Pensamentos de fim de semana::Ainda precisamos de forças armadas?::

Eis que abro o vibrante matutino carioca – O Globo, claro… – no último sábado (2 de julho) e dou de cara com um artigo de meia página e cinco colunas sobre o caça francês Rafale. O que me faz lembrar que o FX2 ainda existe, apesar de ninguém estar mais falando nele.

Se ninguém mais está, então por que a lembrança, logo no vibrante paladino da imprensa escrita? É que nós, meros mortais que não entendemos dessas coisas, podemos estar recebendo as informações que (na opinião de governo, jornalões e outros formadores de – nossa – opinião) precisamos, mas a campanha de marketing das empresas produtoras de armamento – atoladas até o pescoço na falta de demanda – continua ativa. Assim, parece que mais um bando de jornalistas viajou até a cidade de Bordeaux para uma visita à principal planta da empresa Dassault Aviation, candidata a vender 36 aeronaves dentre as que equiparão a FAB pelos próximos 40 anos. A matéria, assinada pelo jornalista Chico Otávio, não acrescenta nada que alguém, mesmo que apenas medianamente informado sobre assuntos militares, já não saiba. O redator, repórter de larga experiência em assuntos de política nacional, até que tentou fazer o dever de casa, para compensar o jabá de alguns dias na França, com tudo pago. Sem grande sucesso: Chico demonstra não entender do assunto, as informações sobre o projeto FX2 não esclarecem nada e, sobre a indústria aeronáutica francesa, dá a informação – estapafúrdia – de que a Dassault poderá “acabar” por causa do altíssimo aporte de tecnologia concentrado pelo Rafale.

Mas a cereja desse divertido bolo torna o quitute todo preocupante. Quase no fecho da “matéria” (que mais parece um press release), Chico, depois de manifestar sua admiração pela tecnologia francesa, afirma que o maior problema do Rafale é o preço – quase 80 milhões de dólares por unidade. E, diz ele: “O negócio todo, incluindo o armamento e o suporte técnico, chega a 8 bilhões de dólares, um desembolso considerável para um país cuja única guerra em andamento é contra a pobreza.”

Touché – diria eu, se fosse francês. É muito provável que seja esse o som da voz do dono. Ao longo dos últimos anos, quem quer que acompanhe o assunto tem pelo menos uma história de jornalistas que “acham melhor empregar esse dinheiro em cultura”, em “melhorar a saúde” em “educação de base”. Ainda que sem a hombridade de uma declaração aberta e franca, parece ser mais ou menos esta a opinião da autoridades governamentais de plantão – e já passa o quarto governo  desde que se começou a falar em FX. No caso em particular, governo e imprensa parecem estar de acordo.

Entende-se que jornalistas e outras categorias de leigos achem que “soberania nacional” e “defesa nacional” são conceitos vazios, numa época de “globalização”, e que seja possível uma participação ativa nos fóruns internacionais sem forças armadas ou indústria de defesa. De fato, o fim da Guerra Fria obrigou quase todas as nações da planeta a repensar suas políticas de defesa, organizações militares e indústria militar. Essas revisões em geral têm implicado em fortes cortes de orçamento e mesmo cortes físicos.

Na Grã–Bretanha, por exemplo, tornou-se realidade a “Revisão da Estratégia de Defesa e Segurança”, que significou, na prática, uma redução de 8% no total dos gastos militares, embora o governo conservador tenha afirmado que o limite do corte são os compromissos com a OTAN (o Tratado do Atlântico estipula que o orçamento militar alcance pelo menos 2% do PIB de cada país-membro). Como resultado dos cortes orçamentários, foram cancelados programas considerados ineficientes, dissolvidas unidades e fechadas bases e quartéis das três forças. Na RAF, o caça tático V/STOL (decolagem/aterrissagem curta ou vertical) Harrier, será desativado e retirado de serviço ainda em 2011. Os jatos de ataque Tornado GR.4 serão mantidos, embora em apenas dois esquadrões (eram seis). A RAF deverá fechar algumas bases e instalações consideradas “não-indispensáveis”. Por enquanto, os cortes atingem apenas os programas de transição para o conceito denominado Future Force 2020, que deverá, nos próximos dez anos, padronizar o equipamento. É intenção das autoridades que , por volta de 2022, os principais meios da RAF padronizados e reduzidos drasticamente, em função da eficiência: por volta de 130 unidades do caça multifuncional EF2000 Typhoon, e outras 150 do F-35, do Programa JSF (Joint Strike Fighter). O Airbus A400M (caríssimo e cheio de problemas) substituirá todos os transportes C-130 e C-17; o programa FSTA (Future Strategic Tanker Aircraft) programou a aquisição de 14 Airbus A330MRTT, que substituirão os aviões-tanques atualmente em serviço. Aeronaves de Inteligência Eletrônica, ligação e treinamento praticamente irão desaparecer, reduzidas em dois para cada três. A Marinha Real manteve os NAe classe Queen Elizabeth apenas porque o programa está muito adiantado para ser cancelado. Os dois navios serão terminados, mas um deles será imediatamente posto em reserva. Outros navios de primeira linha tiveram seus projetos cancelados, e fala-se numa redução total de até um terço da esquadra, que deverá ser reduzida a 120 unidades, sendo que cinquenta de primeira linha.

A situação é mais ou menos a mesma em toda a Europa. O problema é que as principais potências militares têm também parrudas indústrias de defesa, cujos principais clientes são sempre as forças armadas nacionais. Já os países pequenos, da periferia da OTAN, como Bélgica, Portugal e Islândia reduziram drasticamente suas forças armadas – que já não eram grande coisa. No caso da Grécia, compras de armas superdimensionadas, ao longo dos últimos dez anos foram, segundo especialistas, parcialmente responsáveis pelo tamanho da encrenca atualmente vivida por aquele país. Aquisições de sistemas de armas “estado da arte”, particularmente da Alemanha, dos EUA e da Rússia foram consideradas fora de propósito, levando-se em conta a diminuição da importância estratégica do país depois do fim da URSS e da retirada das forças soviéticas dos países vizinhos. Ainda assim, desde os anos 1990 a Grécia tornou-se o único país da esfera da NATO a expandir suas forças armadas: foi criado um sistema de defesa aérea considerado por especialistas como uma extravagância, equipado com sistemas norte-americanos (MIM104 Patriot 3 Advanced Capability), russos (S300, TOR M1e SA8) e franceses (Crotale NG/GR). A Marinha adquiriu submarinos alemães tipo IKL 214 e pretendia incorporar pelo menos duas fragatas classe FREMM (a mesma classe pretendida pela MB); o Exército pretendia, nos próximos dez anos, receber pelo menos 170 Leopard 2A6EX totalmente novos, numa versão fabricada localmente. E por aí vai. Mas agora, com a explosão da crise, é muito pouco provável que essas aquisições de armamento prossigam. Os fornecedores terão de mete-los em algum lugar, caso contrário a falta de encomendas significará, fatalmente, desemprego em seus países.

É claro que sempre existe a possibilidade de tentar empurrar equipamentos de última geração a preços módicos para países endinheirados do mundo “em desenvolvimento”. Mas existe uma inflação desses sistemas de armas modernos e falta de clientes interessados, principalmente após a crise de 2008. A Rússia é vendedora de sistemas de ótima qualidade em condições muito competitivas; a China parece querer desenvolver a própria indústria de defesa – o que significa que será um negociador duro; a Ìndia tem se mostrado o mercado mais promissor – fala-se em compras da ordem de 40 bilhões de dólares nos próximos dez anos. O Brasil…

As forças armadas nacionais têm sido tratadas, desde o fim do regime militar, a pão e banana. Mesmo durante os anos de chumbo, parecia não haver clareza sobre o papel a ser cumprido pelos militares profissionais. O fato de que a América Latina situa-se numa região estrategicamente secundária , depois da Segunda Guerra Mundial, não ajudou a aprofundar essa discussão. Durante a Guerra Fria, o papel reservado às nações dessa parte do globo, sem exceção subdesenvolvidas e cheias de problemas sociais e políticos foi quase o de polícias de si mesmas. Os inimigos projetados eram internos, sendo que a defesa hemisférica era dada como papel dos EUA, sendo reservado às forças militares locais um papel muito limitado.

Os arroubos de “potência” dos governantes militares, entretanto, provocaram certa expansão das forças armadas e a tentativa de estabelecer uma indústria nacional de defesa. Esses projetos sempre estiveram articulados à fonte doutrinária do pensamento militar, ao longo dos anos 1950-1970: as teorias geopolíticas – que também tiveram forte influência sobre o pensamento civil. As aquisições de armamentos realizadas entre o fim dos anos 1960 e o final da década seguinte – período que também coincidiu com um forte investimento na indústria de defesa, bem como o início da reestruturação das forças armadas – foram certamente influenciadas por uma vertente do pensamento militar cuja doutrina levava em consideração a defesa da integridade do território nacional, aí incluídos a Amazônia e a plataforma continental submarina. Entretanto, essa doutrina entrava em choque com a política de “segurança e desenvolvimento”, o braço mais musculoso da doutrina de “segurança nacional”. A luta contra o inimigo interno era constituída basicamente por operações de levantamento e análise de informações que concebiam e apoiavam operações policiais “cobertas” – se é que podemos usar esse eufemismo. O “desenvolvimento” era o outro aspecto da “segurança”: a médio e longo prazos, tiraria a população da miséria através da expansão da esfera econômica. Manter forças armadas capazes de atuar como polícia, com o suporte do enorme aparato policial formal, por outro lado, não exigia equipamento pesado nem de tecnologia particularmente avançada. Foram poucas as ocasiões em que as forças armadas foram mobilizadas como força militar – a maior delas contra a “Guerrilha do Araguaia”. Mesmo nessas ocasiões a mobilização de forças de primeira linha – paraquedistas e fuzileiros navais com treinamento de Forças Especiais e apoio de elementos aeromóveis da FAB – foi largamente secundada por forças policiais e de polícia política.

O fim do regime militar, coincidente com o fim da Guerra Fria, trouxe uma crise de identidade, expressa no debate, percebido ora com menos, ora com mais intensidade, nos meios civis: determinar qual o papel destinado às forças armadas na ordem política pós-militar. Segundo alguns especialistas (artigos bastante interessantes sobre o assunto aqui e aqui), existiria necessidade de reciclar as FAs de modo a capacitá-las a cumprir novos papéis. Segundo especialistas, os militares discutiam, internamente, as novas configurações da ordem mundial, pois embora não existisse perspectiva de agressão externa, não seria razoável confiar totalmente nos acordos internacionais e, principalmente, nos EUA. Por outro lado, o aspecto do debate sobre essa reciclagem que mais aparecia ao público leigo era mesmo a utilização do Exército como uma espécie de vanguarda da manutenção da ordem interna, assunto que também freqüenta, desde a Constituinte de 1988, a pauta das preocupações dos formuladores da estratégia de defesa brasileira.

Trata-se, por diversos motivos, de um debate equivocado com conseqüências potenciais sérias. O envolvimento de pequenos contingentes do CFN em recentes operações de reconstituição da autoridade do Estado sobre vilas populares ocupadas por marginais armados foi um exemplo de como essas intervenções devem ser – e, de forma alguma podem servir de argumento para que as FAs sejam afastadas de suas funções constitucionais.

Funções que são, basicamente, de defesa da soberania e dos interesses nacionais contra possíveis inimigos externos e em situações onde a autoridade do Estado sobre o território nacional sofra ameaça oriunda de fatores internos. O caso das favelas cariocas não chegava a ser exatamente esse, mas é o mais próximo que podemos citar que se encaixa em tal situação.

As ameaças externas, alegam largos setores da sociedade civil, não existem, e, se porventura acontecerem, podem ser enfrentadas na arena diplomática. Esses setores parecem esquecer que a “arena diplomática” é uma arena cujos limites são suportados pela presença de forças militares. Alguém poderia alegar: não existem exemplos recentes de uma situação que possa ser descrita assim. Pois se trata, então de falta de conhecimento de história.

Um exemplo acabado de uma situação assim é a Segunda Guerra Mundial. O ataque nazista contra nosso litoral pegou o país totalmente despreparado. A situação econômica era, desde os anos 1920, muito ruim, o país fora seriamente afetado pela crise de 1929 e, no início dos anos 1940, apenas começara a se recuperar – e também era outro país, de economia rural e parque industrial incipiente. As forças armadas de então, correspondiam a esse país: eram pequenas (em torno de 40.000 homens no Exército e 10.000 na Marinha) mal-equipadas e mal-aprestadas (as doutrinas ainda eram remanescentes da reformulação orientada, a partir de 1922, pela Missão Militar Francesa). Costumo a argumentar que a epopéia da FEB, nos oito meses da campanha italiana foi a parte mais visível, mas menos complexa, da participação brasileira. A preparação da FEB, vista como parte da preparação das FAs brasileiras para atuar de forma ativa na defesa nacional, esta sim, foi a parte difícil. Começou em 1941, antes mesmo da declaração de guerra, com a total reorganização da defesa do litoral brasileiro, sob comando norte-americano (por sinal, as FAs brasileiras foram colocadas, por determinação de Vargas, sob o comando de um oficial-general – vice-almirante – da Marinha dos EUA).

Havia um facilitador, naquela época- o interesse dos EUA pela adesão brasileira. Ao contrário da Argentina, o Brasil não poderia ter ficado neutro. As razões eram mais ou menos semelhantes aquelas que levaram os EUA a, até 1945, manter relações com os dois governos franceses: o governo-fantoche de Vichy e sua simpatia declarada pelos nazistas, e o de fancaria (pelo menos até 1944…) do general De Gaulle e seus arroubos de “líder da França Livre”. A razão estava nas colônias francesas do litoral atlântico africano, onde, de modo algum, os aliados gostariam de ver bases navais alemãs. De modo similar, a posição do saliente nordestino, a “cintura do Atlântico”, o “Trampolim”, tornava o Brasil um aliado crucial. Desde 1941, os norte-americanos se dispuseram a modernizar e equipar as FAs nacionais – particularmente a Marinha e a FAB, então recém criada. Embora seja sensato assinalar que a maior parte das forças que defendiam as rotas marítimas sul-atlânticas desde junho de 1941 eram forças navais e aéreas norte-americanas, estacionadas principalmente em Belém, Natal, Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Ainda assim, o Brasil saiu da guerra com forças armadas equipadas com material similar ao norte-americano, treinadas segundo as doutrinas desenvolvidas nos EUA e, principalmente, com larga experiência de combate.  

Não era pouca coisa. Os militares brasileiros saíram da guerra totalmente simpáticos às doutrinas e ao equipamento norte-americano. O problema foi que, pelo final dos anos 1950, o pensamento norte-americano sobre a defesa hemisférica tinha mudado, e com o aprofundamento da Guerra Fria, os EUA passaram a considerar as FAs latino-americanas como parte de um esquema de “defesa coletiva”, cujas tarefas estavam restritas à defesa local. Para o Brasil restara o papel de polícia do Atlântico Sul. Essas tarefas, na visão norte-americana, não demandavam equipamentos modernos nem excessivamente pesados. A renovação da Marinha, por exemplo, praticamente estagnou. A aquisição de um navio-aeródromo ligeiro (NAeL), requisito básico para a criação de um grupo de caça e destruição, teve de ser feita na Europa. Tratava-se de uma reivindicação da Marinha, atendida por Juscelino Kubistchek em 1957.

Outro momento que fez com que as FAs brasileiras refletissem sobre as próprias condições foi a Guerra das Malvinas, em 1982. A posição dos EUA diante da reação britânica à agressão argentina acentuou as desconfianças que os militares brasileiros tinham com relação aos EUA, e significou praticamente o fim dos tratados de assistência recíproca, que já tinham sido postos no congelador desde a segunda metade dos anos 1970, em função da política de implementação dos direitos humanos do governo Carter. Em 1982, o apoio à Grã-Bretanha por parte do governo de Ronald Reagan foi quase como uma pá de cal nos tratados implementados após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Mas também já tivemos um episódio em que a soberania nacional, ameaçada, teve de ser garantida pela Marinha, então já vivendo a obsolescência de seus meios. O motivo foi dos mais inusitados, mas o evento não deixa de merecer atenção. Falaremos dele no próximo posto::

FO, FAL, IA, TAVOR e outras histórias sobre armas de infantaria no Brasil::

Corre na Internet a notícia de que o Exército Brasileiro decidiu, depois de anos discutindo o assunto, substituir o Fz M964 (para os milhares de militares que não têm como não ter uma relação de amor e ódio com essa peça clássica de equipamento, simplesmente o FAL). Segundo consta, o escolhido foi o fuzil IMBEL IA2. Ao longo de 2010 surgiram rumores (não consegui confirmar nenhum deles) que o EB havia adquirido, de uma vez, 180.000 unidades dessa nova arma (não, você não leu, nem eu escrevi, errado: cento e oitenta mil). Ao longo dos próximos anos, se destinaria substituir também os HK G33 e SIG SAUER da Infantaria da Aeronáutica e os M16A2 do CFN. Em duas versões, 7,62X51 mm e 5,56X45 mm (o que significa que são duas armas diferentes…), o novo tipo foi, de fato, apresentado na LAAD 2011, realizada no Rio de Janeiro em abril último e já teria passado pelos testes de campo do EB, realizados no polígono de provas da Marambaia, zona Oeste do Rio de Janeiro. De fato, não é uma arma propriamente diferente em relação ao FAL ou aos fuzis de assalto convencionais que adotam o calibre 5,56. A versão calibre 7,62 continua usando a munição NATO, o que significa que a mecânica da arma não deve ter sido alterada. Significativo, entretanto, é o encurtamento do cano, notável nas fotografias divulgadas, e a adoção de partes manufaturadas em polímero de alto impacto, o que deve significar uma diminuição considerável no peso do conjunto.

Algum tempo antes, foi divulgada a notícia de que as Forjas Taurus, empresa privada do Rio Grande do Sul, teria fechado acordo com a empresa IWI (Israel Military Industries – surgida depois da privatização da estatal IDF – Israel Defense Industries) para produzir, sob licença, o modelo israelense TAVOR TAR 21, fuzil do tipo bullpup. (Para quem estranhar, trata-se de uma configuração em que o receptor e o ferrolho estão localizados atrás do gatilho/punho de pistola, resultando daí um conjunto apenas um pouco mais longo e pesado do que uma submetralhadora.) A negociação, ao que parece, foi iniciativa de risco da Taurus, e nada indica que vá resultar em aquisições significativas pelo EB (se é que resultará em alguma…), pois essa empresa gaúcha, embora seja uma das grandes exportadoras mundiais de armas curtas para o mercado civil e policial, tem pouca tradição em armas militares. Entretanto, tais iniciativas são indicativas da existência real do debate, no interior do Exército. 

Mas o fato é que a tropa continua portando o FAL. Esta arma, por bem e por mal, já entrou para a história do Brasil, e, por este motivo, em 2009 causa:: publicou uma série de postos denominada “A linhagem FAL“. Essa série completou-se com um texto que levou o título de “O FAL no Brasil”, texto que, como todos os que faço, teve partes boas e partes ruins. Sempre tive a intenção de publicar uma revisão, principalmente para incorporar as correções feitas pelo leitor (não sei se assíduo, mas certamente entendido) Carlos Quáglio, o “General de Pijama”, cujo blogue, embora inativo, ainda é uma ótima leitura para interessados. Essa revisão, ampliada, mantém as preciosas observações do historiador militar Adler Homero Castro e do coronel (QEMA-R1) José Paulo Lopes Lima. Devo a estes dois cientistas as informações sobre o “causo” do fuzil semi-automático M954 e sobre a ordem de batalha do Exército Brasileiro no fim dos anos 1950. Faltam, em nosso país, fontes públicas confiáveis sobre a história e dinâmica de nossas Forças Armadas, assunto que não parece interessar ninguém. A documentação do próprio Exército não é facilmente acessível, e as pesquisas acadêmicas sobre o tema embora não sejam mais tão ralas quanto há trinta anos, ainda não são, propriamente, pesquisas de história militar, mas de história social da guerra e de história política das forças armadas. Na Internet, embora se encontrem alguns bons recursos de pesquisa, estes dificilmente passam dos temas da atualidade. O tema ainda é, enfim, campo virgem. Mas vamos ao texto, então::

Em 1960, o Exército Brasileiro era uma força relativamente grande. Sua ordem de batalha podia colocar em campo uns 140.000 efetivos, dos quais talvez uns 40.000 pudessem ser considerados – por padrões algo lenientes… – tropas de primeira linha. No final dos anos 1950,  a força terrestre brasileira podia alinhar algo como um corpo blindado – uma divisão blindada e duas de infantaria motorizada, uma divisão convencional de cavalaria (com cavalos, acreditem ou não…) e cinco divisões de infantaria. Em torno destas, as tropas especializadas convencionais: unidades logísticas, de comunicação, de armamentos, de engenharia, corpos de saúde, seções de formação e administrativas.

Desde a 2ª GM, a intensa relação com o exército dos EUA tinha moldado o Exército Brasileiro, pelo menos do ponto de vista estritamente técnico, à imagem do norte-americano. As doutrinas francesas foram definitivamente abandonadas e  a instrução era feita, em grande parte, por militares dos EUA, que ensinavam a seus colegas brasileiros as doutrinas e práticas desenvolvidas durante a guerra e, logo depois, na Guerra da Coréia. Entretanto, certas práticas norte-americanas eram de difícil assimilação em um país pobre e pouco industrializado.  

O armamento com que o Exército Brasileiro contava em seu inventário passou, em conseqüência da 2ª GM, por um notável salto tecnológico, visto que, nas unidades “de elite” (de fato, as unidades aquarteladas na capital da República, no Rio Grande do Sul e em algumas das principais cidades) tiveram, a partir da entrada na guerra, e, principalmente, do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (O “Tratado do Rio de Janeiro”, assinado em 1947), seu armamento parcialmente padronizado com o armamento norte-americano. Parte considerável  do armamento individual ainda continuou a ser, depois de 1945,  o fuzil de carregamento manual Mauser DWM calibre 7X57 mm, o “Mauser brasileiro“. O armamento de infantaria – além do Mauser, por exemplo, a metralhadora Madsen – era todo adaptado para o calibre 7 mm. Continuaria a ser, durante um bom tempo.

A aquisição do DWM 7 mm se deu em 1908, em números que, segundo alguns especialistas, alcançavam dezenas de milhares de unidades. Ao longo da primeira metade do século 20, em função dos conflitos que frequentemente fechavam as fontes de armas, o FO (“Fuzil Ordinário”, no jargão militar) 1908 continuou a ser a principal arma de infantaria do Exército, e providenciou-se para que uma versão indígena, desenvolvida pelo própria força, começasse a ser fabricada na recém-inaugurada fábrica de Itajubá, Minas Gerais. Essa versão, denominada “Modelo 1908/34” foi uma tentativa de modernizar o tal “mauser brasileiro”: a arma foi encurtada para se equiparar a uma “carabina”, ou seja, equipamento geralmente disponível para as tropas de cavalaria. No jargão do Exército Brasileiro, esse item é denominado “mosquetão”, e tem o comprimento de cerca de 100 centímetros, enquanto o fuzil teria cerca de 120 centímetros.

Tais tentativas não encobriam o problema de que o calibre 7X57 mm se tornou obsoleto para uso militar antes da 2ª GM. Assim, em diversos momentos, essas armas passaram por adaptações em arsenais nacionais para utilizar cartuchos mais modernos. O envio de uma tropa para combater no Teatro Europeu do Mediterrâneo, por outro lado, catapultou o EB para a modernidade. Na Itália, organizada a FEB como uma divisão de infantaria norte-americana, o armamento que seus efetivos receberam era padronizado. A arma distribuída aos pracinhas foi o US Rifle M903, calibre .30-06 (7,62X63 mm) “Springfield”. Isso teve conseqüências duradouras: depois da guerra, boa parte do armamento de infantaria disponível para o EB usava calibres norte-americanos. O BAR (Browning Automatic Rifle, uma espécie de metralhadora ligeira usada como apoio da esquadra de infantaria), alguns rifles Springfield e *Garand e a metralhadora ligeira Browning M919, o .30-06; a pistola Colt M911, as submetralhadoras M3 e INA o .45 ACP. Essas munições passaram a ser fabricadas no país no início dos anos 1950.

Em função dessa disponibilidade de armamento norte-americano, no final dos anos 1940 houve uma tentativa de tornar o calibre .30-06 padrão das forças militares brasileiras. O resultado foi um mosquetão, baseado no “mauser brasileiro”, distribuído em pequenas quantidades a partir de 1949. Em 1951, nova tentativa geraria uma arma não muito diferente – ambas as experiências foram feitas no Arsenal de Itajubá. Mas ainda não era o que o Exército pretendia. Nessa época, já era evidente a tendência mundial para a adoção de armas automáticas e semi-automáticas. O acaso então entrou no jogo – só não se pode dizer se contra ou a favor do Brasil.

Por sinal, o acaso começou a conspirar no segundo semestre de 1945, quando a FEB foi repatriada. Embora a tropa brasileira tenha deixado para trás todo seu equipamento, pôde conservar certa quantidade de canhões alemães e italianos de diversos tipos, várias peças de equipamento de campanha de nossos adversários, os arquivos da FEB e alguns documentos alemães e italianos. O item mais numeroso trazido para o Brasil eram armas portáteis capturadas aos alemães e seus aliados. Não se sabe exatamente quantas vieram, mas calcula-se um número de alguns milhares. Muitos desses itens eram exemplares do que os alemães tinham de mais moderno, inclusive os fuzis automáticos MKb42 e StuG44 (que seriam a origem dos fuzis de assalto) e metralhadoras de uso geral MG42 (a “Lurdinha”). Também haviam alguns exemplares das duas versões do Gewehr 43 (versões Mauser e Walther), uma tentativa frustrada dos alemães em criar um fuzil semelhante ao Garand norte-americano.

As armas alemãs foram examinadas pelas áreas técnicas do Exército e, em 1952, o arsenal de Itajubá recebeu ordens de fazer uma cópia do G43(M), o exemplar que, durante a guerra, tinha sido apresentado pelo escritório de projetos Mauser, de Berlim. O produto resultante, considerado por todos que o examinaram como extremamente tosco, foi denominado “Mosquetão M954”. Era um G43(M) adaptado para usar o cartucho Springfield.

Não se sabe exatamente porque as autoridades locais resolveram que copiar o G43(M) era uma boa idéia. Acredita-se que dois fatores tenham se combinado para gerar o equívoco: a existência, em Itajubá, de máquinas-ferramentas de origem alemã, adquiridas em 1934, um, e dois, o fato de que a patente do G43(M) tivesse perdido a validade, por ser arma militar – as de armas civis e de polícia continuaram valendo. Outro fato relevante é que, embora faltasse Garand, em função da Guerra da Coréia, outras armas “calibre pontotrinta” foram generosamente distribuídas: o BAR, a metralhadora M1919 e boa quantidade de fuzis M903. Assim, era natural que a tentativa de uma arma indígena visasse o cartucho .30-06 (cuja patente fora cedida ao Exército, pelos norte-americanos, a preço de banana), e que essa arma tentasse adaptar um Mauser, com o qual os militares brasileiros tinham intimidade de mais de 40 anos.

O terceiro e mais relevante ponto do equívoco: nessa época, as principais autoridades, aqui, acompanhavam o debate sobre o novo calibre de armas de infantaria, que se travava na Europa e nos EUA. A doutrina norte-americana, amplamente repassada aqui, privilegiava a concentração de fogo em detrimento do tiro individual, de modo que, era esperado, os EUA acabariam mantendo a tradição de um cartucho mais potente. O que os militares brasileiros pareciam não saber é que o M1, mesmo considerado excelente, por volta do início dos anos 1950, já era considerável passível de substituição – falaremos mais do assunto mais abaixo. A substituição foi atrasada pela Guerra da Coréia e pelo debate, na Europa, sobre a adoção do cartucho 7.62X51 NATO, já que os europeus insistiam que toda a munição usada em armas de infantaria fosse padronizada. 

O Corpo de Fuzileiros Navais parece ter estado mais seguro em suas decisões. Em 1954, foi comprado um lote de aproximadamente 5000 unidades do SAFN-49, adquirido diretamente do arsenal Herstal. Um dos prováveis motivos para a aquisição desse modelo era o uso do calibre .30-06, embora a arma em si fosse muito diferente do Garand norte-americano; outro possível motivo talvez tenha sido a aquisição da mesma arma pela Armada Argentina, em 1953. O modelo remontava a um projeto dos anos 1930 e antecipava muitas das características que depois seriam as do FAL, particularmente o ferrolho basculante.

Na época, a discussão sobre o “calibre NATO” estava comendo solta.. Acho que as autoridades militares brasileiras estavam apostando que os EUA manteriam o calibre .30-06 e conseguiriam produzir uma versão automática do M-1, que tinha se saído muito bem na Guerra da Coréia. A questão é que os acordos da NATO implicavam em certo grau de padronização, e um dos pontos em que insistiam os europeus era a adoção do cartucho 7.62 NATO. Outro ponto interessante (e aí é especulação minha) é porque foram adquiridas as armas belgas. Suponho que tenha sido porque essas estavam disponíveis para pronta-entrega. A Guerra da Coréia tinha acabado em 1951, e deixou os americanos totalmente “curtos” de material para entregar aos aliados. O fato do Brasil ter recebido a licença para produzir uma cópia local do cartucho 30-06 indica que havia certa concordância de que as FAs brasileiras receberiam equipamento dos EUA, mas o problema é que, na primeira metade dos anos 1950, a arma a ser adotada lá ainda estava em testes – ou seja: não havia alternativa a oferecer. O problema foi empurrado com a barriga ao longo do resto da década, com o exame de diversos tipos de armas que estavam sendo lançadas no mercado, inclusive o FAL, que teve um pequeno lote adquirido para avaliação em 1954. A tendência mundial apontava para o 7.62X51 NATO, e o FAL FN, no final dos anos 1950, já era adotado pelas forças armadas da Bélgica, Grã-Bretanha, República Federal da Alemanha, Canadá e Áustria. Em 1955, a Argentina anunciou a adoção do modelo e a intenção de fabricá-lo localmente. A empresa belga FN Herstal, dona da patente, antecipou-se à concorrência e ofereceu a licença para a fabricação de seu desenho também no Brasil. A contrapartida era o fornecimento do ferramental e o respeito ao projeto do fuzil. À primeira vista, parecia “mamão com açúcar”: uma arma moderna, de graça e sem necessidade de investimento em pesquisa; na prática, a longo prazo as forças armadas brasileiras se viram novamente atreladas às decisões de um fornecedor externo.

Embora não existam ainda provas conclusivas, é possível que a decisão belga tenha sido motivada pelo exame, pelos militares brasileiros, do Heckler-Koch G3, fabricado na Alemanha com base no desenho espanhol CETME – era outro 7.62 NATO. Pouco depois (no início dos anos 1970) o HK acabou adquirido pela Aeronáutica, para sua infantaria de guarda. O fato de que, num espaço de uma década, três modelos de armamento tenham sido adquiridos no mínimo indica certa falta de planejamento no que diz respeito à questões de defesa, em nosso país.

Em 1967, a chegada dos novos fuzis automáticos, em números que alcançavam 30.000 exemplares, entre os primeiro (diretamente importado) e segundo (fabricado em Itajubá) lotes já tinha se completado. Foi então tomada uma decisão surpreendente: o Exército resolveu converter uns 10.000 Mauser calibre .30 em uma arma aparentada com o FAL, só que numa versão de ferrolho. Essa nova arma, destinada ao treinamento de recrutas, foi denominada ”Mosquetão M968 7.62“. O cano foi substituído por uma versão idêntica à do FAL e a câmara, adaptada para o novo calibre. O conjunto era um pouco mais leve, tinha o cano mais curto e a alavanca de manejo, recurvada. O modelo foi fabricado em Itajubá e distribuído entre as unidades consideradas “de segunda linha”. O “Mosquefal”  empregava munição (inclusive granadas de bocal e munição especial para atiradores de escol), baioneta e material de manutenção de primeiro escalão iguais às do M964 (notação do FAL brasileiro). A arma era destinada ao adestramento básico de fuzileiros da infantaria, e também foi distribuída pelas polícias militares em todo o país.

Outro fuzil de assalto que surgiu por aqui foi o norte-americano M-14. Trata-se de outro clássico, bem conhecido entre os interessados no assunto, cujo surgimento resultou da experiência das tropas norte-americanas com o excelente M-1. No entanto, essa arma também tinha problemas, em particular o sistema de alimentação, centrado num clip de oito cargas, que tinha de ser esvaziado para que a arma pudesse ser recarregada. Os Gis também reclamavam do comprimento e peso da arma, ambos considerados excessivos. O cartucho .30-06, passada a guerra, começou a ser considerado muito longo e muito pesado, o que limitava gravemente a quantidade de munição que cada soldado podia transportar. Na fase final da guerra, foram feitas algumas tentativas de melhorar o M-1, inclusive a adaptação da arma para usar o carregador de 20 cargas do fuzil metralhador BAR.  Esse modelo, denominado T-20, também ganhou a capacidade de disparar em rajadas. O movimento seguinte gerou o T-36, um T-20 adaptado para utilizar um novo carregador, baseado naquele do BAR, mas mais fácil de produzir e mais leve. O problema do peso da munição, entretanto, persistia, e os projetistas tiveram a idéia de aplicar ao 30-06 a solução utilizada pelo alemães: encurtar o .30-06. Os projetistas norte-americanos esperavam que o novo cartucho mantivesse a potência do .30-06, mas com um menor peso e maior economia de material , além, é claro, de diminuir o peso da arma. Paralelamente, um série de modificações no T-36 gerou o T-37. No entanto, os militares não gostaram da idéia,  e, em meados dos anos 1950, uma arma totalmente nova foi apresentada para testes: o T-44. Nesta, o sistema de acionamento operado por recuperação de gás tinha sido completamente redesenhado, utilizando um cilindro de trajeto encurtado, o que diminuiu de forma significativa o comprimento do conjunto. A arma foi projetada em torno do cartucho T-65, que tinha sido adotado pela OTAN como 7.62X51 mm NATO. O T-44 ainda apresentava uma vantagem que acabou se mostrando decisiva: sua fabricação lançava mão de quase os mesmos processos e ferramental que o Garand. Em 1957, essa arma foi adotada pelo Exército dos EUA sob a notação M-14.

Embora ainda seja considerado uma arma excelente, surgiu na época em que já estava sendo debatido o problema do peso da munição e das armas. O problema foi o fato de que o 7,62X51 ainda era um cartucho muito pesado e muito potente, que espelhava, basicamente, a doutrina norte-americana: o fogo contínuo deveria ser provido por uma arma de esquadra, com características de metralhadora ligeira; os fuzileiros deveriam continuar atirando em modo semi-automático, para poder (pelo menos em teoria) apontar a arma e aumentar a precisão do tiro. A experiência no Vietnam mostrou que tal doutrina era passível de crítica, visto que a arma-padrão disponível era muito pesada, longa e difícil de usar em movimento. Operações em que o soldado tivesse de ser lançado sobre o objetivo (como, por exemplo, assalto a partir de transportes blindados) se tornavam quase inviáveis com uma arma com as características do M-14.

A produção desse equipamento durou entre 1957 e 1964, quando o governo dos EUA decidiu investir no desenvovimento do M-16 da Colt Firearms. Os estoques de M-14 foram sendo relegados a funções secundárias ou especializadas. Durante certo tempo, muitos deles foram repassados à Marinha dos EUA, como armamento da dotação orgânica de navios de guerra.

A Marinha Brasileira recebeu entre 1968 e 1973, lotes sucessivos de contratorpedeiross das classes Fletcher, Allen M. Sumner e Gearing (acho q foram 11, no total), e cada um deles vinha com uns 60 FAs M-14. Também vieram, em quantidades menores, com os NDCC, Garcia D´Ávila e Duque de Caxias, Suponho que no total, tenham chegado umas 1000 dessas armas, o que não seria problema, visto que o Brasil já usava, nessa época, o calibre M1964, que é o 7.62NATO fabricado aqui. Como essas armas foram substituídas, nos meados dos anos 1970, pelo IMBEL M1964, os M-14 acabaram no paiol da Escola Naval, como arma de parada. Na segunda metade dos anos 1980 ainda estavam em uso, assim como pela Polícia Naval do AMRJ.

No Brasil, o FAL gerou toda uma linhagem industrial. A atual IMBEL – empresa de economia mista pertencente ao Ministério da Defesa – fabricou três modelos da arma: o Fuzil Automático Leve (FAL), o Fuzil Automático Pesado (FAP – uma versão dotada de bipé, que só dispara em modo automático) – e a versão ”Para-FAL”, com coronha rebatível, e cano encurtado, para emprego de unidades aerotransportadas, de selva e de forças especiais. A produção local começou no início de 1965 e continuou até 1983, subindo a mais de 200.000 unidades deste fuzil. Em 1997 foi apresentada uma versão local, denominada “MD97“, adaptada ao calibre 5.45 NATO. Hoje em dia, calcula-se que, entre todas as versões, as forças armadas e forças policiais brasileiras tenham por volta de 400.000 FAL em seus estoques – o que é uma quantidade surpreendentemente pequena, considerando que essas forças sobem – se computada a reserva de emprego imediato (reservistas com menos de cinco anos de baixa, sexo masculino e idade até 34 anos) – a mais de um milhão de efetivos::

Cultura material militar::O motor, a doutrina militar alemã e sua mudança::Parte 3

Antes do acontecimento da Batalha do Rio de Janeiro, estávamos examinando como a doutrina alemã que marcou o início da 2ª GM se reflete sobre o equipamento posto pela Alemanha à disposição de suas tropas. Continuaremos agora examinando este assunto, que parece sempre interessar ao historiador militar, bem como aos especialistas em história da técnica militar. O tema central será o crescimento exponencial do porte dos carros de combate, que teve seu momento marcante no surgimento do PzKpfw VI, o arquiconhecido Tiger I. Junto com o T34, o Panther (que examinaremos em outro artigo), o Centurion inglês (que já foi examinado aqui mesmo no causa::) e o Pershing M26, parecem constituir o marco inicial dos modernos “tanques pesados”, conhecidos, em inglês, por Main battle tanks, ou MBTs. Bom, vamos ao assunto::

parte3/4Os teóricos do exército já pensavam em um “superpesado” desde meados dos anos 1930 e o projeto de uma coisa assim iniciou-se em 1936-7, mas foi sendo desenvolvido muito lentamente até que começaram a chegar relatórios da Frente Oriental. Os especialistas do exército retiraram o projeto do “superpesado” do banho-maria, pensando num blindado que pudesse lidar com tal tipo de “surpresas”. Este deveria ser especialmente bem protegido e armado, ainda que a mobilidade tivesse de ser sacrificada. Em meados de 1941 os escritórios de projetos da Henschel & Sohn, de Kassel, e da Porsche, de Stuttgart, já tinham sido convidados a apresentar propostas para um tanque do tipo, mas sem muita pressa. Depois de junho de 1941, a calma deu lugar ao nervosismo, e as autoridades militares pressionaram ambas as empresas a antecipar suas propostas. As características principais, exigências originais do HWA, eram a blindagem frontal não inferior a 100 milímetros e, como armamento principal o canhão Krupp  8.8 centímetros de dupla função.

O Doktor Ingenieur Ferdinand Porsche, amigo pessoal de Hitler, encabeçava, na época, o projeto de um carro popular que, custando 1000 marcos nacionais (Reichsmark), fosse capaz de explorar o sistema de auto-estradas (autobahnen) que era uma das jóias da coroa do plano econômico nazista. Com o rearmamento, Porsche tratou de adaptar o projeto do Volkswagen para servir de base a um veículo leve, o Kübelwagen (“carro-banheira”, apelido do Type 62) a ser usado pelo Exército como viatura de emprego geral.

Desenhar um tanque já era outra história. A equipe de Porsche vinha trabalhando, desde 1937, em regime “private venture”, num superpesado. Conseguiu um primeiro sucesso: sempre com um olho nas tendências da época, a proposta recebeu o nome de Tiger, que acabaria designando todo o projeto e seus desdobramentos.  Outros problemas menos relacionados ao marketing e mais à engenharia, não foram superados. O conceito proposto por Porsche tinha alguns elementos revolucionários, como, por exemplo, uma planta de potência eletromecânica. Dois motores de 320 hps cada um, movidos à gasolina, acionariam um gerador que, por sua ver, forneceria energia para motores elétricos de grande potência. A idéia era que os motores à explosão, ainda que menos potentes, usados como acionadores de geradores teriam seu consumo reduzido em pelo menos um terço. O problema é que o sistema, em testes, revelou-se muito frágil, e os motores elétricos, um por conjunto de esteiras de tração, eram controlados por uma caixa de transmissão que permitia a viatura mudar de direção. A geringonça mostrou-se muito complicada e dada a quebrar, além de exigir, para a fabricação, enorme quantidade de cobre, material estratégico do qual a Alemanha dispunha de fontes exíguas.

A Henschel tinha a vantagem de, sob a liderança do engenheiro Erwin Aders, acumular bastante experiência no desenho de tanques. Desde 1938 vinha sendo rabiscado o projeto de um tanque médio de 30-35 toneladas de deslocamento, mais pesado portanto que o Panzer IV, com a mesma torre e suspensão. Posteriormente, esse protótipo foi aperfeiçoado para um projeto ainda mais pesado, de 40 toneladas, em torno do novo canhão KwK 42 (75 mm/42 calibres, disparando um projétil penetrante de alta velocidade). Ambos os protótipo foram abandonados, embora o primeiro tenha sido base para um caça-tanques pesado, denominado *Selbstfahrlafette 12.8 L/61 (”Reparo automóvel” 128 mm/61 calibres), que chegou a ser testado em combate, na segunda metade de 1942.

De fato, o *desenho não foi tanto condicionado pela experiência (bem desagradável) de combate na Rússia quanto pela filosofia de projetos adotada, até então, em função da doutrina da Blitzkrieg. A proposta da Henschel, designada VK4501(H) (de Volkettenfahrzeuge ou “viatura sobre esteiras” modelo 4501), pelo exército, foi mais tarde designada pela notação Panzer Kampfwagen (PzKwg) VI, e denominada Tiger I. Era um carro de combate de desenho bastante convencional (compare o desenho do Tiger I com o do *Panzer IV), acompanhando as tendências da década de 1930, quanto ao desenho do casco e mecânica, embora bastante grande. Diversos detalhes dos dois protótipos abandonados foram incorporados ao VK4501(H): a suspensão, as esteiras de tração, o esquema interno e o motor.

Genericamente chamado de Tiger (H), o projeto Henschel utilizou, tanto quanto possível, componentes e processos industriais já existentes, no que diz respeito aos aços especiais usados nas chapas de blindagem e componentes mecânicos. Isto se explica em parte devido à racionalização de tempo de guerra: o casco do protótipo VK4501 (H) era, de fato, o redesenho de uma proposta anterior da Henschel, denominada pelo exército *VK3601. O chassi apresentava blindagem frontal usinada por inteiro, em processo de esticamento, com 100 mm de espessura; nas laterais da superestrutura (a parte exposta do casco) a proteção era de 80 mm e 60 mm nas laterais do casco (a parte que sustentava a suspensão). A torre tinha sido desenhada pelos arsenais Krupp para o protótipo da Porsche, mas foi aproveitada por sugestão do exército, embora apresentasse problemas de estabilidade. Algumas modificações propostas pela Henschel não chegaram a superar os problemas observados, que faziam o conjunto absorver mal a energia do recuo, o que podia influenciar fortemente a precisão do disparo, mesmo com a viatura parada.

A motorização consistia de um *Maybach HL 210 P45 de 12 cilindros e 21.330 cm3, esfriado a água. Desenvolvido especialmente para o Tiger, era teoricamente capaz de desenvolver 650 HPs a 3000 rpm, consumindo pouco mais de 400 litros de gasolina para cada 100 quilômetros rodados. Aí começaram os problemas: o motor era bastante compacto, mas não devido a qualquer objetivo da empresa em realizar proezas de engenharia, mas às dimensões do compartimento do motor. A proposta de um bloco de alumínio, embora tenha diminuído o peso, mostrou diversas limitações, inclusive uma tendência a rachar, quando a aceleração era elevada ao máximo. O Tiger I incorporava dois sistemas que eram novidades nas forças blindadas alemãs. O primeiro era uma caixa de marchas hidráulica ligada a uma caixa de transmissão semi-automática. O segundo era um *volante, ao invés das tradicionais alavancas de mudança conjugadas. Essa inovação tornava a direção bem mais simples. A potência era transmitida do motor para a engrenagem motora através de um eixo conectado à caixa de transmissão situada na parte dianteira do carro. A transmissão tinha oito velocidades (oito à frente e quatro para trás), e podia, pelo menos teoricamente, levar o conjunto até uma velocidade máxima de 45 km/h em terreno plano e consistente e condições de demonstração. A caixa de marchas também transmitia potência para acionar o mecanismo hidráulico da torre.

A suspensão era baseada em *barras de torção, nas quais braços móveis sustentavam *oito truques formados, cada um, por três rodízios justapostos, intercalados quatro a quatro. Cada rodízio sustentava rodas sólidas de borracha vulcanizada. Este era outro problema: as rodas de borracha tendiam a gastar-se com muita rapidez, o que aumentava os já não pequenos problemas de manutenção. O uso de rodas de borracha maciça tinha sido herdado dos outros modelos de tanques usados pela Wehrmacht, como forma de diminuir o desgaste das esteiras de tração.

As esteiras de tração eram outro problema. Estudos realizados desde a Grande Guerra já tinham determinado que a largura das esteiras, embora aumentasse o atrito durante o deslocamento da viatura, reduzia consideravelmente a pressão exercida sobre o solo. Os projetistas dos tanques alemães da primeira fase da guerra, levando em consideração as requisições do exército, privilegiaram a velocidade. Assim, a melhor opção tinha sido as *esteiras estreitas, de 38 centímetros de largura, adequadas à suspensão de truques oscilantes ligados a feixes de molas. O problema é que esses tanques foram projetados levando em consideração a rede de estradas de terra socada da Europa Ocidental. Estimava-se que os veículo teriam de rodar distâncias relativamente pequenas em terreno não preparado, e a velocidade (que podia chegar a 40 km/h), juntamente com a rapidez das campanhas (que não deveriam ultrapassar o período seco) compensariam a instabilidade do solo.  Nas estepes isso não aconteceu: o período de chuvas, que transformava o solo em um mar de lama, e a falta absoluta de estradas surpreendeu as vanguardas motorizadas da Wehrmacht, fazendo atolar até os tanques. Os relatórios de campo dos militares falavam muito na facilidade de deslocamento do T34 soviético, o que era atribuído (corretamente) ao tipo de esteiras. Assim, os projetistas pensaram, inicialmente, em esteiras de tração bastante largas, com cerca de 80 centímetros. A largura distribuía a pressão sobre o solo de forma bastante eficiente, mas tornava o conjunto bem mais largo e difícil de transportar em vagões de trem especiais (nos quais os tanques eram levados até o teatro de operações). Como a suspensão tinha levado em consideração as esteiras largas, a solução foi desenhar um *segundo tipo de esteiras, chamadas “*de transporte”. Entretanto, as esteiras tinham de ser trocadas, o que ocasionava uma operação mecânica que podia durar até quatro horas, pois implicava que o conjunto externo de rodas tivesse de ser desmontado. Esse problema só foi resolvido com o redesenho dos rodízios e o sumiço das rodas de borracha.

Revolucionário mesmo era o armamento. O tanque pesado pretendido pelo exército deveria ser armado com uma peça de artilharia capaz de penetrar a blindagem de um adversário a uma distância maior do que o canhão do adversário fosse capaz de fazer. A opção natural foi o canhão de 88 mm, aquela altura amplamente disponível como arma anticarro. A torre foi desenhada pelos arsenais Krupp, preparada para receber a versão KwK 36 L/56 (de Kampfwagen Kanone modelo 1936-37 tubo-alma de 56 calibres de comprimento), uma versão adaptada do canhão anticarro com as mesmas características já então disponível. Essa arma já tinha demonstrado do que era capaz tanto no norte da África quanto na própria Rússia: o projétil penetrante de blindagem tinha uma velocidade de saída de 930 m/s, o que lhe dava capacidade de penetrar 110 mm de couraça a aproximadamente 2000 metros de distância. Era bem mais do que o necessário: a blindagem frontal do T34 era de 90 mm. Outra preocupação dos militares alemães era com os mecanismos de estabilização da torre e de pontaria. Em campo aberto, o tiro em movimento, contra alvos também móveis, tornavam a vital a capacidade de corrigir rapidamente a trajetória dos projéteis.

O problema é que um conjunto com esse porte necessariamente teria sacrificada a mobilidade. O peso total da viatura excedia 50 toneladas, o que lhe comprometia a capacidade de usar as pontes em geral disponíveis em auto estradas, obrigando as colunas blindadas a utilizarem pontes ferroviárias. A capacidade de cruzar rios também se tornava muito limitada, pois as primeiras versões não dispunham de escapamentos adequados para movimentação subaquática.

As duas firmas fizeram protótipos que deveriam ser apresentados a Hitler, pessoalmente, no dia de seu aniversário, em abril de 1942 (aquela altura o ditador, ainda embalado pelas vitórias de 1940, e se achando, dava palpite até no desenho dos uniformes de suas forças armadas). Produzidos às pressas no final do ano de 1941, ambos revelaram uma série de problemas que não puderam ser resolvidos. O modelo Henschel, mesmo a despeito da amizade pessoal entre Porsche e Hitler, acabou sendo ungido pelo ditador, impressionado pela capacidade de um tanque enorme (o protótipo pesava 55 toneladas) em alcançar a velocidade de 45 km/h.

Em março de 1943, depois de uma série de revisões de projeto, as divisões blindadas começaram a receber os primeiros Tiger, com a designação PzKpfw VI Ausf E, e sem passar por todos os testes requeridos pelo exército. A todos os problemas observados juntou-se mais um: o treinamento inadequado do pessoal mecânico, que simplesmente não sabia como lidar com a nova máquina.

Os Tiger I foram usados pela primeira vez em combate em setembro de 1942, perto de Leningrado, quando algumas unidades foram enviadas à frente, para avaliação. A maioria dos tanques nem chegou a entrar em posição, pois os defeitos mecânicos forma tantos que derrubaram nove dos doze exemplares. Todos foram recolhidos. No início de 1943 outra pequena leva foi enviada ao teatro norte-africano. Os defeitos mecânicos acabaram por resultar em um exemplar capturado intacto pelos ingleses, o que possibilitou um exame exaustivo do novo modelo (este Tiger I é, hoje em dia, um dos principais itens do acervo do Museu de Tanques de Bovington). Os defeitos mecânicos, provocados principalmente pela baixa potência do motor e pela sobrecarga do sistema de transmissão, continuariam a assolar o veículo e suas tripulações ao longo de toda a guerra. Em raras ocasiões uma unidade de Tiger chegou a operar com toda a sua força. Os Ausf E deveriam ser reunidos em número não menor que 28 carros (o ideal seriam 45, número quase nunca atingido), em unidades especiais chamadas Schwerige Panzer Abteilungen (algo como “Seção de Tanques Pesados”), comandadas por um tenente-coronel. Essas unidades atuavam junto às divisões blindadas convencionais, obedecendo a um comando centralizado mas com grande autonomia tática. Os membros eram voluntários com boa experiência de combate, e essas unidades logo começaram a se distinguir onde atuavam. Não era incomum que pequenos grupos de Tiger conseguissem colocar fora de combate cinco vezes mais adversários do que perdiam. De fato, tanque a tanque, os Tiger dificilmente eram superados. Os exemplares eram postos fora de combate por defeitos mecânicos ou, mais comumente, falta de combustível.

Em 7 de julho de 1943, durante a campanha de Kursk, o tanque comandado pelo primeiro-sargento Waffen SS Franz Staudegger, integrante do 13ª Companhia Blindada da 1ª Divisão Blindada SS declarou, devidamente chancelado por testemunhas (inclusive aeronaves enviadas para intervir) ter colocado fora de combate 22 tanques soviéticos no espaço de três horas; dois outros Tiger da mesma unidade cobriram-lhe a retirada, quando o 13-31, sem munição e com problemas na caixa de marchas, teve de se retirar. No processo, inutilizaram mais 9 tanques soviéticos. Esse tipo de proeza não era tão rara, e geralmente rendia ao comandante da tripulação o colar da Cruz de Ferro (a “Cruz de Cavaleiro”), condecoração dificilmente atribuída a oficiais com graduação menor do que a de major. Na mesma campanha outro graduado da 1ª DBWSS (cujo “nome de honra” era Leibstandarte Adolf Hitler – “Regimento Pessoal”), o cabo-de-esquadra Balthasar Woll, artilheiro de um Tiger comandado por um segundo-tenente (outro fato raro nas DBs convencionais), colocou fora de ação 11 tanques soviéticos com 11 disparos, todos a uma distância superior a 1500 metros. Woll receberia, em setembro de 1944, sua própria “Cruz de Cavaleiro”, por participar da destruição de mais de 200 veículos inimigos, sendo 80 deles tanques soviéticos. Essa unidade foi depois convertida no “Seção de Tanques Pesados SS 501”, que apresentou-se na contra-ofensiva das Ardenas (novembro-dezembro de 1944) com 45 tanques Tiger, a mais forte unidade blindada colocada em campo na oportunidade, pelos alemães.

Esses escores quase inacreditáveis podem ser explicadas por diversos fatores. Em primeiro lugar, a qualidade indiscutível do canhão KwK 36, combinada à extrema proteção das chapas usinadas por inteiro em aço-níquel. Essa combinação tornava o Tiger inatingível, a 1400 metros, por qualquer canhão de tanque existente em 1943, inclusive o excelente canhão de 85 mm instalado no T34 a partir do início de 1944. Também se deve incluir nessa equação o visor telescópico binocular Turmzielfernrohr  – TZF – 9b, instalado na torre do Tiger I Ausf E, e considerado o melhor mecanismo ótico de pontaria então disponível no inventário da Wehrmacht (e sobre o qual, curiosamente, existem poucas informações disponíveis).    

O PzKpfw VI Ausf E tinha, entretanto, alguns problemas sérios. O primeiro era o custo, tanto financeiro quanto em materiais e homens-hora. Sob qualquer parâmetro, o Tiger I custava pelo menos o dobro do que  um PzKpfw IV, e quase quatro vezes mais que um canhão de assalto StuG IV Ausf G, que montava um canhão KwK 40 75 mm L48 (o mesmo que equipava os tanques Panther) e era bem mais manobrável do que o Tiger I. A enorme alocação de recursos exigida acabou resultando numa produção de apenas  1355 unidades, entre agosto de 1942 e agosto de 1944. O segundo problema era mais objetivo: a máquina era subpotenciada. O motor de alumínio não gerava potência suficiente para, em condições de trabalho, e o resultado é que as duas últimas marchas para a frente não podiam ser usadas sem o risco de estourar o bloco. A velocidade real era, quando muito, quase 25 por cento menor do que a conseguida em condições de demonstração. Apenas uns 250 exemplares saídos de fábrica montaram esse motor; a partir do final de 1942, uma versão com bloco em aço e maior potência, o Maybach HL 230 P45, de 700 HPs, não chegou a melhorar o desempenho de forma notável, mas aumentou a durabilidade do conjunto.  

As táticas desenvolvidas pelos aliados para enfrentar essa nova arma variavam. Os americanos, após examinar informes de campo ingleses e um exemplar capturado na Tunísia, decidiram que os alemães somente conseguiriam reunir esses veículos em números reduzidos, e, assim, a massa de blindados aliados, menores mas reunidos em números avassaladoramente superiores seria suficiente para superar o problema. Essa tese nunca chegou a se comprovar, visto que o principal carro de combate norte-americano, o Sherman M4A3, com um canhão de 76 mm como armamento principal, mal conseguia arranhar a pintura de um Tiger I a 1400 metros, e praticamente desmontava quando atingido pelo KwK 36 a até 2000 metros. De fato, apesar da proclamada (pelos americanos e nunca exatamente provada) superioridade dos caça-tanques M18 Hellcat, a resposta dos EUA era sempre apelar para a superioridade aérea. Os ingleses, escaldados pela experiência do norte da África, optaram por dotar suas unidades blindadas de artilharia anticarro capaz de opor os blindados alemães. Arma a arma, essa opção era mais efetiva, embora a baixa mobilidade das posições anticarro fosse uma desvantagem.  Em 1943, os ingleses levaram a cabo a experiência de instalar o poderoso canhão OQF (Ordnance Quick Firing) 17 libras (76,2 mm/70 calibres), distribuído em 1942, na torre modificada de um Sherman. Esse canhão já tinha sido testado na África e se mostrara capaz de penetrar qualquer blindagem alemã em distâncias não menores do que 1500/2000 metros, usando um projétil penetrante de blindagem cuja velocidade de vôo era de 1204 m/s. A experiência resultou no Sherman *Firefly, único tanque aliado capaz de opor com alguma chance de sucesso os veículos mais pesados colocados em campo pela Wehrmacht a partir de 1944. Os soviéticos optaram por desenvolver artilharia anticarro automóvel. Inicialmente, o canhão de 85 mm do T34/85 foi montado numa versão especial do chassi daquele veículo, sem a torre, o que resultou numa silhueta mais baixa e num conjunto bem mais veloz, denominado SU (do russo Samokhodnaya Ustanovka – “reparo autopropulsado”). Entretanto, o veículo ainda era subartilhado, de modo que, no início de 1944, os soviéticos montaram no mesmo chassi um canhão D10. Essa providência rendeu o caça-tanques denominado SU100. O projétil penetrante de blindagem, com velocidade inicial de 1000 m/s revelou-se capaz de penetrar qualquer blindagem alemã, inclusive a frontal do Tiger I. Entretanto, a má qualidade dos mecanismos de pontaria soviéticos (a maioria dos quais basedos em tubos fixos sem lentes) e o baixo nível de treinamento das tripulações praticamente anulavam a vantagem propiciada pelo canhão.

O surgimento do Tiger I não marcaria ainda o ponto de inflexão da doutrina alemã que, por sinal, não seria determinado por nenhum tipo de blindado (talvez o projeto do supertanque Maus, que nunca chegou a ser efetivado, represente melhor essa mudança). O ano de 1942 marcou o limite efetivo da doutrina da Blitzkrieg, com a expansão máxima da máquina militar do Reich, e as limitações importas por tal expansão, principalmente no que diz respeito às fontes de combustível. A velocidade não seria mais, a partir de então, a base da doutrina; o movimento sim. E os alemães demonstraram, com sobras, durante a guerra, serem mestres do movimento::

A batalha do Rio de Janeiro::A segunda batalha de Itararé e a estrela do show::

Todos os veículos militares sobre esteiras de tração têm um antepassado comum, o *trator de esteiras Holt, fabricado pela empresa norte-americana Caterpillar Tractor Company, a partir do finalzinho do século 19. A idéia de instalar esteiras em veículos motorizados como forma de facilitar o deslocamento deles nas condições extremamente adversas das trincheiras resultou em rebocadores de artilharia, veículos de transporte e tanques. No período entreguerras algumas experiências foram feitas com veículos sobre esteiras, na URSS, Alemanha e EUA. Essas experiências resultaram, particularmente na Alemanha e nos EUA, em viaturas de transporte de pessoal extremamente eficientes.

A vantagem de qualquer veículo de esteiras sobre seus equivalente com rodas é a distribuição da pressão exercida devido à descarga do peso do veículo sobre o solo. Um veículo com esteiras de tração é mais estável do que um sobre rodas, pois elementos como a distância do veículo com relação ao chão e o desenho da suspensão fazem com que o centro de gravidade do carro, durante o deslocamento, varie menos. Mas as esteiras também resultam em desvantagens. A maior área de contato provoca a mudança do regime de torque, ou seja, da transmissão da potência do motor para o chão. Todos sabemos que veículos sobre pneumáticos são mais velozes, e é exatamente em função do menor coeficiente de atrito com o solo (este opõe resistência ao avanço do veículo – quanto maior a área de contato, maior a resistência). Este coeficiente de atrito acaba determinando a potência do motor e o consumo de combustível que, num veículo sobre esteira, acaba sendo muito mais alto do que num veículo sobre pneumáticos.

Outro problema notável é que, nos veículos sobre esteiras de tração, a dirigibilidade depende diretamente da transmissão. Em geral, é adotado um sistema em que uma caixa de marchas especial modifica o regime de giros do eixo das *rodas tratoras (as roda ligadas ao motor), fazendo com que um dos conjuntos de esteiras se mova mais rápido do que o outro. Isso acaba fazendo com que o sistema todo seja relativamente frágil e quebre com certa facilidade. Na 2ª GM, os complicados sistemas de transmissão adotados nos veículos sobre esteiras, notadamente nos carros de combate, foi fonte de muita dor-de-cabeça para combatentes e equipes mecânicas. Por sinal, é até hoje: um carro de combate com a caixa de marchas quebrada ou as *esteiras rompidas (o que frequentemente resulta do esforço mecânico das constantes alterações de giro) tem quase a mesma funcionalidadde de uma prancha de surf debaixo da cama.

Este foi um dos motivos da adoção, imediatamente antes da guerra, de viaturas meia-lagarta. Os “meia-lagarta” resolviam esse problema adotando rodas de direção não-tracionadas, com um sistema de direção de um veículo motorizado comum: um parafuso sem-fim ligado a um volante, e uma caixa de marchas padrão, de três ou quatro velocidades. O menor peso do conjunto criava a possibilidade de usar nesses veículos motores menos possantes e muito mais econômicos, além de torná-los mais fáceis de operar, visto que a direção era semelhante a de um caminhão. Isso os tornava ideais para certas tarefas, como  transportar tropas, a chamada “infantaria blindada”.

Ainda durante a guerra, alemães e norte-americanos pensaram na introdução de veículos de transporte de tropas totalmente sobre esteiras. Os projetos alemães não chegaram a sair dos estágios iniciais; os norte-americanos examinaram um protótipo baseado no chassi do caça-tanques M18 “Hellcat”, de notação *M44. O problema é que o projeto exigia um grande dispêndio de materiais, já que o casco, suspensão, motorização e transmissão eram basicamente os mesmos do blindado. Acabou sendo deixado em “banho-maria”. Terminada a guerra, os EUA continuaram a estudar veículos blindados sobre esteiras de tração destinados ao transporte de infantaria, embora os “meia-lagarta” *M3 continuassem a ser considerados adequados para a função e estivessem disponíveis em grandes números.

No início dos anos 1950, a experiência da Guerra da Coréia provocou um reexame profundo na doutrina norte-americana de guerra de movimento. Os norte-coreanos utilizavam a mesma doutrina soviética, que dividia a infantaria em três categorias: infantaria a pé, infantaria “motorizada” (transportada em caminhões não protegidos) e infantaria “montada”, ou seja, transportada no dorso de tanques T34/85. Essa infantaria, em diversas oportunidades conseguiu, em ações combinadas com os blindados, superar tropas norte-americanas teoricamente superiores em números e armamentos. Era transportada até próximo da zona de combate em cima dos blindados, desmontava pouco antes de alcançar a área de operação e daí delocava-se a pé, protegida pelo massa dos tanques. Os norte-americanos começaram, então, a estudar novos tipos de blindados, melhor armados e protegidos. O Sherman estava fora: mostrou-se pateticamente frágil diante da artilharia dos blindados de fabricação soviética; a família “Patton”, inaugurada em 1948 com o *M46 era superior ao T34/85, em alguns aspectos, mas apresentava alguns problemas mecânicos e um canhão considerado ineficiente. Outro modelo que surgiria desses estudos foi o *M41 “Walker”, que pode ser classificado como “tanque de cavalaria”, destinado a prover proteção de flanco para unidades mais pesadas; o M47 “Patton” (de fato, um M46 com nova torre) foi considerado capaz de superar os tanques soviéticos encontrados na Coréia. Também foram pedidos estudos em torno de um veículo que pudesse prover apoio aproximado de infantaria.

Os estudos desenvolvidos desde a 2ª GM foram retomados. O primeiro veículo a ser proposto foi o *M75, projetado pela fábrica de tratores International Harvester. Essa máquina utilizava a mesma plataforma mecânica do tanque M41, com pequenas mudanças na suspensão. A motorização era a mesma: um motor Continental a gasolina, considerado relativamente frágil em condições de uso. O M75 chegou a ser empregado nos últimos estágios da Guerra da Coréia, e o ponto que despertou maior polêmica foi o desenho: os engenheiros, seguindo indicações dos militares, projetaram um habitáculo em forma de caixa e uma grande porta dupla traseira, que permitia que os 13 infantes transportados desembarcassem muito rapidamente, mas dava ao veículo uma silhueta excessivamente alta. Entretanto, o maior problema do M75 era mesmo o preço, considerado muito alto pelo Exército dos EUA. Em 1954, a empresa FMC (Food Machinery and Chemicals Inc.), que havia recebido a encomenda de 1000 M75, a pedido do Exército apresentou o projeto de uma versão menor do veículo. Este mantinha basicamente o mesmo desenho do M75, mas em tamanho ligeiramente menor, pois os engenheiros da FMC diminuíram o comprimento da máquina e aumentaram-lhe a largura. A altura foi também ligeiramente diminuída, pois foi considerado que o *rápido desembarque não era prejudicado caso os infantes embarcados ficassem levemente encurvados, ao deixarem seus assentos. Sendo feito em placas de aço laminado, encaixadas por solda, teve seu peso consideravelmente diminuído, permitiu alterações na suspensão e o uso de dois motores GMC de caminhão, o que diminuiu notavelmente o consumo sem comprometer o desempenho. A diminuição do peso e o aumento da largura também permitiram que a máquina adquirisse capacidade anfíbia, que a anterior não tinha. O sistema de direção consiste em um diferencial conectado diretamente à transmissão, e o motorista o aciona através de um par de alavancas cada uma controlando uma das seções de esteiras de tração. O veículo não tinha armamento próprio, e era, em sua versão básica, equipado apenas com uma metralhadora pesada calibre 12,7mm (a tal “ponto cinqüenta” de que a imprensa vive falando), destinada à autodefesa. Recebeu a notação M59 e surgiu no final da década de 1950.

Esse novo APC (de Armored Personnel Carrier) permaneceu em produção até o final dos anos 1960, e quase 7000 unidades foram fabricadas (o Exército Brasileiro recebeu alguns exemplares, a partir de 1962). Apesar das melhorias, ainda era considerado excessivamente pesado para, por exemplo, ser transportado em aeronaves. Esta era a principal reclamação do Exército dos EUA, e daí, a FMC começou, com base no desenho do M59, a experimentar o uso de chapas de alumínio de alta densidade, que poderiam ter quase a mesma dureza do aço, com peso razoavelmente menor. O menor peso traria diversas vantagens. O desempenho aumentaria, sem aumentar o consumo de combustível (gasolina de alta octanagem, na base de 4 litros por quilômetro rodado); também possibilitaria que a máquina fosse transportada em aeronaves cargueiras C130, a razão de dois por aeronave, e até mesmo ser lançada de pára-quedas; aumentaria a capacidade anfíbia, facilitando o deslocamento em teatros de operações com muitos rios ou pantanosos. O novo veículo teria certa capacidade NBC (em inglês, acrônimo de nuclear-biológica-química) e deveria ser adequado ao campo de batalha europeu, mas adaptável a outros teatros. Resultou desse estudo o conceito ACAV (Armored Calvary Assault Vehicle, em inglês). O veículo que correspondeu ao conceito é o *M113.  

Sua produção inicial começou em 1960, na fábrica da FMC na Califórnia. Distribuída ao Exército e Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA, a nova VBTP (“Viatura Blindada de Transporte de Pessoal”, nomenclatura do Exército Brasileiro) também foi entregue a países aliados da OTAN. A viatura tornou-se a base de uma linha conhecida como FOV (Family of Vehicles), série de especificações sobre a plataforma M113, que inclui as versões aperfeiçoadas. Em 1964, a experiência de campo, nos EUA e países aliados serviu para fazer surgir a primeira, o M113A1, que tinha como principal modificação foi a troca do motor a gasolina por um diesel. Essa mudança melhorou o alcance sem comprometer notavelmente o desempenho. Em 1976, surgiu o M113A2 e, em meados dos anos 1980, o M113A3, versão com mecânica muito modificada. Todas as versões incluiam viaturas-postos de comando (com parte elétrica modificada para receber aparelhagem de radio e outros equipamentos de comunicação e controle); veículos de recuperação e manutenção (com modificações na transmissão e na suspensão, pela permitir inclusive reboque de viaturas iguais, danificadas); viaturas para tansporte de cargas; viaturas transportadoras de equipamento gerador de fumaça; diversos tipos de transportadores de morteiro (81 mm e 120 mm); posteriormente foram também adaptados M113 transpordadores de metralhadoras giratórias XM134  *Minigun 7.62 mm (bastante usados no Vietnam), M741 Vulcan (viatura de defesa anti-aérea de ponto) e carregadores de diversos tipos de mísseis.

De fato, a plataforma original baseou, desde seu lançamento, mais de 40 variantes, com milhares de pequenas modificações. Muitas dessas modificações foram desenvolvidas por usuários estrangeiros do M113, baseadas em requerimentos militares. Alguns são, de fato, sistemas inteiramente novos, que mantém o desenho da viatura original.   

Desde 1960 foram fabricados mais de 80.000 M113, e a produção da FOV está longe de terminar. Novas unidades ainda são produzidas na Inglaterra, pela BAE Systems (um bom site sobre a viatura, em inglês, é mantido pela BAE), e pacotes de modificação das existentes são usados para modernizer as configurações já em serviço.

O veículo levanta opiniões divergentes nos usuários. Embora seja considerado simples de operar, bastante resistente e fácil d reparar, é considerado frágil em combate. Usado em grandes números na Guerra do Vietnam, são comuns as fotografias em que os infantes *viajam no teto do veículo. Tanto os GIs quanto seus aliados *preferiam essa posição pois além da blindagem não resistir a nada maior do que um projétil 7.62 mm, uma mina anticarro média rompia facilmente o fundo do veículo; além do mais, o rompimento de um dos conjuntos de esteiras de tração deixava a viatura totalmente inoperante e altamente vulnerável. Segundo a experiência dos operadores, num caso desses, o melhor que a tripulação e o grupo de combate poderiam fazer era sair de perto o mais rápido possível, pois a viatura se incendiava com enorme facilidade. Como se essa fragilidade toda não fosse suficientemente ruim, o interior do habitáculo era considerado muito quente, ficava cheio de gases de combustível e nem todas as versões dispunham de ar-condicionado. Mesmo assim, entre 1964 e 1972, os EUA chegaram a manter cerca de 2000 VBTP M113 naquele teatro. Eram – como ainda são – os principais elementos da cavalaria mecanizada do Exército dos EUA.

Originalmente, os M113 foram pensados como transportadores de esquadra de infantaria. No final dos anos 1950, a doutrina estabelecia que a infantaria motorizada deveria desembarcar um pouco antes do ponto focal e alcançá-lo a pé. Logo ficou evidente que a mobilidade do sistema mecânico quando combinada à potência da metralhadora orgânica Browning de 12,7 mm, poderia ser um valioso elemento de choque adicional para a esquadra de infantaria. Essa observação, baseada na experiência de campo obtida no Vietnam, modificou a doutrina: os infantes passaram a ser lançados diretamente no ponto focal.

Embora os veículos da categoria VBTP estejam sendo discutidos em função das novas doutrinas de guerra de movimento, que exigem veículos de esteiras e de rodas bastante velozes (os ingleses falam em velocidades de até 110 km/h como ideais), capazes de transporter mais carga, seja em termos de pessoal ou material, e dotados de maior proteção, não existe ainda um veículo capaz de substituir, a curto prazo, as enormes quantidades de M113 existentes no mundo. No início dos anos 1980, o governo norte-americano tinha projetos de substituir rapidamente essas máquinas pela VBTP *Bradley, dentro de um projeto de reequipamento mais amplo. Só que o M1 revelou-se caro, frágil, de mecânica complexa. Parece que a versão M113A3 tem ainda muito futuro pela frente::

Cultura material militar::O motor, a doutrina militar alemã e sua mudança::

A doutrina de blindados desenvolvida, ao longo dos anos 1920, pelo exército alemão, enfatizava o equilíbrio entre mobilidade, velocidade, proteção e poder de fogo. Isso não é nenhuma novidade para quem conheça um pouco de história militar e história da tecnologia. História da tecnologia? Pois é: algumas pessoas dizem que a história militar é um desdobramento da história da tecnologia e eu diria que concordo com essa afirmação. Parte da história militar não pode ser estudada sem levar em consideração a “técnica”, o procedimento ou conjunto de procedimentos que têm por objetivo alcançar determinado resultado, não importa se diga respeito à ciência, à tecnologia, às artes ou até à religião ou à magia. Isso quer dizer que a “técnica”, embora seja, necessariamente, sistemática, não exclui a criatividade. Só que coloca essa capacidade humana em conjuntos organizados de procedimentos, que podem ser modificados e transmitidos. A “tecnologia”, explicam alguns especialistas, é parte da técnica, e envolve o conhecimento, interpretação, aplicação e estudo dessas, e de suas variáveis, aplicações e desenvolvimento, ao longo da trajetória de uma determinada sociedade. Dentro do escopo da tecnologia se encontra o conhecimento das técnicas acumulado ao longo do proceso de sua criação: pesquisa, projeto, produção, aperfeiçoamento e acumulação. Essas definições (muito superficiais) permitem, desde logo, establecer porque consideramos, aquí no causa:: , a história militar como desdobramento da história das técnicas e da tecnología: os homens sempre mostraram muita aplicação em procurar meios cada vez mais eficazes de se matarem uns aos outros.

Assim, pode não ser má idéia gastarmos algum tempo com a história da tecnologia. E, particularmente, com a história da tecnologia de motores::

parte1/1O homem sempre teve de se movimentar, para conseguir se manter vivo. No início dos tempos, usava as próprias pernas; depois de algum tempo, aprendeu a recrutar animais para carregá-lo ou carregar carga. E logo começou a imaginar artefatos que permitissem melhorar sua capacidade de usar a energia produzida pelo próprio corpo e pelo corpo dos animais que empregava. O movimento é parte da vida, de modo que foi assim que surgiram barcos, rodas, carroças e carretas, que se tornaram parte constituinte do arsenal de artefatos que tornam mais fácil o trabalho humano e a luta para melhorar a vida.

Criar movimento depende, então, de acumular e acionar certa quantidade de energia mecânica. É isso que chamamos, genericamente, de “motor”. Sem entrar em muitos detalhes, podemos dizer que “motor” é um mecanismo que produz força para colocar alguma coisa em movimento. Assim, o conjunto que incluí cavalo, arreios e varais é o ”motor” de uma carroça; o sistema de velas, mastros e cordame é o “motor” de um navio à vela. Ambos são dispositivos ou aparelho (não importa se rudimentares) que transformam um dado tipo de energia em energia mecânica e daí, em movimento – que, por sua vez irá necessariamente resultar em mais energia mecânica.

Durante milhares de anos, a única fonte de energia foi a natureza. O homem aprendeu, no início de sua trajetória, a agenciar certos processos naturais em benefício próprio: colocar um animal para puxar uma carroça faz parte desse aprendizado, assim como utilizar remos para mover um barco. O problema é que esses processos implicam em quantidade relativamente pequena de energia e é difícil obter mais a partir deles. Nada impede, por exemplo, que uma carroça chegue a 120 km/h, desde que você arreie nela vinte ou trinta cavalos. Só que será um tanto complicado controlar vinte ou trinta cavalos, e a tendência é que esses acabem destruindo a carroça: o excesso de energia se torna um problema.

Observando a natureza e seus processos, o homem logo deve ter observado que, entre a conversão de energia e o trabalho, boa parte da primeira se perde – por sinal, a maioria dela se perde. A questão que, desde então, tem sido objeto da atenção de filósofos, cientistas e tecnólogos é como controlar melhor a geração e transmissão de energia, de modo a otimizar sua aplicação ao trabalho.  

A expansão de gás logo foi percebida como uma das, e uma das melhores, formas de geração e conversão de energia: trata-se de um processo químico que muda, rápidamente, o estado da matéria de sólido para gás. O gás é o estado da matéria em que a forma e o volume se tornam instáveis e muito influenciáveis pelas mudanças de temperatura ou pressão. Por isto mesmo, um gás pode se expandir de modo espontâneo ou forçado e chegar a ocupar a totalidade do recipiente que o contém. Em função de suas características, os gases também são classificados como “fluídos”, ou seja, substâncias que se deformam continuamente quando submetidos a certa quantidade de tensão (a força com que um corpo, não importa o estado, reage quando submetido à tração – falando em português claro, quando empurrado).  

A queima de uma substância qualquer produz maior ou menor quantidade de gás, e essa quantidade se dispersa pelo meio ambiente, levando embora boa parte da energia invertida no processo. No caso do fogo, é o que chamamos de “fumaça”. Imagino que os homens das cavernas devessem observar isso, enquanto cozinhavam ou aqueciam suas moradias; quando deixaram de ser homens das cavernas, continuaram observando esse processo e devem ter imaginado (aí, eu não me meteria a dizer quando…) se aquela fumaça não serviria para alguma coisa. Devem ter observado (devem, não – alguns pensadores gregos observaram mesmo) que, em certas condições, essa “fumaça” conseguia deslocar objetos sólidos: dirigida através de uma válvula (um buraco), podia movimentar alavancas (um conjunto de bielas não passa de uma alavanca metida à besta…). Quem sabe estas não poderiam acionar eixos de polias ou eixos de rodas?..

Não é especulação minha: a idéia existe desde a Antiguidade, mas não basta ficar olhando fumaça (seria uma aplicação da função, bem conhecida por alguns, de “fiscalizar a natureza”) para deduzir uma máquina a vapor ou locomotiva. Mas, basicamente, a idéia ainda é a mesma: você converte um sólido em gás através da aplicação de energia calórica, dirige esse gás e o põe a trabalhar em alguma coisa – gerar movimento. O problema é que a energia mecânica (a da expansão do gás, que põe um trem ou bomba hidráulica em movimento) tem que movimentar, antes, o sistema do motor – as válvulas, pistões e alavancas que movimentam as tais rodas. Nesse processo, parte considerável do montante de energia produzido é desperdiçada sem fazer o trabalho para o qual a máquina foi concebida.

O problema está no combustível e no controle da queima do combustível. No caso que estamos examinando, toda produção de energia dá-se por conversão de calor em alguma outra forma de energia (até mesmo a energia do vento ou produzida por um cavalo, mas isso não vem ao caso aqui). Só que controlar calor é um problema sempre difícil de resolver. Quer experimentar? Coloque um bife diretamente no fogo. Sacou? O controle é exercido diminuindo-se o fogo, o que cria um problema adicional: quanto menos fogo, menos calor e mais tempo levará para o bife fritar. Existe uma forma um pouco mais sofisticada: colocar o bife dentro de uma frigideira. Esta constitui um anteparo que controla de forma muito rudimentar, mas eficiente, a aplicação de energia calórica sobre o bife, já que parte considerável é usada par aquecer a frigideira e mantê-la quente. Só uma pequena parte chega ao bife.

Ou seja, o “xis” da questão como produzir e usar o calor. Não pode ser muito rápido nem muito devagar. Voltamos ao combustível. A melhor maneira de produzir fogo é queimar carvão: este tem uma boa capacidade de produzir energia calórica, mas queima relativamente devagar. Além do mais, jogando-se água nele, o calor pode ser controlado. Água e fogo, juntas produzem vapor, um fluído gasoso que se expande muito rapidamente, mas não tão rápido que não possa ser controlado através de uma válvula – basicamente um buraco que o conduza na direção desejada (uma chaminé é uma válvula…). Caso você evapore a água num lugar fechado, a expansão do vapor resultará em pressão; se você colocar uma válvula no lugar certo, a passagem do fluído através dela, além de ser dirigida, aumentará a velocidade da expansão (a tensão exercida pelas paredes da câmara combinada à velocidade da expansão forçará o vapor através da válvula). Se você colocar, atrás da válvula, um objeto de massa não maior do que a massa do vapor contido na câmara, essa massa mais a velocidade da passagem através da válvula serão suficientes para deslocá-lo (calcular isso exige equações matemáticas bastante complexas, mas, acredite: de forma simplificada, é assim que funciona). Desse jeito, o vapor pode ser controlado de modo a executar um trabalho de forma constante.

É claro que explicar do jeito que estamos fazendo faz a coisa parecer fácil, mas levou milhares de anos até que todos os problemas decorrentes desse processo fossem resolvidos. Um deles é o fato de que quanto mais rápida a queima, mais rápida a produção de gás e maior a energia decorrente; quanto mais energia, mais difícil o controle, até o limite em que a quantidade de energia destrói o sistema. O carvão, mineral ou vegetal produz relativamente pouco calor, de modo que se você quer mais, acrescente mais carvão. Essa virtude é também um problema, porque quanto menos calor, menos energia e quanto mais calor, mais energia, mas isso exige mais combustível.

A máquina a vapor, inventada no século 17, reúne tudo o que foi explicado acima. O combustível utilizado para produzir energia calórica, o carvão mineral ou vegetal, era eficiente, disponível em grandes quantidades e seus princípios eram empiricamente bem conhecidos. Só que o controle da produção de calor exigia que a energia fosse usada para converter água em vapor, que, no caso, é chamado de “fluído de trabalho”. Quanto maior o trabalho, maior a quantidade de vapor necessária e, portanto, maior quantidade de combustível, que geraria mais calor, mais energia, por conseguinte, necessitaria de uma maquina maior – e mais pesada. Portanto, mais peso, mais calor e… Assim por diante. Por isso os trens eram tão bons sobre trilhos: a estrada de ferro fornecia ao conjunto uma plataforma resistente e estável para o deslocamento da geringonça toda, coisa que não aconteceria numa estrada de terra.    

No início do século 19, alguém teve a idéia de usar gás diretamente para produzir calor mais rápido. A idéia era um ovo de Colombo. Ao invés de usar a evaporação de água para converter o calor em energia mecânica, o gás é aquecido diretamente e se expande rapidamente numa sucessão, controlada numa câmara, de ciclos térmicos obtidos através da expansão e compressão do próprio gás. Ao invés de envolver duas partes – a caldeira para produzir o tal “fluído de trabalho”, e o motor propriamente dito, a queima é transferida para interior do próprio motor. Pequenas quantidades de gás, comprimidas e expandidas em grande velocidade, são aquecidas e alcançam rapidamente temperaturas bem altas. Uma série de válvulas reune o gás aquecido resultante, o coloca para fazer o trabalho de mover o pistão e o conjunto de bielas, e o dispensa do sistema aos poucos, conforme a temperatura abaixa.

Esse princípio só pôde ser alcançado quando uma série de conhecimentos de física chamados de “termodinâmica” foi reunida, a partir do século 17, e resultou, no século seguinte, em tecnologia que possibilitou sua conversão em sistemas mecânicos eficientes. Isso quer dizer que o desenvolvimento da tecnologia não anda necessariamente junto com o desenvolvimento da ciência. Em geral teóricos, os cientistas apontam, através da observação e interpretação da natureza, caminhos que terão de ser trilhados pela turma dos “tecnólogos”: engenheiros, químicos, metalúrgicos, e por aí vai.

O processo descrito acima implica em uma série de outros problemas que não interessam aqui. O que interessa é que os “motores de combustão interna” tinham a grande vantagem de serem menores e potencialmente mais eficientes, quer dizer, poderiam gerar mais energia mecânica em relação ao próprio peso. Assim poderiam gastar menos combustível, pois o peso do combustível também seria menor do que aquele exigido pelos motores “de combustão externa”. As plataformas também poderiam ser menores e não precisariam de trilhos, poderiam usar as mesmas estradas que as carroças e carretas. Por sinal, esses motores poderiam ser colocados nas próprias carroças e carretas. Não é por outro motivo que os primeiro veículos movidos por motores à combustão interna forma chamados de “carruagens sem cavalos”. Era isso que eram, mesmo: carroças metidas à besta.

A esta altura, aqueles dentre os nove ou dez assíduos de causa:: que não são engenheiros devem estar se perguntando: “o que diabos isso tudo tem a ver com a doutrina alemã de blindados?..” Tirando o fato de os tanques são movidos por motor à combustão interna? Chegaremos lá::

Outras observações estratégicas sobre um período chato::Pode ficar pior sim, senhor Tiririca::

Winston Leonard Spencer Churchill (Blenheim, Woodstock, Oxfordshire, Inglaterra, 1874 – Londres, Inglaterra, 1965) foi um estadista britânico. Isto, dez dentre os nove ou dez leitores assíduos deste blogue:: sabem; também sabem os assíduos que esse inglês, amante de charutos, vinho do porto e do sol mediterrânico, pintor amador e um dos maiores escritores modernos em língua inglesa, é um dos musos de causa:: Não sem razão.

Dizia o grande inglês que “a democracia é o pior sistema de governo, à exclusão de todos os demais.” É uma frase interessante, repetida ad nauseam por todos os conservadores, direitistas e liberticidas. O próprio Churchill era um conservador direitista, embora talvez seja injusto chamá-lo de liberticida – afinal, se nos livramos do fascismo, foi em parte graças à teimosia dele.

Mas, como toda frase, as de Churchill com freqüência precisam ser examinadas contra um contexto mais amplo, para que façam sentido – ou mais sentido. Essa a que se refere o redator:: faz parte de um discurso dirigido à Câmara dos Comuns, em 11 de novembro de 1947. Churchill, então líder dos conservadores, manifestava oposição a que nova limitação aos poderes da Câmara Alta do Parlamento Britânico – a “Câmara dos Lordes” – fosse estabelecida. Esse corpo de representantes, não-eleito, hereditário, representava a si mesmo, e essa representação se expressava na capacidade de interferer fortemente com os assuntos do governo, capacidade estabelecida no século 14 e que desde então vinha se mantendo, contra diversas tentativas de limitá-la. A última tentativa era aquela: o governo trabalhista de Clement Atlee pretendia emendar o Ato do Parlamento, de 1911, de modo a limitar a capacidade daquela câmara em interferir com iniciativas do governo. O contexto, então, era o das reformas radicais que estavam sendo introduzidas na organização econômica britânica, na qual amplos setores da indústria seriam nacionalizados. Temia o governo trabalhista que a Câmara Alta tentasse alterar o processo em que a Inglaterra pós-2ª GM finalmente se reinventava, buscando acomodar, em termos mais justos, os milhões de soldados e operários que, estoicamente, tinham derramado o sangue, suor e lágrimas que pavimentaram o caminho até a vitória. Já para as “classes superiores”, aquelas que desfrutaram, ao longo de dois séculos, os benefícios da transformação econômica, a proposta punha mais amarras a um poder que minguava. Sobre isso, disse o temível polemista e brilhante orador Churchill: “… é o sentimento mais disseminado em nosso país, e que a opinião pública expressa através de todos os meios constitucionais, que o povo deve governar, governar continuamente, e deverá formar, guiar e controlar as ações dos ministros que são seus servos, e não seus senhores.” Ou seja, no entendimento de Churchill – e, podemos subentender, da maioria de seus liderados conservadores –, não seria preciso limitar os poderes das classes superiores, amplamente representados na Câmara Alta do Parlamento Britânico – esses poderes estavam limitados pelos poderes conferidos, por tradição, à opinião pública.

Descrevendo o sistema eleitoral de representação majoritária britânico, o historiador setecentista François Guizot aponta sua origem nas necessidades da sociedade inglesa, nos séculos 13 e 14. O sistema eleitoral decorrente, no século 15, não obedecia nem a regras originárias nas Ciências Políticas, nem aos interesses deste ou daquele grupo. Era um sistema formado observando-se os costumes cotidianos aceitos pela sociedade. Os princípios que regulavam o processo eleitoral eram, assim, absoluta novidade. Daí sua absoluta originalidade.

Dentre as novidades, aquela que parece provocar a advertência de Churchill: no entendimento dele, a sociedade já dispunha de meios para expresser sua opinião e impor sua vontade, meios consolidados em séculos de tradição. Esse longo processo teria tornado a democracia “o menos pior dos sistemas”: a tradição também teria incorporado os defeitos: uma hierarquia reconhecida por lei que cabia ao povo respeitar, pois os mecanismos embutidos no processo contrabalançavam, naturalmente, o desequilíbrio inerente ao mesmo.

Examinar a coisa hoje faz suspeitar que Churchill tivesse razão: esse processo vem sendo crescentemente contestado e, depois de séculos, o sistema é visto com certa desconfiança pelo eleitorado britânico. Sinal dos tempos: o sistema, dito bipartidário, não parece mais suficiente para expressar a opinião do corpo de eleitores, e mostra, através de freqüentes pesquisas de opinião, tendências ao desdobramento. Os mecanismos “tradicionais”  de correção, então, funcionam – inclusive para indicar o clamor pela mudança.

Assim funciona a democracia representativa. Contra os defeitos, os mecanismos de autorregulação. E entre nós? Um dos possíveis defeitos da democracia brasileira seria, na visão de setores bastante amplos da sociedade, sua essência: o amplo direito de votar e ser votado. Não são poucos os cidadãos que reclamam do fato de que “todo mundo vota”, e não é nem preciso ter muito trabalho para encontrar exemplos disso. O redator:: não lembra qual dos ministros de Costa e Silva disse, na época do AI-5, que era absurdo valer o voto dele tanto quanto o de uma empregada doméstica… ou teria sido lavadeira?.. (diria que foi o da Aeronáutica… Algum dos assiduos lembra?..); o general João Figueiredo abriu seu consulado (1979-1985) com a taxativa afirmação: “Um povo que não sabe nem escovar os dentes não está preparado para votar.” E o negro Edson Arantes dos Nascimento, embranquecido pelo contato purificador das elites? É preciso lembrar a opinião dele?

Em tempos mais recentes, um colunista brindou-nos a todos com esta: “O Brasil é dominado por uma massa de pobres ignorantes. Eles estão decidindo por nós. E estão decidindo muito mal. Isso se não confundirem os algarismos e apertarem os botões errados.

Afirmativas como essas levam o redator:: a pensar quais são os meios de defesa que a democracia brasileira tem contra seus próprios defeitos. Imediatamente surge a figura daquele que, em algum momento futuro, talvez venha a ser lembrado como a figura-símbolo desta eleição: o cidadão Francisco Everaldo Oliveira da Silva. Certamente não conhecemos Francisco Everaldo – mas conhecemos seu alter-ego, o palhaço Tiririca. Sobre Tiririca, diz um blogueiro: “como impedir que uma extravagância como Tiririca (ops, Francisco Everaldo Oliveira Silva) vire deputado federal? Só tem um jeito: não votar nele. Nenhum outro.

Churchill também dizia – e foi essa frase que fez o redator:: elege-lo muso do blogue:: que quem não sabe história, não sabe nada. A perspicácia de Churchill, expressa no monumental “Uma história dos povos de lingual inglesa”, faz o redator:: lembrar de nossa própria história e de seus bons constadores. Por exemplo, o sociólogo Roberto Schwartz. Em ensaio no mínimo tão monumental quanto o de Churchill, Schwartz sugere que, em nosso país, as idéias estão fora do lugar. Em termos muito simplificados (causa:: não pretende ser espaço de resenha das idéias do coração do redator::): baseado em premissas marxianas, Schwarcz, por meio da análise da dinâmica interna de algumas grandes obras literárias do século 19, busca a contradição básica da formação social brasileira. Na opinião dele, é em Machado de Assis que a tal contradição aparece de forma mais perfeita. No Brasil, a estrutura é atrasada e colonial enquanto a superestrutura seria adiantada e liberal. Essa contradição residiria na persistência do regime de produção escravista convivendo com um sistema político de estilo inglês. Schwarz denomina esse método machadiano de “comédia ideológica”, que teria seu momento maior em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro”: Bentinho e Brás Cubas estariam sendo porta-vozes de uma denúncia de classe. Schwarz postula que Capitu é vítima dessa elite que vence, mas não leva, visto que a contradição, perpetuada pela elite como meio de dominação,  resulta em uma “sociedade pela metade” – tese que é expressa de forma genial no título do livro – “Ao vencedor, as batatas”. (análises mais aprofundada, aqui e aqui). O século 19 é, pois, tão esclarecedor, para nós, quanto o século 14 seria para a Grá-Bretanha – só precisamos conhece-lo melhor.

Voltemos a nossa época e a nosso drama: buscamos a democracia, sistema louvado por dez entre dez liberticidas, mas uma em que um cidadão habilitado pela norma constitucional ao se apresentar para ser votado, possa, por “extravagância”, ser inabilitado por outros cidadãos habilitados. Curiosa democracia, de cujo exame resulta o seguinte: o cidadão Francisco Everaldo deveria não ter direito de ser votado. Centenas de outros cidadãos que se manifestam através da Grande Rede parecem pensar exatamente assim. Deveríamos criar mecanismos que impedissem Tiririca de participar do processo eleitoral – qual seja: aperfeiçoar a democracia é limitá-la, plenamente, à uma parte do corpo de cidadãos. 

Uma tal providência imunizaria a democracia brasileira contra “piadas” como a candidatura do palhaço Tiririca. Motivo: vivemos numa sociedade imperfeita, sofrendo as dores do crescimento. O sistema partidário não exprime, à perfeição, a realidade do país, e os partidos são meros “balcões de negócios”. Cabe reduzi-los. Na Inglaterra são apeenas dois, os que realmente contam, consolidados pela tradição -e pela “educação política”; nos EUA, idem.

Mas, pensando bem… O palhaço Tiririca teria qualquer possibilidade de obter legenda num PT das elites sindicais ou num PSDB da inteligentzia paulista? Ou num PMDB dos grotões? Não é, entretanto, o caso de impedir o cidadão Francisco Everaldo de votar – por sinal, ele e outras extravagâncias têm de votar, para aprender. Algum dia, chegamos lá. Por ora, devemos impedir não que Francisco Everaldo eleja, mas se eleja. A maioria do corpo de cidadãos vota mal, e deve ser defendido de si mesmo. Estaríamos ouvindo aí (ou seria apenas impressão do redator:: admitidamente delirante?..) ecos do sistema de voto censitário, o tal “voto da mandioca“?

Pois se a democracia é imperfeita, aperfeiçoa-la não seria aprofundar a imperfeição, buscando meios de retornar ao século 19. Alguns cidadãos parecem vislumbrar o problema. No momento em que louvou a candidatura de outra “extravagância”, a “Mulher-Pera”, o senador Eduardo Suplicy talvez estivesse tentando, machadianamente, meter o dedo no âmago da contradição – e sabia no que se metia. Sua declaração de apoio à curvilínea candidata atraiu o deboche, desde a elite do jornalismo áulico até blogueiros moderninhos. Puro método machadiano: os democratas manifestam-se contra a democracia…

Talvez Suplicy aceite uma ajudinha – menos machadiana – do redator::: se  a democracia brasileira sobreviver será por arte de seus defeitos, e o principal deles é por outro lado, sua capacidade de se autorregular – a possibilidade de que o direito de assumir mandatos escape da elite “educada” e chegue até as “extravagâncias”. É nesse momento que o drama da sociedade brasileira fica mais evidente, e a teatralização do processo eleitoral apontará uma hierarquização atroz, tida pelas elites – e por seus clientes pequeno-burgueses –, mais do que “natural”, necessária. Pelo menos até o dia que aprendamos.

Esse post não deve, pois, causar estranheza nos nove ou dez leitores. Falamos de estratégia, na versão atualmente conhecida como “grande estratégia”, aquela que mobiliza todos os recursos nacionais. E uma nação partida – como atualmente é dito – em “andar de cima” e “andar de baixo” não se torna potência. Portanto, tirem as patas do direito do proletariado a candidatar-se seja lá ao que for – e se eleger. É estratégico que as extravagâncias obtenham mandatos, pois elas apontam direto para a contradição que nos governa. Ao contrário do que diz Tiririca, pode ficar pior, sim: no dia em que nossas elites e seus clientes derem um jeito de garantir que o grosso da população – os feios, os mal-vestidos, os que vivem na espiral alucinante do trabalho na fábrica – não possam mais se eleger. Nesse dia, a democracia deixará de ser o “menos pior” dos sistemas de governo, para tornar-se apenas mais um entre os piores::

Mais observações estratégicas sobre um período chato e outra comparação estapafúrdia::

O destino que aguarda o PSDB?.. Coluna alemã massacrada em Falaise (Normandia, agosto de 1944).

Já que a análise das eleições, no planeta blogue, continua estupenda, causa::, que não é do ramo, opta por divertir os assíduos estabelecendo comparações estapafúrdias… mas talvez, nem tanto. A de hoje apareceu logo cedo, num clarão provocado pela revista dos bons blogues sobre o tema. Um deles, particularmente interessante, pode ser lido no blogue do “intelectual clandestino” Hugo Albuquerque, o “Descurvo”. Basicamente, Hugo defende que a manutenção do governo paulista pelo PSDB é condição de sobrevivência para o partido, que, em caso contrário, acabaria quase um partido nanico. Diz o “clandestino”, a certa altura: “Nesse aspecto, a manutenção do governo paulista é essencial para a existência do PSDB enquanto um partido grande. Além do Governo FHC, o privatismo em São Paulo foi um dos sustentáculos fundamentais do tucanato. Depois da desindustralização de bons nacos do estado e de sua estagnação econômica severa aguda nos anos 80 e 90, a privatização do aparelho público, seja pelo sistema de concessões ou pelo esvaziamento dos serviços públicos, tornou-se um meio interessante para o PSDB se manter no poder: Esse parasitismo público era o meio para manter a hegemonia, construindo saídas para grupos empresariais falidos – que giravam em torno da indústria – e assim produzir uma saída razoável para o Capital, o que deu incrivelmente certo pela falta de uma oposição no plano estadual e pela bem-sucedida máquina de propaganda local. Esses setores tornaram-se a mola propulsora do partido. Dilma já está em primeiro em São Paulo e o partido precisa garantir Alckmin contra Mercadante, senão é fim de jogo. Uma derrota parece difícil de acontecer, mas eleições estaduais têm variações na intenção de voto sempre bem voláteis  e os riscos são claros.” Diria que a postulação é aguda, como são diversas outras que o redator:: tem encontrado por aí. Mas esta é particularmente aguda por lembrar uma das piores situações me que se pode ver metido um comandante de exércitos em campanha.

Indo ao ponto: o partido do “Zé” se encontra num “bolsão”. E de bolsão, causa:: entende. Resumindo, é quase um cerco, quando uma grande formação militar se vê quase totalmente privada de contato direto com suas próprias linhas, lhe restando apenas um corredor de comunicações com o exterior, o que acaba expondo o que quer que transite por ali a forte assédio pelo adversário. A solução, em geral, é tentar retirar o máximo possível de tropas e equipamentos antes que a “boca do saco” se feche. Quando isso acontece e se estabelece o cerco (ou “caldeirão”, como dizem os alemães) as coisas se tornam muito mais difíceis, visto que as forças trancadas são fervidas até o desmanche.

A situação atual do PSDB evoca ao redator:: reconhecidamente delirante duas situações da 2ª GM: Staingrado e Falaise. Pensando bem, a situação da candidatura “Zé” ainda não evoca Stalingrado – causa:: imagina que os nove ou dez leitores conheçam esta última muito bem, mas vale lembrar que Stalingrado foi um cerco que resultou em uma catástrofe local – embora não tenha sido uma batalha decisiva. Ainda assim, essa campanha marca o limite da blitzkrieg na Frente Oriental, e é considerada como um dos pontos de inflexão da guerra. A operação foi desencadeada pelos alemães na segunda semana de dezembro de 1941. Na primeira fase, grupos de choque formados por divisões blindadas, divisões de infantaria e divisões motorizadas empurraram os soviéticos e os colocaram em situação crítica. O mágico von Manstein, autor, quase dois anos antes, na Frente Ocidental, do truque do “Corte de Foice”, lançou as vanguardas blindadas e motorizadas em pequenos grupos. Essa fase foi uma aula de blitzkrieg – movimento sem parar, facilitado pelas condições do terreno (o solo, congelado, era ideal para o corrida dos blindados). Uma série de golpes em diferentes lugares em rápida sucessão, encontrar um ponto instável, para onde convergiu o grosso da infantaria – o malfadado Sexto Exército era, basicamente, uma reunião de unidades convencionais. De início, pareceu que os alemães poderiam romper as linhas soviéticas e envolver o adversário, mas a luta dentro da cidade em ruínas converteu-se num impasse. A resistência dos flancos soviéticos manteve abertas as linhas de comunicação, por onde convergiram reforços que possibilitaram o contra-ataque. À esta altura, a vanguarda blindada alemã estava esgotada e teve de parar – e a oportunidade da vitória escapou. A força de von Manstein, ao tentar liberar o Sexto Exército, viu-se reduzida à metade de seus efetivos. Acabou forçada a se retirar, abandonando a cidade. Após este revés, os alemães não conseguiram mais restaurar a situação favorável na curva do rio Don e caíram na defensiva. Alguma similaridade com a situação atual do PSDB? Possivelmente: após os erros da fase inicial da campanha, com o “Zé” tentando se fazer passar por “candidato do Lula”, dificilmente a candidatura voltará à ofensiva ou conseguirá “estabilizar a frente” – ou seja, chegar até um segundo turno. O grande erro, causa:: concluí, depois de examinar os blogues dos especialistas, foi não perceber que Dilma, de fato, é Lula amanhã, e que de fato, o grosso do eleitorado a vê como continuação do governo Lula. Aqui em Minas, onde vive o redator::, eleitores de Anastasia têm dito que “o modelo de Aécio” ainda não está maduro. O que parece significar que até a classe média, por mais antipatia que tenha de Lula (e aqui em Minas, a ntipatia não poderia ser maior…) está com medo de apostar em outra coisa.

De uma forma um tanto envergonhada, boa parte dos blogueiros parece declarar, nas entrelinhas, que a oposição está morta (se algum dos nove ou dez leitores duvidar, recomenda o redator:: exame atento do último parágrafo desta ótima análise). Até mesmo o lado direitoba, curiosamente parece estar jogando a toalha…: “Eu não vejo como Dilma Roussef possa deixar de ganhar a eleição. Assim como não vejo como Dilma Roussef possa deixar de ser um desastre. Ela poderia evitar o desastre se fizesse um governo à direita do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, principalmente em questões econômicas, o que ela nunca fará. Continuará com a atual política econômica por falta de alternativa. É claro que é melhor do que socialismo puro e simples. Mas é claro, também, que isso não bastará.” 

Talvez ainda haja, por outro lado, tempo para escapar do bolsão, e aí entra o governo de São Paulo e uma possível analogia com a situação de Falaise – ainda que resultando num quase apocalipse para a Wehrmacht na França (depois dessa operação, o território francês foi liberado em três meses), os analistas concordam que a escapada através do corredor permitiu a sobrevida que teve a Alemanha nazista. Diz umespecialista: “Apesar do que tem sido dito, a batalha do bolsão de Falaise não foi a ‘Stalingrado da Normandia’. Cerca de 100.000 alemães conseguiram escapar através da rede lançada pelos Aliados, entre 12 e 20 de agosto.. Embora tivessem de abandonar a maior parte de seu equipamento, junto com 50.000 prisioneiros e mais de 6.000 mortos”.

Mas, afinal, o redator:: pode estar em surto. Os famosos poucos leitores de causa:: poderão refletir sobre mais esta comparação estapafúrdia após examinarem, aqui, este excelente texto sobre o assunto. Mas não custa lembrar – guerra só se resolve quando o inimigo abaixa as armas e assina a rendição. Eleição… Sabe-se lá o que pode acontecer, antes que as urnas revelem o resultado…::

Um rapaz das Forças Especiais::Regimento Sampaio::

Formatura comemorativa na passagem do 242° aniversário.

Como todos os oito ou nove leitores assíduos já devem ter percebido, toda vez que causa:: passa por um período de vacas magras (em função das 202 atividades que o redator:: mantém ao mesmo tempo…), no período seguinte, uma porção de textos desencontrados começam a ser postados. É quase como se todos os assíduos tivessem de ter seus  variados gostos em torno de história militar, estratégia, cultura material militar, curiosidades, etc., etc.,  satisfeitos. Assim, visto que ante-ontem foi publicado um texto mais “cabeça”, hoje o redator:: continuará dando vaza a sua insistência nessa coisa antiga e fora de moda chamada “tradição”, abominada por cada nove entre dez intelectuais moderninhos.

E para fazer com que essas pessoas (que não entenderam os objetivos do apelo de Dunga ao patriotismo – voltaremos a esse assunto, que dá muita liga…) torçam o nariz com ainda maior intensidade, vamos apresentar, hoje, a mais tradicional dentre as tradicionais unidades de “infantaria combatente” (como são chamadas, no EB as unidades de pronto emprego): o Primeiro Batalhão de Infantaria Motorizado (Escola), mais conhecido como “Regimento Sampaio”.

Como pesquisador amador de assuntos militares, o redator:: , embora entenda a importância da tradição como fator aglutinador de qualquer corporação, civil ou militar, não simpatiza com a genealogia de unidades militares que descobre origem de tropas blindadas brasileiras lá no Portugal manuelino. O contexto dos exércitos e da guerra no Antigo Regime torna impossível, na opinião aqui do blogue, traçar continuidades reais entre as unidades atuais e aquelas apontadas, trezentos ou quatrocentos anos atrás, como suas antecessoras. Assim, causa:: não irá buscar as origens do Regimento Sampaio no Terço do Rio de Janeiro (ou “Terço Velho“), tropa criada por ordem do governador-geral do Brasil, Mem de Sá, em 1567. O Terço Velho existiu de modo mais-ou-menos intermitente ao longo de todo o período colonial, e, em 1793, formou, com uma unidade trazida de Portugal em 1767, o Primeiro Regimento de Infantaria do Rio de Janeiro. Essa unidade foi depois incorporada ao exército da nação que se formou em 1822.

A Guerra do Paraguai, por outro lado, já permite traçar maiores continuidades com nossa época. Em 1864 a abertura das hostilidades do Paraguai contra Brasil e Argentina, encontra o “Primeiro de Infantaria” na região sul do continente, onde havia participado das guerras no Uruguai. Em 1865, o comandante do Exército Imperial na região do conflito, general Manuel Luís Osório, mandou criar uma nova unidade, a Terceira Divisão de Infantaria (3ª DI), que reuniu algumas unidades. Seu primeiro comandante foi o coronel Antônio de Sampaio. Dentro da genealogia militar que causa:: prefere levantar, este é o primeiro galho da árvore genealógica do Regimento Sampaio.

A 3ª DI, em função de ser lançada sempre na primeira linha, acabou recebendo dos soldados o apelido de “Divisão Encouraçada“. Seu comandante, pouco depois promovido a brigadeiro, sempre se destacava por “comer chumbo” junto com a tropa. Não é tão estranho: era um soldado de carreira, tendo iniciado sua trajetória militar em 1830, quando sentou praça no Exército Imperial. Seriamente ferido na batalha de Tuiuti, em 24 de maio de 1866 (curiosamente, data de seu aniversário…), morreu quando era evacuado para a retaguarda. Os restos do brigadeiro cumpriram um périplo que deve ter sido quase tão grande quanto as marchas que a “Encouraçada” cumpriu durante os mais de cinco anos da conflagração (o leitor que se interessar pelas andanças dos ossos do patrono da infantaria brasileira pode clicar aqui; um histórico da 3ª DI, aqui). O título honorífico de “Divisão Encouraçada” foi atribuído à 3ª Divisão de Exército, uma grande unidade de cavalaria mecanizada constituída em 1979, dentro da reorganização do Exército Brasileiro.

O segundo – e muito mais frondoso – “galho genealógico” do “Regimento Sampaio” cresce a partir da reorganização do Exército Brasileiro levada a efeito a partir de 1908, pelo ministro da Guerra marechal Hermes da Fonseca. A reorganização era reivindicação dos militares que vinha desde a segunda metade do século 19. Uma das principais proposições era a profissionalização do exército. A partir de 1905, o péssimo estado da força terrestre (e também da Marinha, mas as desventuras desta ficam para outra vez…) e as constantes questões de fronteiras, que poderiam exigir, eventualmente, intervenção militar, tornavam urgente uma completa reforma. Uma das providências foi a negociação do envio de uma “missão militar” à Alemanha. Entre 1908 e 1910, três grupos de oficiais militares brasileiros lá estagiaram, para observar as doutrinas e métodos utilizados naquele país. De volta ao Brasil, esses jovens oficiais tornaram-se alvo do interesse, principalmente, da jovem oficialidade, grupo que via com desconfiança os generais (“gordos e acomodados”) e, principalmente, os civis (os “casacas”, “egoístas e dissimulados”) . Um forte movimento de conotação política, disfarçado sob a égide de “profissionalização”, surgiu entre essa oficialidade, e seus integrantes foram apelidado, algo pejorativamente, de “jovens turcos”. O termo acabou sendo adotado pelo próprio movimento, pois os militares brasileiros simpatizavam com o espírito reformador dos oficiais turcos. Esses, aglutinados em um movimento militar liderado pelo major Mustafah Kemal Atatürk (“pai dos turcos”), reivindicavam a modernização da sociedade turca no início dos anos 1910. Durante a 1ª GM, Kemal revelou-se competente comandante de tropas, o que só fez aumentar sua popularidade entre os militares brasileiros (mais sobre os jovens turcos?.. Dê uma paradinha aqui).

Esses oficiais brasileiros criaram, em 1913, a revista “A Defesa Nacional“, a princípio destinada a veicular as idéias do grupo. Logo a publicação (que existe até hoje) se tornou veículo das idéias políticas da jovem oficialidade, e foi fator para o sucesso das reformas.

Um dos principais pontos da reorganização era a transferência das principais unidades militares para sítios situados fora das cidades. Muitos oficiais “tarimbeiros” (de tropa) reclamavam que, dispersa pela cidade do Rio de Janeiro, a corporação não tinha como realizar exercícios em nível maior que o de batalhão. Uma das propostas setoriais apresentadas e levadas a cabo foi a construção da Vila Militar (hoje em dia bairro de classe média na Zona Oeste da cidade). O lugar era, originalmente, uma grande fazenda, e, no início do século 20, gastava-se um dia de marcha para chegar até lá. A construção de quartéis e residências começou em meados de 1908, e correu paralela à reestruturação do exército, ficando pronta em 1915. A demora deveu-se, em parte, a dificuldades em se localizar um sítio que fosse adequado a grandes exercícios militares, e à necessidade de instalar uma via férrea que ligasse a capital aos quartéis.

A reforma do Exército também implicou na introdução de nova doutrina, que tornasse a força capaz adotar, pelo menos em parte, os procedimentos da guerra moderna que as potências  européias estavam praticando, desde meados do século 19. Esse novo estilo de guerra tinha ficado evidente no rápido conflito entre franceses e alemães: movimentos amplos e rapidamente executados, iniciativa e poder de fogo superior apontavam para a superioridade da organização militar alemã. Foram essas novas normas organizativas que a reforma de Hermes da Fonseca tentou implantar no Brasil – embora não houvesse comparação possível entre a formação social alemã e a brasileira. Dentro desse espírito, o Exército da República – que então não tinha completado ainda duas décadas – buscou se reinventar, e foi criado, em 1908, o Primeiro Regimento de Infantaria, depois de extinto o antigo, aquele criado no final do século 18. Como diversas outras criadas na época, a nova unidade baseava-se no modelo “ternário”, adotado pelo exército alemão. Isso quer dizer que era organizado em torno de três batalhões, cada um com aproximadamente 700 homens (três companhias mais tropas especializadas). Para a formação do “Primeiro”, foram reunidos três batalhões, que já existiam desde o Império: o Primeiro de Infantaria (cujo quartel ficava em São Cristóvão), o Sétimo de Infantaria e o Vigésimo de Infantaria, unidades que remontavam ao Império, com longa tradição militar e experiência de combate. Essas unidades foram reformadas e reunidas na nova unidade orgânica.

O “Primeiro de Infantaria” foi uma das primeiras unidades do EB a emigrar para a Vila Militar. A partir de então, esteve presente em diversos eventos de caráter político, como a Revolução de 1930, a Guerra Civil de São Paulo, em 1932, e a repressão à Intentona Comunista de 1935. Em 1940, seguindo a tendência do Estado Novo em valorizar a história como fonte da tradição e do espírito de corpo, que levou à adoção de diversos personagens militares como patronos das forças singulares, armas e especialidades militares, o então “Primeiro de Infantaria” recebeu a denominação de “Regimento Sampaio”. O próprio Sampaio foi guindado à condição de “patrono da arma de infantaria”. 

Em 1943, com o Brasil em guerra contra o Eixo e a criação da  FEB, o “Regimento Sampaio” foi designado para integrar a divisão de infantaria a ser formada. Um dos motivos (talvez o principal) é bastante prosaico: geralmente, os chefes políticos do Exército cumpriam seus períodos de oficiais inferiores (segundos- e primeiros-tenentes, capitães e majores) em regimentos aquartelados na Vila Militar, para ficarem perto do Rio de Janeiro; outro motivo é que o “Primeiro” sempre foi considerado unidade de elite, e não passava pela cabeça dos chefes do Exército deixá-lo de fora da FEB – ainda que o estado de aprestamento não fosse lá dos melhores. Como, diga-se de passagem não era em todo o Exército.

A formação da FEB incluiu também os regimentos 6º de Infantaria (de Caçapava, São Paulo, o “Regimento Ipiranga“) e 11° de Infantaria (de São João Del Rei, Minas Gerais, atualmente 11° Batalhão de Infantaria de Montanha, o “Regimento Tiradentes”, atualmente os “boinas cinzas”, unidade de Pronto Emprego). Claro que a inclusão dessas unidades visava premiar, politicamente, os principais estados da Federação, embora a incorporação de efetivos tenha sido feita em todo o Brasil. O país teria certa dificuldade (para sermos condescendentes…) em formar uma tropa capaz de combater em contexto moderno. A organização do Exército baseava-se ainda nos ensinamentos da Missão Militar Francesa, contratada depois da 1ª GM. A FEB teve de se adequar à organização adotada pelos norte-americanos, que, por sua vez, vinham reorganizando suas forças armadas desde o final dos anos 1930. Os EUA tinham adotado, a partir de 1939, uma estrutura orgânica e administrativa semelhante aquelas adotadas na Europa. Contando com um potencial humano superior ao da Alemanha (em 1940, tinha uma população de uns 170 milhões de habitantes, contra 90 milhões da Alemanha), os planejadores norte-americanos imaginaram que poderiam contornar certos problemas aumentando o tamanho das grandes unidades (as divisões).

Neste porto, vale um parentese para examinar exatamente o que constitui uma “divisão” – no caso que nos interessa, uma divisão no formato norte-americano, aquele que foi copiado pela FEB – e pelo “Primeiro de Infantaria”.

Os EUA mobilizaram sessenta e sete divisões de infantaria durante a 2ª GM, dentre as  quais em torno de quarenta eram consideradas “de primeira linha”. Quarenta e duas divisões serviram no ETO (Teatro de Operações Europeu) e no MTO (Teatro de Operações do Mediterrâneo); as restantes 23 foram alocadas no PTO (Teatro de Operações do Pacífico). Essas unidades eram baseadas em conceito relativamente novo – de fato, tinham sido formadas para a guerra que se avizinhava.

A primeira forma de organização divisional adotada pelos EUA surgiu durante a 1ª GM. Eram organizadas com base no modelo francês, mas, depois da Guerra esse modelo foi substituído por outro, híbrido, que adotava a organização “ternária” – cada divisão possuía três regimentos de infantaria e cada regimento era dotado de três batalhões. Completavam a unidade elementos de artilharia divisionária, formados por quatro batalhões; um esquadrão motorizado de reconhecimento com certa capacidade de choque; unidade de engenharia, serviços médicos e pessoal administrativo. O Estado-maior era único, atendendo a toda divisão, embora os regimentos tivessem os seus.  O comandante era um general de duas estrelas (no exército dos EUA, major-general), que podia ter um general de uma estrela (brigadeiro, posto inexistente no Exército Brasileiro) ou um coronel como assistentes. A artilharia era comandada por outro brigadeiro, os regimentos de infantaria, por coronéis, e tenente-coronéis comandavam os batalhões. Essa organização foi consolidada em 1940-1941. Por volta do início de 1943, com a estabilização da frente do Pacífico e o início dos preparativos para os desembarques no norte da África, a dificuldade de formar oficiais e, principalmente, encontrar oficiais para serem promovidos a generais fez com que os postos de comando intermediários fossem rebaixados. Os regimentos de menor efetivo (como os de cavalaria, ou seja, infantaria blindada) ou de segunda linha (como os de colored troops, unidades de negros comandadas por oficiais brancos da Guarda Nacional e de engenharia de contruções) passaram a ser comandados por tenentes-coronéis, e os batalhões de infantaria, por majores com experiência de tropa (mais tarde, de combate).

A dotação de pessoal e veículos das grandes unidades era constantemente aumentada, com base na experiência de combate. Em meados de 1944, chegou ao ponto de reunir pouco mais de 14.300 efetivos, uns cinqüenta canhões de campanha (três baterias de obuses 105 mm – em inglês, field howitzer , rebocados por caminhões, e uma bateria de obuses 155 mm); havia também uma bateria de canhões AT de 57 mm e cerca de 1400 veículos. As divisões de infantaria “de primeira” também dispunham de algo entre oito e doze aeronaves ligeiras de observação.

Os regimentos de infantaria reproduziam a organização da divisão, cada qual com três batalhões, cada um com três companhias; em cada batalhão, uma quarta companhia encarregava-se dos “petrechos pesados”, ou seja, metralhadoras pesadas – montadas em tripés e operadas por uma “seção” de quatro homens – e morteiros leves. Os batalhões dispunham de uma quarta companhia, “de comando e serviços”, que reunia Inteligência, Reconhecimento, Comunicações, Engenharia, Saúde e Administração, alcançando, quando completos, pouco mais de 900 efetivos, comandados por um tenente-coronel ou major. No total, um regimento de infantaria, comandado por um coronel, reunia cerca de 3.300 efetivos. Já as unidades “divisionárias”, que reuniam o pessoal da artilharia divisionária, comunicações, engenharia de combate, transportes, logística, saúde, administração, o Estado-maior e, em certos casos, infantaria de reserva, chegavam a 5.000 efetivos.

Em teoria, era um organização capaz de dar conta de um setor de frente de aproximadamente trinta quilômetros de largura e profundidade variável, conforme o terreno. A experiência de combate mostrou que a teoria, na prática, era outra, e de fato, bastavam algumas semanas em combate para que a frente se tornasse “porosa”, já que as baixas não eram repostas em tempo hábil. Esse era o problema que os alemães não tinham conseguido resolver, depois de 1943; os norte-americanos só vieram a senti-lo plenamente no final de 1944, com a inesperada contra-ofensiva das Ardenas.

A FEB foi organizada como um tropa norte-americana do tipo descrito acima, o que não foi feito sem bastante trabalho. A principal unidade era a 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária que, com pequenas diferenças (por exemplo, não recebeu obuses 105 automóveis, que se tornaram comuns na época da chegada à Itália, não tinha artilharia anti-aérea e o principal armamento de infantaria era o fuzil M1903 Springfield), era igual às divisões de infantaria norte-americanas. O “Primeiro de Infataria” era o primeiro regimento da FEB. A organização da tropa começou com estágios de oficiais nos cursos regulares de infantaria e artilharia, em Fort Benning, Georgia e, mais tarde, com toda a tropa instruída no Brasil conforme os  padrões norte-americanas e complementando a instrução na Itália, nas diversas “Escolas Treinamento de Comando e Combate” (Leadership and Battle Training School). Valeu à pena – apesar das controvérsias que existem até hoje, no geral, a tropa brasileira se saiu bem. E graças ao período de quase nove meses integrado ao MTO, o Exército Brasileiro tomou contato com as doutrinas militares que iriam prevalecer nas seguintes três décadas, adquiriu experiência de combate e, principalmente, constituiu uma tradição de inestimável valor memorial. 

De volta ao Brasil, a FEB foi mantida como base para o que talvez tenha sido a maior reorganização pela qual o EB passou desde sua criação como corporação de estado, em 1822. Envolvidos na Guerra Fria, os norte-americanos queriam conquistar a fidelidade das forças armadas de seus aliados periféricos, cujas sociedades consideravam suscetíveis à “influência de Moscou”. Dentre outros, dois métodos se destacaram: oferecer o concurso de instrutores militares e disponibilizar a esses aliados certa quantidade de armamento relativamente moderno a preços subsidiados, através dos Acordos de Cooperação Militar e dos Programas de Vendas Estrangeiras (Foreign Military Sales) que decorreram deles, a partir de 1947. O resultado é que, dez anos após o final da 2ª GM, o Brasil estava entre os aliados mais confiáveis dos EUA e o Exército tinha alcançado o maior efetivo desde a Guerra do Paraguai, sendo o maior da América Latina, e talvez um dos três maiores do Hemisfério Sul. No início dos anos 1960, podia colocar em campo, caso necessário, um corpo blindado (uma divisão blindada e duas motorizadas) e cinco divisões de infantaria, com um complemento de umas 200 peças de artilharia de campanha dos mais variados calibres.

Embora a base da estrutura persistisse aquela adotada para a FEB e depois disseminada pelos instrutores norte-americanos, diversas reorganizações administrativas e orgânicas foram implementadas, ao longo da segunda metade do século 20. Um aspecto que, entretanto, ainda ligava o exército de então aquele reformado em 1908 era a Vila Militar, que, em 1960, era o maior aquartelamento de tropas terrestres da América Latina.

Do ponto de vista organizacional, algumas mudanças foram sendo implementadas nos anos 1950, de modo a aumentar a eficiência administrativa. Mas apenas nos anos 1970 o Exército passou por nova reestruturação, que viria a modificar a organização adotada nos anos imeditamente posteriores à Segunda Guerra Mundial. O novo formato começou a ser estudado no final dos anos 1960, e buscava dar à força terrestre maior flexibilidade, baseada sobretudo em padrões mais avançados de integração e mobilidade. As antigas grandes unidades de armas (divisões de cavalaria e infantaria e os regimentos de cavalaria mecanizada e blindada) foram reunidas em grandes unidades denominadas “Divisões de Exército”, formações de todas as armas, capazes de alto grau de iniciativa. As principais unidades orgânicas passaram a ser as brigadas, unidades de arma, de efetivo maior do que o dos antigos regimentos, organizadas em torno de tropas motorizadas, com complementos próprios de artilharia e engenharia. Essa nova proposta de organização levou, em 1971, à extinção do Primeiro Regimento de Infantaria e, em seu lugar foi criado o 1° Batalhão de Infantaria Motorizado (Escola), ou 1° BIMtz(Es). Essa unidade é concebida para ser referência do Exército Brasileiro, no que tange à aplicação de doutrinas e métodos, e foi integrado à uma nova grande unidade,  a 9ª Brigada de Infantaria Motorizada, núcleo do Grupamento de Unidades Escola do EB.

A 9ª BdaInfMtz, dentro da nova doutrina, que vem sendo implantada no Exército desde os anos 1980, é uma das unidades da Força de Deslocamento Rápido/Pronto Emprego. A idéia do Pronto Emprego firmou-se quando o Exército, a partir dos anos 1980, posto diante de sucessivos cortes de verba e da diminuição progressiva de seu orçamento, passou, na prática, a ser divido em dois (embora nenhum milico admita isso…): o Pronto Emprego e o resto. O Pronto Emprego – cujo conceito baseia-se em discussões realizadas, nos anos 1990, no âmbito da ONU – é parte do EB capaz de ser rapidamente mobilizada e colocada, em caso de necessidade, em condições de deslocamento, por terra, ar ou mar. Sob a essa designação estão unidades consideradas de elite, com dotação de pessoal, equipamentos e suprimentos mantidos, tanto quanto possível, próximos do ideal. A FDR está subordinada administrativamente à 1ª Divisão de Exército, e a 9ª Motorizada é considerada núcleo dessa força, juntamente com os pára-quedistas, os “boinas cinzas” e os aeromóveis – e também os Fuzileiros Navais. Suas principais unidades são o “Primeiro de Infantaria”, o “Segundo de Infantaria” (o tradicionalíssimo “Dois de Ouro”, que disputa com o “Sampaio” a honra de ser a mais antiga unidade do EB…), o 15° Regimento de Cavalaria Mecanizado (Escola), o também tradicional “ReCMec”, a primeira motorizada do Exército formada no espírito das novas doutrinas, em 1946 (vale à pena dar uma paradinha aqui), o Batalhão Escola de Engenharia, o tradicional (como não seria, devem estar se perguntando os oito ou nove leitores…) “Batalhão Villagran Cabrita”  e o Batalhão Escola de Comunicações. Outras unidades estão integradas à esta brigada, mas o “Primeiro de Infantaria” junto com as outras duas (o “Dois de Ouro” e o “ReCMec”), são as jóias da coroa, não só do GUES, mas do Exército Brasileiro::

Minha comemoração particular do fim da Segunda Guerra Mundial::Drops para o fim de semana::

Tropas britânicas embarcando para evacuação, nos primeiros dias da "Operação Dínamo", Dunquerque (costa norte da França), maio, 1940: avaliação política equivocada ou erro militar crasso?..

Em 2006 caiu nas mãos do redator:: um livro fascinante: “As entrevistas de Nuremberg” (o livro pode ser consultado, com restrições, aqui). Não é preciso explicar a nenhum leitor assíduo ou eventual de causa:: o que foi o Tribunal Militar Internacional. Leitor de causa:: ou não, todo mundo sabe que o TMI, ao longo da ano de 1946, julgou os principais criminosos nazistas. Foram réus do, tribunal, instalado na cidade de Nuremberg, Hermann Göring, Rudolf Hess, Joachim von Ribbentrop, Robert Ley, Wilhelm Keitel, Ernst Kaltenbrunner, Alfred Rosemberg, Hans Frank, Wilhelm Frick, Julius Streicher, Wilhelm Funk, Hjalmar Sclacht, Gustav Krupp, Karl Dönitz, Erich Raeder, Baldur Von Schirach, Fritz Sauckel, Alfred Jodl, Martins Borman, Franz von Papen, Arthur Seyss-Inquart, Albert Speer, Constantin von Neurath e Hans Fritzche. Os vinte e três “grandes criminosos” foram indiciados por diversos crimes, sendo alguns deles responsabilizados por provocarem deliberadamente a Segunda Guerra Mundial (planejar uma guerra de agressão) e ter cometido atrocidades durante as operaações militares para a conquista de territórios estrangeiros (violação das leis e costumes da guerra), oprimindo e matando a população inocente (crimes contra a humanidade). As acusações específicas iam do assassínio político ao extermínio de etnias religiosas, passando por crimes militares, escravização e pilhagem. O Tribunal Militar Internacional não se encerrou no grande processo, mas continuou, em uma série de treze julgamentos realizados entre 1945 e 1949. Nesses processos foram acusados e julgados uma série de funcionários civis e militares, responsabilizados por crimes relacionados aos “grandes crimes”.

Durante o julgamento principal, um médico do Exército dos EUA, major Leon Nathaniel Goldensohn, especializado em psiquiatria, foi designado para monitorar a saúde mental dos acusados.  Seu trabalho era feito com base em entrevistas diárias que abrangiam dezenas de nazistas de primeira linha, entre os levados ao tribunal como réus e outros convocados como testemunhas. O trabalho durou até meados de 1946 e resultou em dentenas de páginas de anotações, que, após ser transferido, Goldenshn conservou em seu poder. O médico morreu  em 1961. Suas notas ficaram esquecidas, até seu irmão as recuperar e editar para publicação, em 2004. O livro foi lançado em nossa língua no ano seguinte.

As entrevistas, em si, não têm nada de surpreendente: todos os acusados tentam se safar, e, em geral, da maneira usual. Nenhum deles foi responsável por nada, tudo tinha sido culpa de Hitler, de Himmler, de Borman (mortos, claro…) ou dos outros envolvidos, presentes ou não. Interessante mesmo é o panorama da Alemanha pré-Hitler que vaza das falas dos entrevistados, assim como a trajetória  dos acusados até o poder – enfim, a visão de mundo daquela gente.

Baseado nas entrevistas de alguns líderes militares, o redator:: resolveu fazer a experiência de analisar uma grande operação da 2ª GM mesclando a fala de homens que tiveram indubitável importância na direção da guerra, e trechos que são esclarecedores sobre esses mesmos temas, recolhidos em outras excelentes publicações disponíveis em português.

Um dos entrevistados que fala de forma mais clara é o general-marechal-de-campo (em alemão, general feldmarshall) Ewald von Kleist. Este cavalariano clássico, que, quase por acaso se viu comandando tanques, teve uma carreira destacada durante a guerra. Na campanha da França, foi designado comandante de um grupo blindado, o “Panzergrüppe Kleist“, formado a partir do 22° Corpo de Exército. O “grupo blindado Kleist” (na 2ª GM, unidades assim designadas tinham a primeira letra do nome do comandante estampadas em todos os veículos) alcançou e cruzou o rio Meuse, nas proximidades de Sedan em 13 de maio, abrindo assim uma brecha em forças francesas muito superiores. Continuou avançando, tendo os especialistas Guderian e Reinhardt como pontas-de-lança, no melhor estilo “guerra-relâmpago”, até as margens do canal Aire-Saint Omer, alcançado três dias depois. Uma vez cumprido esse objetivo, recebeu a surpreendente ordem superior de deter suas forças, que estavam virtualmente intocadas (tinham sofrido 11 por cento de baixas) e dispunham de combustível suficiente. Kleist decidiu ordenar que alguns elementos de vanguarda cruzassem o canal explorando o caminho até a cidade de Hazebrouck, importante entrocamento ferroviário. O Oberkommando des Heeres (OKH, Alto comando do Exército, formado em 1936) entretanto, reforçou a ordem de alto e Kleist teve de retirar os dois regimentos que estavam às portas da cidade. Ao longo dos três dias seguintes, todo o grupo foi mantido em posição. Depois se descobriu que o alto-comando do Exército tinha desconfiado de uma armadilha, dada a facilidade com que os blindados estavam avançando por toda a França. Durante a segunda fase da campanha, Kleist recebeu o controle da 16ª Divisão Blindada e do 14° Corpo Motorizado. Seu grupo de combate atacou a partir de Amiens e conquistou uma cabeça-de-ponte sobre o rio Oiser. Dali até o porto de Dunquerque seria um pulo. Entretanto, em 24 de maio, Kleist novamente recebeu ordens de alto, desta vez no canal do rio Aa, à sudeste de Dunquerque. A tropa de Kleist terminou a campanha alguns dias depois, às portas de Lyon. O general soube, mais tarde, que a ordem tinha partido de Hitler, em pessoa.

Convocado pelo TMI como testemunha (posteriormente, foi julgado e condenado por crimes de guerra cometidos sob sua direção, na Iugoslávia, em seguida entregue aos soviéticos para novo julgamento), seu depoimento é um dos mais interessantes dentre os que aparecem no livro de Goldensohn. Sobre a surpreendente ordem de alto no canal do Aa, diz Kleist que…

“… os ingleses conseguiram escapar da armadilha em Dunquerque, tão cuidadosamente armada por mim, apenas com a ajuda pessoal de Hitler. Havia um canal de Arras a Dunqurque e eu já havia atravessado esse canal, e minhas tropas ocupavam que se projetavam sobre Flandres. Portanto, meu grupo de blindados tinham o controle de Dunquerque e da área onde os britânicos estavam imobilizados. O fato é que os ingleses não teriam conseguido chegar em Dunquerque porque estavam sob a minha mira. Aí Hitler ordenou pessoalmente que eu retirasse minhas tropas daquelas colinas.”

Essa situação tem muitas interpretações. Inúmeros historiadores costumam a dizer que talvez Hitler pretendesse dar um refresco aos britânicos, para que estes pudessem decidir o que fazer. Até então a intuição política de Hitler tinha funcionado bem, e ele possivelmente imaginava que os britânicos iriam acabar resolvendo negociar. Em uma excelente síntese publicada na Inglaterra em 1990 e no Brasil em 1993, o historiador canadense Martin Kitchen parece ter dúvidas exatamente nessa direção:

“Os motivos de Hitler continuam a ser uma espécie de mistério. Rundestedt afirmou … que Hitler permitiu deliberadamente que os britânicos escapassem, na esperança de chegar a um acordo político. No dia 17 de maio ele comunicara … sua intenção de dividir o mundo com os britânicos. … os britânicos tinham de … aceitar a dominação germânica no continente europeu e poderiam conservar a supremacia naval e o Império. No dia 21 de maio, Halder foi informado de que o governo alemão tinha esperança de chegar a um acordo com a Grã-Bretanha sobre a divisão do mundo. … no dia 2 de junho, Hitler declarou … que tinha confiança em que a Grã-Bretanha aceitaria uma ´paz razoável´, que o deixaria livre para dar prosseguimento à sua ‘missão realmente grande’ de esmagar a União Soviética. O Império Britânico, insistira, tinha um papel vital a desempenhar, em nome da raça branca.”

O historiador britânico Ian Kershaw pensa diferente. Falando sobre o incidente, no livro “1940-1941 – Dez decisões que mudaram o mundo“, ele coloca diretamente sua discordância:

“Quando Hitler visitou o quartel-general de seu comandante ocidental, coronel-general Gerd von Rundestedt, na manhã de 24 de maio, os panzers já estavam menos de 24 quilômetros ao sul de Dunquerque. Depois de avaliar a situação militar com Rundestedt, Hitler deu a ordem para o avanço ser interrompido naquele ponto e não prosseguir até Dunquerque. A decisão logo veio a ser vista como uma oportunidade crucial perdida de acabar com as forças derrotadas do Exército britânico. Tentando justificar um grande erro militar, Hitler posteriormente sugeriu que não quisera destruir o Exército britânico, a espinha dorsal do Império. Isso não passou de uma racionalização para salvar as aparências. Na verdade, ele estava apenas seguindo a recomendação militar de seu comandante de campo, Rundestedt, que quisera preservar suas unidades motorizadas para a investida final para o sul, para concluir a campanha. Longe de querer preservar o Exército britânico, Hitler foi levado por Göring, comandante-em-chefe da Aeronáutica alemã, a acreditar que a Luftwaffe acabaria com tudo.”

É provável que ambos os historiadores estejam corretos (Kitchen não descarta a hipótese do erro militar), mas o depoimento de von Kleist aponta para a análise de Kershaw:

“Hitler achou que era arriscado demais. Eram absurdas as ordens dele naquela época. Poderíamos ter aprisionado ou exterminado totalmente o exército britânico, não fosse a ordem estúpida de Hitler. A prova é que, três dias depois, os ingleses ocuparam as colinas, e fui obrigado a atacá-los de novo para tirá-los de lá. O grosso das tropas inglesas, porém, já havia atingido Dunquerque e estava fugindo em pequenos barcos. O triste disso é que eu poderia ter capturado o exército britânico, ou uma parte tão grande, que uma invasão da Inglaterra teria sido uma questão simples.”

Um outra questão, entretanto, são as divergências que haviam dentro do próprio exército alemão, entre os generais “de blindados” e os tradicionais – estes no comando. Rundestedt fazia parte da ala tradicional, que via limites nas possibilidades das forças motorizadas. Aristocrata prussiano, no exército desde 1892, oficial de estado-maior desde 1907, general-de-brigada em 1932, general-de-exército em 1938, Rudestedt expressava as mais arraigadas tradições da infantaria prussiana. De fato, emanava dele a preocupação com a distensão aparentemente excessiva dos blindados. Rudestedt era um infante que buscava a modernização da infantaria, tanto que, em 1934, juntou-se a um projeto que introduzia caminhões como transportes de tropas, ao invés das tradicionais carroças; também se interessou pelo uso de tanques como “artilharia móvel” nas divisões de infantaria. O general advogava a coordenação entre blindados e forças de infantaria, ainda que da forma tradicional. Mas, em geral, os analistas acham que ele, de fato, não acreditava nos blindados. Convocado da reserva para o serviço ativo, em 1939, durante a Campanha do Ocidente foi designado comandante do Grupo de Exércitos A. O Sichelschnitt (“Golpe de foice”), desbordamento através das Ardenas, idéia de Manstein, foi entusiasticamente advogado pelo velho comandante. Entretanto, também foi o militar que esteve no meio da “crise de Arras”.

Foi um momento de pânico no alto-comando, cuja origem esteve na facilidade, não prevista, do avanço das forças motorizadas através da França e da Bélgica. Quando, em 21 de maio, um contra-ataque britânico mostrou-se surpreendentemente bem sucedido, e quase resultou numa derrota da 7ª Divisão Blindada, a “Divisão Fantasma” de Rommel, na área de Arras, alguns comandantes alemães parecem ter perdido a calma. O comandante do 4° Exército suspendeu todos os movimentos das forças motorizadasaté que a situação fosse controlada, e o resultado é que o rápido avanço do Grupo Blindado Kleist foi também desacelerado. Rundstedt, reunido com Hitler, mostrou-se muito preocupado com a falta de coordenação entre tropas motorizadas e infantaria, que poderia deixar os blindados descobertos.  Em 23 de maio, ele sugeriu que as formações blindadas fossem detidas. Hitler mostrou-se favorável à medida, e desautorizou as ordens em contrário emitidas pelo OKH. A diminuição de velocidade transformou-se numa ordem de alto, que durou até 27 de maio. Foi nesse período que as tropas da Força Expedicionária Britânica escaparam através do Canal. Essa prudência excessiva seria apenas a expressão da personalidade de um comandante pouco afeito a assumir riscos. Sempre tinha sido assim, desde a execução do plano de Manstein. Segundo o historiador militar Earl F. Ziemke, autor de uma biografia militar de Rundestedt…

“No quartel-general do Grupo de Exércitos A, na tarde do dia 17, Hitler deu pleno apoio a uma avaliação na qual Rundestedt ‘enfatizava a situação delicada do flanco sul’, e acreditava que nada era mais importante para toda a operação do que uma prontidão defensiva, absolutamente segura no Aisne e no Somme. … preocupava-se com a possibilidade de seu flanco esquerdo ficar exposto com a travessia do Meuse que, esperava, estivesse fortemente defendido. Guderian ficou desolado ao descobrir que Rundestedt acreditava que divisões panzers e motorizadas não poderiam cruzar rios sem ajuda da infantaria.”

Von Brauchitsch e Halder discordaram, e tomaram a decisão – correta – de ordenar que o ataque prosseguisse, ainda que sem consultar Hitler. Esses dois também não confiavam totalmente nos tanques, mas acreditavam no que estavam vendo – o enorme sucesso do novo estilo de guerra. Segundo o historiador Andrew Roberts, no excelente “Hitler e Churchill: segredos da liderança”caso Rundestedt pudesse ter decidido, ainda assim seguiria as diretrizes de Hitler, que, durante toda a campanha do Ocidente, mostrou-se hesitante. Para ele, a blitzkrieg teria sido mais krieg e menos blitz. Em meio a essas hesitações que a Inglaterra pôde salvar-se, naquele momento.::

Minha comemoração particular do fim da Segunda Guerra Mundial::MP40, a “arma do soldado nazista”::

parte2/2Mas havia um problema: a doutrina que estava sendo estudada para as nova “tropas blindadas” (em alemão, Panzertrüppen) implicava em maior poder de fogo individual. As unidades a serem empregadas (regimentos e batalhões) em combate seriam necessariamente menores do que as das forças convencionais, em função da disponibilidade de veículos motorizados em cada grande unidade (divisão). Os planejadores esperavam que as frações (companhias, pelotões e esquadras), transportadas em veículos protegidos especiais ou em caminhões convencionais, pudessem compensar a diminuição dos efetivos combinando velocidade e poder de fogo. As frações de “infantaria blindada” (panzergrenadieren, em alemão) deveriam ser lançadas diretamente nos setores de combate a partir dos transportes motorizados que seguiriam os “carros blindados” (panzerwagen, em alemão),o que tornava o potente cartucho convencional (o IS 7.92) dispensável, já que o tiro não seria disparado de grande distância. Melhor seria uma arma com grande cadência de fogo – e que o combatente pudesse transportar maior quantidade de munição preparada. A submetralhadora pareceu a solução ideal, simplesmente por existir. 

As experiências com armas pesadas especiais (os tanques), tropas blindadas, motorizadas e mesmo pára-quedistas remontavam ao final dos anos 1920 e início dos 1930. Os oficiais que conceituaram essas tropas eram todos de patente intermediária (majores e tenentes-coronéis), ou seja, não mandavam nada, e o Estado-maior geral desprezava armas automáticas e veículos motorizados. A subida dos nazistas ao poder mudou o panorama. Hitler interessou-se por um manual que apresentava a teoria do assunto, e tornou-se uma espécie de advogado das forças blindadas.

Foi nessa época (1934) que as forças blindadas começaram a “pegar”, em função de exercícios teóricos e simulações de campo bem-sucedidos. Ainda assim, o apego dos generais aos conceitos tradicionais persistiu: mesmo com o sucesso das novas experiências, a doutrina alemã não chegou a mudar. O tiro individual a longa distância continuou a ser enfatizado. Vários infantes disparando ao mesmo tempo, apoiados por uma ou mais metralhadoras, criariam o peso de fogo necessário para superar o adversário.

Assim, podemos dizer que o Exército Alemão de 1939 dispunha de duas categorias de tropas bem diferenciadas: as forças blindadas e o resto do exército. As primeiras, compostas por dez divisões blindadas, sete divisões de infantaria motorizada e três divisões “ligeiras” (divisões blindadas com um efetivo menor de tanques e veículos motorizados), representavam apenas sete por cento do efetivo total – no início da guerra, uns 130.000 militares (o Exército todo montava pouco mais de 1.800.000 efetivos, nessa época). Mas era “outro exército”, com a introdução dos blindados sobre lagartas, transportes de tropas e apoio logístico motorizado, comunicações por rádio e aplicação de interdição e apoio aéreo aproximado. Essas tropas receberam uma quantidade maior de submetralhadoras: uma em cada quatro armas. A outras três continuaram a ser os fuzis de repetição convencionais. No exército “comum”, menos de dez por cento da dotação total de armas de infantaria era composta por submetralhadoras.

Esse “exército comum” era formado basicamente de divisões de infantaria do tipo clássico. Eram transportadas para a frente em trens, deslocavam-se a pé na última parte do trajeto ou, quando necessário, em veículos tirados a cavalo. Nessas unidades, o armamento continuou a ser o convencional, com a diferença de que a esquadra de combate passou a ser equipada com uma metralhadora ligeira fazendo o papel de fuzil-metralhador (a partir de 1934, a excelente MG34 passou a ser distribuída em grandes números). 

Pouco antes da guerra, as possibilidades das forças blindadas foram confirmadas na prática, em 12 de março de 1938, no rápido deslocamento para a ocupação da Áustria. Por volta dessa época, chegou a ser discutida a distribuição de submetralhadoras para todo o exército, em função de informações sobre o exército russo. Mas os métodos de atuação continuaram virtualmente os mesmos da guerra anterior, apesar de algumas modificações introduzidas em função da distribuição de metralhadoras ligeiras. Aí também interferiu a questão econômica. No início dos anos 1930, os estoques de carabinas KAR98K, herdadas da 1ª GM ainda eram enormes. Na confusão do pós-guerra anterior, quando a Alemanha não foi propriamente desarmada, depósitos militares tinham sido preservados pelas tropas francas que proliferaram pelo país. Em 1935, com a retomada da conscrição universal, o aumento repentino do tamanho do exército exigiu grande quantidade de equipamento individual. As armas herdadas da Grande Guerra foram distribuídas às tropas, e as fábricas continuaram a produzi-las utilizando tecnologia, gabaritos e ferramental já disponíveis. Muitos dos industriais e engenheiros alegavam que não haveria tempo para desenhar e colocar em produção uma nova arma-padrão. Estudos de um fuzil semi-automático foram postergados.

E o Exército não dispunha nem mesmo de grande quantidade de submetralhadoras. Essa arma tinha tido sua fabricação, em calibres superiores a 7.65, proibida pelo Tratado de Versalhes. O resultado é que uma variedade de tipos teve que ser adquirida para as tropas especializadas que necessitavam delas: Bergmans e Ermas do tipo das forças policiais foram encomendadas. Ainda assim, Departamento de Armamento do Exército (em alemão, Heeres Waffenamt- HWA), reestruturação do Departamento Nacional de Armamento (em alemão, Reichsswaffen Amt) resolveu que um novo modelo era necessário e lançou a requisição. A companhia Erfurter Maschinenfabrik (ERMA), fábrica de máquinas estabelecida em 1922, foi escolhida em 1936 para desenhar a nova arma. O resultado foi a Maschinepistole Modell 1936 – ou, simplesmente, MP36.

Essa arma, considerada pelos especialistas como um modelo de teste de conceito, era projeto do engenheiro Heinrich Vollmer, que, em 1925, apresentou para testes a Vollmer Maschinenpistole VMP 1925. Com o receptor colocado abaixo da caixa de culatra e o carregador em posição vertical, a VMP 1925 disparava apenas em modo automático, não tinha chave de segurança e sua alça de mira contava apenas três posições: branco, cem e duzentos metros. Embora a arma tenha sido reprovada nos testes, o IWG (Inspektion für Waffen und Gerät, Inspetoria para Armamentos e Equipamento, seção do RWA) resolveu apoiar o desenvolvimento do protótipo. 

Em 1926 Vollmer modificou o carregador de seu projeto, adotando um desenho de 30 cargas escalonadas, tipo caixa, que foi considerado muito fácil de usar. O receptor voltou à posição lateral, do lado esquerdo da caixa de culatra.  A nova versão foi designada VMP 1928 e Vollmer continuou trabalhando em seu desenvolvimento. Em 1930, uma nova versão foi apresentada, a VMP 1930.

Essa versão era externamente muito similar ao modelo anterior. A principal modificação era interna: um tubo telescópico que continha a mola recuperadora e a mantinha permanentemente ligada ao ferrolho. Essa peça aumentou a confiabilidade da arma, além de ter tornado mais fácil a desmontagem em campo, por diminuir o número de peças que a compunham, reduzidas a apenas quatro: cano e receptor, ferrolho e mola recuperadora, caixa de culatra e coronha. Foram fabricadas umas 400 VMP 1930 até que o IWG cortou o financiamento de Vollmer. Embora o Exército tenha alegado problemas técnicos não satisfatoriamente resolvidos (mais exatamente, uma cadência de fogo excessivamente alta), é mais provável que tenha sido mesmo a recessão de 1929, que, em 1930, atingiu duramente a Alemanha.

Vollmer não conseguiu recursos para fabricar a arma e acabou vendendo a patente para a ERMA em 1931. O projeto, ligeiramente modificado, virou a EMP (ERMA Maschinepistole), nos calibres 7.65X22 mm Luger, 7.63X25 Mauser e 9X19 mm Parabellum, e se tornou um sucesso de vendas. Tirante as inovações mecânicas, as EMP não eram diferentes das outras armas do tipo: o sistema era o recuo direto a partir da culatra aberta, o tiro era seletivo e a ergonomia, ainda a de fuzil. Em 1936, com a requisição do Exército, a ERMA apresentou uma  versão da EMP, redenhada pelo próprio Vollmer. A principal novidade foi uma mudança radical da ergonomia. O desenho da coronha de fuzil foi mudado para empunhadura de madeira dotada de um punho de pistola na extremidade. A coronha fixa foi substituída por uma peça feita em arame de aço, que podia ser rebatida em 180 graus, para baixo da caixa de culatra, sendo que a placa de apoio girava até ficar totalmente alojada atrás do receptor. Mesmo com muitas peças, como a caixa de culatra e o receptor, fabricadas em metal usinado, era um pouco mais leve do que suas antecessoras, devido ao redesenho.

O surgimento desse desenho pode ser creditado aos estudos dos planejadores das tropas motorizadas e dos pára-quedistas (fällschrimjägern),  e de requisições feitas diretamente ao HWA. Parece claro que o objetivo inicial com essa nova submetralhadora era dotar as novas tropas de uma arma adequada à doutrina. O Exército “comum” nunca mostrou interesse por armas longas automáticas, como já vimos. O novo desenho foi ainda pior recebido, pois a doutrina da infantaria convencional colocava que uma forte coronha de madeira era necessária não apenas em função do tiro, mas também, porque, em situação de combate próximo, essa poderia ser usada como porrete. Uma submetralhadora “de infantaria” teria, pois, de ter coronha convencional. O impasse só foi resolvido por Hitler, em pessoa. Ainda assim, o Exército não chegou a testar a arma, e poucos exemplares (calcula-se que não mais de 500 unidades) foram fabricados.  

Em 1938, o Departamento de Armamento do Exército lançou nova requisição para submetralhadora. A ERMA apresentou uma nova versão da MP36, com alguns detalhes redesenhados. A empunhadura passou a ser de baquelite (um tipo de resina sintética), o seletor de fogo foi eliminado e as peças de metal usinado foram simplificadas, o que resultou na mudança da posição do receptor – na MP36, este era ligeiramente inclinado para a frente. Em agosto de 1938, a arma foi aprovada e começou a ser distribuída quase imediatamente. Recebeu a notação *MP38. Com a coronha rebatida, media 63 centímetros de comprimento, sendo que 25,1 centímetros correspondiam ao cano; com a  coronha em posição, o comprimento total aumentava para 83 centímetros. O peso era de pouco mais de 4100 gramas. A cadência de fogo subia a 450-500 salvas por minuto, com uma velocidade de saída do projétil de aproximadamente 380 m/s. Isso tornava o alcance útil não maior do que 200 metros. A baixa cadência de fogo possibilitava uma precisão um pouco maior do que de modelos como a M1928 norte-americana (a Thompson), com cadência de 600 salvas – a MP38 sequer tinha compensador de boca. Também não possuía seletor de tiro, sendo somente possível disparar em rajadas. Essas características tornaram as miras graduáveis usadas até então totalmente inúteis, e essas foram substituida por um sistema de placas rebatíveis com uma fenda no centro, reguladas para distâncias de 100 e 200 metros, articuladas a um visor tipo *grão de centeio. A arma podia ser transportada pelo usuário em diversas posições, conforme as necessidades das forças motorizadas e aeroterrestres: tinha características estudadas para facilitar o uso em veículos motorizados, principalmente os transportes blindados meia-lagarta SdKfz 250/51, dotados de escotilhas laterais que permitiam o tiro em movimento. Abaixo do cano, logo atrás da boca, um ressalto foi projetado para manter o cano em posição, impedindo a arma de, quando utilizada por soldados embarcados, atirar para dentro da cabine do veículo.

Durante a campanha da Polônia, uma série de problemas da MP38 foram apontados. O pior era a tendência a disparar sem intervenção do atirador. Com um tranco relativamente fraco, mesmo se a alavanca de armar se encontrasse em posição de segurança, o ferrolho saltava da posição (um corte na parte superior traseira da caixa de culatra) e ia violentamente para a frente, fazendo o disparo. Esse problema foi corrigido com o redesenho da mola recuperadora (cuja tensão foi reduzida) e do percussor, mas principalmente com um novo dispositivo de segurança. Na MP38 (aqui, uma vista em corte da arma e de suas principais peças, que eram desmontadas em campo – “1° escalão de manutenção”) a alavanca de armar era fixa; na nova versão, passou a ser trancada pelo atirador na posição de segurança: na posição “culatra aberta” (o bloco de culatra puxado para trás), a alavanca era fixada no ressalto de segurança e rebatida para cima. Tinha de ser destrancada antes de ser colocada em posição “armada” (puxado o bloco totalmente para trás). A versão de transição, chamada de MP38/40, distribuída em 1940, recebeu esse dispositivo. Outro defeito era a mola do carregador. Feita em metal barato, rapidamente perdia a elasticidade, e fazia a arma travar, quando as 32 cargas eram colocadas lá. Os soldados contornavam o problema colocando apenas 30 ou 31 cartuchos (na *foto, granadeiro blindado com uma MP38 da versão original. Note que, para evitar disparo acidental, o soldado retirou o carregador da arma).

Mas o principal problema não era de operação: a fabricação era difícil e, sobretudo, muito cara. As peças usinadas eram difíceis de produzir e tornavam o tempo de fabricação e a razão homens/hora bastante altos. No início de 1940, visando a distribuição massiva, o Exército ordenou modificações no projeto e nos métodos de produção. Por volta dos meados daquele ano, uma nova arma começou a ser distribuída, externamente semelhante, porém menos dispendiosa e complexa de fabricar do que a anterior. Essa versão, considerada intermédia (MP38/40), serviu de base para a produção da versão definitiva, a *MP40.

A MP40 passou a usar largamente a estamparia em aço laminado de baixo nível de carbono, que permitia o uso de solda elétrica por pontos; muito pouco aço de liga de alta qualidade aparece em suas especificações, nas poucas peças usinadas que foram mantidas. A caixa de culatra e o receptor foram as principais peças modificadas, sendo que esta última passou a ser feita através do esticamento e recorte de uma folha de aço-carbono de 1,5 mm de espessura. Essas novas características permitiam que as peças pudessem ser fabricadas em pequenas metalúrgicas usando o método de prensagem. Este sistema permitiu a fabricação da arma em diferentes locais, por equipes menores de operários.

O desenho básico da MP40 não viria a sofrer modificações durante o resto da guerra. É hoje reconhecida pelos historiadores como a origem da segunda geração de submetralhadoras, e abriu uma tendência amplamente seguida mesmo pelos adversários.

A MP40 era, em geral, superior às armas semelhantes, como a Sten britânica e a PPSh41 soviética, embora esta tivesse como vantagem o carregador tipo “tambor”, de 71 cargas. O peso menor do cartucho 7.62 tornava possível a maior carga de munição. Tentando compensar essa desvantagem, em 1943 um carregador duplo foi apresentado pela fábrica austríaca Steyr, mas era canhestro e não chegou a aprovar. O fato é que, depois de 1941, as enormes quantidades de PPSh capturadas tornaram essa arma popular entre os soldados da Wehrmacht, que tendiam a utilizar as submetralhadoras soviéticas, embora essas não apresentassem nenhuma qualidade intrinsicamente superior à arma alemã.

Mais de um milhão de MP40 foram fabricadas durante a guerra, o que perfaz quase a metade dos dois milhões de submetralhadoras fabricadas pela Alemanha. Ainda assim, a distribuição nunca chegou a alcançar sequer o nível de um em cada dez efetivos. Geralmente a arma era distribuída a líderes de pelotão e graduados. Em algumas unidades motorizadas de elite, como as 1ª, 2ª e 3ª divisões blindadas Waffen SS (“SS Armadas”, uma espécie de SS militarizada, totalmente separada da estrutura da SS Geral), Panzer Lehr e Gross Deutschland, a quantidade de armas automáticas era substancialmente maior, mesmo assim sem alcançar todo o efetivo. 

Um dado curioso é o fato de que ingleses e norte-americanos se referiam à ERMA como “Schmeisser”, embora os irmãos engenheiros, projetistas de diversas armas usadas pela Wehrmacht nunca tenham estado envolvidos com o projeto ou suas adaptações. É possível que o equívoco se devesse ao fato de que algumas das primeiras MP38 de série tenham sido produzidos na Haenel, fábrica da qual Schmeisser era projetista chefe. Lá ele participou ativamente dos projetos da MP41 (uma submetralhadora que visava equipar tropas de infantaria) e do StuG44. O fato é que a origem dessa confusão, observada principalmente entre os norte-americanos, nunca chegou a ser esclarecida. Em diversas ocasiões, depoimentos de prisioneiros alemães mostravam que estes frequentemente se espantavam com a insistência, até mesmo dos oficiais dos EUA, em usar a nomenclatura errada::