros leitores sabem do que se trata uma “polícia”? Tentemos introduzir o assunto… Essa pesquisa é longa, de modo que vamos dividi-la em três partes, mas o redator jura pela saúde dos filhos que não tem e pela lisura dos mebros do Poder Legislativo, que as publicará aindahoje::

parte1De um ponto de vista geral, polícia a denominação atendida por um dos braços do Estado, uma corporação cujas funções podem ser agrupadas em três grandes linhas: garantia da lei, implementação da segurança pública e manutenção da ordem pública no interior das coletividades.  Dizer que a polícia é um “braço do Estado” significa dizer que suas funções são permanentes e relativas à esfera do Estado (quer dizer, não podem ser reproduzidas por cidadãos ou instituições privados). Isso significa que a polícia e os policiais não são funcionários do governo, mas do Estado, o que não é pouca coisa – esses agentes têm garantias para o exercício de suas atividades, não podem sofrer represálias pelo cumprimentos de suas funções, enquanto esse cumprimento se der de forma regular e estão submetidos à normas que só podem ser mudadas por lei. Resumindo, a função policial está prevista na Constituição Federal (mais exatamente no Artigo 144) e, por decorrência, nas constituições estaduais dela tributárias. Até aí, nada demais, porque é assim em todos os estados de direito. A preservação da ordem pública em seus aspectos é um monopólio do Estado, para o bem do corpo de cidadãos. Nenhum outro órgão que não esteja previsto em lei possui competência para exercer as funções de segurança pública. O contrário constitui a figura chamada, na legislação de “usurpação de função”. Não se deve, entrentanto, confundir “polícia”, a instituição, com “poder de polícia”, que é uma figura do Direito e diz respeito à capacidade que os agentes do Estado tem em aplicar e fiscalizar as funções exclusivas do Estado, como a expedição de licenças, cobrança de impostos e fiscalização de esferas da vida pública. É claro que a polícia tem “poder de polícia”, porque este diz respeito à atos e ações restritivas, como, por exemplo, impedir que um cidadão privado ligue sua casa à rede de fornecimento de eletricidade ou água, ou cometa atos ilícitos em benefício próprio, em detrimento da coletividade.

Isso tudo pode se explicar caso examinemos a etimologia da palavra: “polícia” vem do vocábulo grego politeía, ou seja, o conjunto de características que conformavam a vida dos cidadãos como conjunto. Em Roma, esse termo, traduzido por politia, começou a ser aplicado também ao Estado e a seus agentes, e às medidas do governo destinadas a implementar o funcinamento da cidade. Qualquer pessoa, mesmo não muito atenta, notará que os termos “polícia” e “política” têm o mesmo radical. Isso porque, a partir da Idade Moderna, o termo “política’ passou a adquirir o sentido de “o processo social através do qual, nos sistemas sociais, o poder coletivo é gerado, organizado. distribuído e usado”. O trecho aspeado foi resumido a partir de formulações do sociólogo marxista Tom Bottomore (do qual o redator é fã), mas, via-de-regra, quase todas as linhas de pensamento concordam com o conteúdo. Nas sociedades primitivas, uma pessoa ou grupo enfeixava o poder de Estado – e esta instituição não existia. Quando o Estado foi inventado, a partir do surgimento da agricultura e das cidades (uns dez mil anos antes do presente), sua estrutura era muito simples: um único órgão supremo cuidava de diferentes funções, como defesa externa, ordem pública, controle dos bens e serviços coletivos e, ainda por cima regulava certas funções religiosas. A complexidade crescente e a diversificação das atividades “de Estado” acabou por exigir que parte do poder fosse delegada, de modo a desconcentrar o exercício. Um corpo especializado de cidadãos, mobilizados pelo poder superior, começou a desempenhar, de modo autorizado, funções que antes eram concentradas no palácio (o que significa dizer “na autoridade superior”). Esse processo foi muito lento e não se deu sem percalços, mas, ao longo da Idade Moderna, não apenas as funções de Estado como – principalmente – a função legislativa, já começavam a ser exercidas por representação delegada e autônoma dos cidadãos. O surgimento dos parlamentos e de corpos de funcionários públicos parcialmente independentes do poder superior é o ponto de chegada desse processo. Essa formulação (que está muito resumida e simplificada), foi sistematizada pela primeira vez por John Locke, que forneceu elementos para que Charles de Montesquieu elaborasse a teoria da separação dos poderes.

Isso mostra, de forma clara (pelo menos o redator assim o espera…) que “polícia” é um caso de política, e não o contrário como infelizmente tem parecido, nos últimos anos. E, até onde o redator saiba, não existe país que não tenha polícia. O sociólogo norte-americano Egon Bittner, elaborador, nos anos 1970, de uma “teoria da função da polícia” e autor de um livro básico sobre a questão (uma resenha pode ser encontrada aqui), notou que grande parte do trabalho policial não se volta para prender criminosos. Os policiais também são responsáveis pelo controle de trânsito, controle de multidões, procura de desaparecidos (mesmo quando não há suposição direta de crime), resolver disputas entre cidadãos ou auxiliar outros serviços públicos. Ainda que não sejam tarefas estritamente policiais, nessas situações pode se colocar a necessidade de uma resposta rápida de caráter coercitivo. Assim, Bittner argumenta que as funções da corporação policial podem se expressar como forma muito simples: prevenção e repressão ao crime e manutenção da ordem pública, através do uso legítimo, quando necessário, e com discernimento, da força. “Polícia é aquela organização que tem a legitimidade de intervir quando alguma coisa que não deveria estar acontecendo, está acontecendo, e alguém tem que fazer alguma coisa agora”, diz ele.

Qualquer pessoa notará que Bittner fala a partir de um ponto de vista norte-americano (ele pesquisa e dá aulas nos EUA) e se refere à instituição policial como um bloco mais-ou-menos uniforme. No Brasil, a situação é diferente, visto que temos corporações policiais diferenciadas, encarregadas pela sociedade brasileira (através de seus legisladores, no texto constitucional) das tarefas de manutenção da lei e da ordem. Já vimos também como o Artigo 144 da Constituição Federal estabelece que instituições policiais serão formadas, no Brasil, pelas instâncias de Estado e qual delas fará o quê. Não são poucas, mas estão dentre os órgãos do serviço público claramente identificados e definidos pelos cidadãos.

A Polícia Federal como o nome diz, é uma instituição federal mantida pela União. Cabe à essa corporação, subordinada ao Ministro da Justiça, apurar infrações contra a ordem política e social ou contra bens, serviços e interesses da União ou de suas autarquias e empresas,de alcance interestadual ou internacional. Já a Polícia Rodoviária Federal é o órgão organizado e mantido pela União destinado ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais. A Polícia Ferroviária Federal tinha funções equivalentes com relação ao patrulhamento das ferrovias federais. Com a privatização da Rede Ferroviária Federal, que seguiu métodos altamente questionáveis, a PFF foi desestruturada, e está, atualmente, em processo de reestruturação.

As Polícias Civis pertencem à esfera estadual, subordinadas, geralmente, às secretarias de Segurança Pública. São comandadas pelo  Secretário da matéria e dirigidas e operadas por funcionários carreira, os “delegados de polícia”. Contam com funcionários especializados com a função de conduzir “inquéritos policiais” – função esta chamada “de polícia judiciária” – ou seja, auxiliar a Justiça, apurando os responsáveis pelas infrações penais e instruindo os processos para propositura de ação penal. Infrações consideradas do âmbito militar não estão sob responsabildade da Polícia Civil, que também deve observar as competências da União. Os inquéritos são presididos por um delegado de polícia. A competência dessa autoridade é geralmente determinada em razão do local, chamado de “circunscrição”, onde aconteceu a infração, embora não haja impedimento para que se  distribua a competência da apuração em função da natureza da infração. Falando de outra forma, existem delegacias especializadas na investigação de determinados crimes (roubos, homicídios, tráfico de drogas, crimes contra mulheres e idosos, e por aí vai), com equipes especializadas. É bom frisar que as atribuições da Polícia Civil são administrativas, não cabendo a emissão de nenhuma espécie de juízo – este atribuição exclusiva da Justiça Criminal. Ou seja: esclarecido o crime e instruído o processo, esse é remetido à Justiça, que tratará do julgamento e do estabelecimento da pena.

Todos os agentes ligados às corporações de que estamos falando são civis, quer dizer são cidadãos recrutados pelo Estado, através de métodos específicos, e subordinados diretamente às normas e autoridades civis. Pode parecer redundante, mas é sempre necessário esclarecer que um policial é “civil”, já que esta condição o distingue, para todos os efeitos, de um “policial militar” – que (evidentemente…) é o membro de uma “Polícia Militar” (um pouco de paciência com o trocadilho infame é necessária e caridosa…)::